Dialética do particular e do geral nas culturas

 Yura Udumyan

                                                               Instituto Superior Politecnico Sinodal

                            Lubango-Angola

                                                         

INTRODUÇÃO

 

A problemática das particularidades culturais dos diferentes povos e a unidade de diferentes culturas sempre interessou aos investigadores. Tais investigações tinham e têm  valor teórico mas sobretudo  valor prático,  pragmático até.

Teóricos, filósofos, sociólogos, grupos sociais ou indivíduos tentam absolutizar, exagerar o papel e lugar  do particular ou do geral na cultura e não só.

A diferença, até contradição, entre a cultura mundial, nacional e local é mais evidente nos países em vias de desenvolvimento, incluindo Angola. É que nestes países, particularmente em Angola, muitos valores e sistemas da cultura, incluindo os sistemas de valorização, foram introduzidos de fora, no caso de Angola da Europa, de Portugal. Os europeus vieram e trouxeram a sua superestrutura social (o sistema de governação europeu, o seu sistema jurídico, sistemas da comunicação social, a sua filosofia, arte, moral, religião).  Tentaram obrigar os locais a esquecer a sua memória social, a sua história. Num certo sentido Angola deixou de ser o sujeito da história, tornou-se só objeto da história. Como resultado disto os angolanos, no seu caminho para o futuro, frequentemente  encontram não os seus antepassados, mas antepassados dos outros. Isto cria sérias dificuldades na via do desenvolvimento. Claro que, como quase todos os fenómenos sociais, este também pode ser qualificado unilateralmente como só negativo. Tem aspetos positivos também.

A introdução, a obrigação e a utilização da cultura do outro, da cultura mundial, durante séculos, teve os seus resultados negativos e positivos. Por exemplo, na Angola atual, como resultado disto, muitos estão inclinados para a Europa, para a cultura mundial, olhando para a cultura nacional ou local com certa ironia. Alguns, sobretudo na capital, orgulham-se de não dominarem nenhuma língua nacional. Alguns jovens, estudantes abertamente, mesmo na sala de aula, vão ao ponto de dizer que preferiam ser  brancos, europeus, por exemplo francêses.

Ao contrário desta visão unilateral formou-se e existe uma outra aproximação diametralmente oposta que, num certo sentido, é resposta à visão acima referida; é autodefesa e, em certos quadros, tem um conteúdo democrático. Esta visão exagera o lugar e papel do tradicional, local, nacional. Por vezes  olha com algum ódio para a cultura e valores de fora. Os representantes desta conceção consideram que, por exemplo, se os europeus não chegassem a Angola, hoje ela poderia ser um dos países mais desenvolvidos do mundo e talvez a língua de comunicação mundial fosse umbundo. Como explicação lembram que antes da chegada dos europeus ao território da Angola atual haviam estados, organizações politicas bem formadas até com elementos de democracia. A maior parte dos representantes desta visão são patriotas. Mas às vezes o patriotismo exagera, aproximando-se do nacionalismo, que pode ter certas explicações mas não justificações. Sobre a diferença de patriotismo e nacionalismo falaremos adiante.

Há uma terceira visão: a cultura mundial e a cultura nacional, a cultura europeia e a cultura angolana, o moderno e o tradicional estão, ou pelo menos devem estar, em unidade, numa interligação dialéctica. Complementam-se entre si. Esta harmonia hoje ocorre mais fácilmente nos países desenvolvidos e, por vezes de forma pouco adequada, nos países em vias do desenvolvimento, incluindo Angola

Durante esta investigação penso basear-se em primeiro lugar na realidade  angolana, tentando juntar os meus conhecimentos de Angola (há sete anos que trabalho em Angola nos sistemas das Nações Unidas e ensino universitário: visão de dentro) aos de outros países (viajei muito, trabalhei em diferentes países, conheço línguas: visão de fora).

Para alcançar os objetivos da estrutura do trabalho acima referida e  não deturpar a primeira lei da lógica aristotélica, a lei da identidade, vamos clarificar os conteúdos e sentidos das palavras e expressões chaves para este trabalho.

Vamos começar pela dialéctica do singular (particular) e do geral. O nosso objetivo não é entrar em detalhes. Apoiado na dialéctica hegeliana, este trabalho considera mais aceitável que o singular ou particular é um objeto que possui uma série de traços especiais, inerentes somente a ele. São estes traços que destacam este objeto entre muitos outros.

No entanto qualquer coisa singular ou particular, não existe por si própria, sem nexo com outros objetos e fenómenos. Cada objeto, além dos traços individuais, próprios somente a ele, tem também traços comuns com outros objetos. O geral constitui aquilo que é inerente a uma quantidade de objetos singulares, particulares. Em qualquer objeto, o singular e o geral estão em unidade dialéctica. Por um lado, o singular encerra o geral e não existe de outra forma senão no quadro do nexo conducente ao geral. Levando em consideração a relação entre  singular, geral e a existência do geral no particular, a dialéctica hegeliana considera que qualquer particular é de uma ou outra forma o geral. Por outro lado, o geral é essência do particular.

O particular e o geral não só estão interligados, mas também mudam constantemente. O limite entre eles é móvel. No processo de desenvolvimento, em determinadas condições, transformam-se no outro: o particular torna-se geral e vice versa. Por exemplo, a cultura angolana em relação à cultura mundial é particular mas, em relação as culturas dos grupos étnicos angolanos torna-se geral. A consideração da dialéctica do particular e do geral tem uma grande importância para a atividade científica e prática. Somente o conhecimento do nexo mútuo e da dialéctica do singular e do geral permite orientar-se profundamente em toda a complexidade dos diversos processos da realidade, revelar as leis do seu desenvolvimento e utilizá-las corretamente na atividade prática.

Quanto ao termo cultura, existem mais de 150 definições, mas nenhuma delas pretende incluir todos os aspetos e perceções do fenómeno. Isto significa que a categoria ainda está longe de ser bem investigada. Os filósofos neste caso dividem o mundo em duas partes: a tudo aquilo que surgiu e existe sem participação ou interferência do homem chamam natura (natureza), a tudo  que foi criado pelo homem, incluindo os métodos da criação e sistemas de avaliação, chamam cultura (mundo humano e humanizado). Por exemplo, a mata criada pela natureza é natura e a mata plantada pelo homem é cultura. Podemos dizer quanto menos é desenvolvida uma sociedade tanto mais é circundada pela natura. A filosofia divide a cultura em material e espiritual. Elas estão interligadas, uma não pode existir sem a outra. Muitas vezes  é bastante difícil conhecer os limites entre elas, distinguir a obra de dada cultura, se faz parte da cultura espiritual ou material. Neste caso a orientação pode ser a seguinte: se uma dada obra  satisfaz as necessidades espirituais do homem, então faz parte da cultura espiritual e se antes de mais nada satisfaz as necessidades materiais, é parte da cultura material.

Pensamos que não vale a pena entrar em detalhes. Para este trabalho consideramos mais aceitável a interpretação antropológica da cultura. Antropologia entende a cultura como a totalidade de padrões aprendidos e desenvolvidos pelo ser humano. Segundo a definição de Edward Burnett Tylor, sobre a etnologia (ciência relativa ao estudo da cultura) a cultura seria “o complexo que inclui conhecimento, crenças, artes, morais, leis, costumes, outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Portanto, corresponde neste último sentido, às formas de organização de um povo, seus costumes e tradições transmitidas de geração em geração (1).

No âmbito deste trabalho, sobre a civilização entenderemos o estágio mais avançado de determinada sociedade humana. Num sentido mais amplo, a civilização designa toda uma cultura de determinado povo e o acervo de suas características sociais, científicas, políticas, económicas e artísticas próprias  (2). A civilização é a essência da cultura, é a unidade cultural no nível máximo.

O patriotismo é  sentimento e auto consciência da unidade espiritual do respetivo povo e  da sua peculiaridade cultural – dos costumes, tradições, crenças. O patriotismo possui uma grande força regulativa e vivificante: contribui para a unificação dos homens da mesma nacionalidade, de certa maneira tem o papel de defesa, que permite salvaguardar a sua unidade e determinação sociocultural na comunidade contra outros povos e nações que tentem humilhar os seus interesses, contra a assimilação etc.

O patriotismo contribui para elevação da cultura geral da nação, do seu desenvolvimento histórico na família das nações. Do processo de educação do homem resulta a formação do gosto pela arte nacional, do respeito às condutas, costumes, tradições, sentimento de orgulho aos heróis da sua história e cultura, cuja memória vive na alma dos homens, transmitida de geração a geração. Contribui para unificação do povo e da nação como unidade especial. O significado educativo do patriotismo é muito grande: é uma escola onde se desenvolve a perceção das ideias e sentimentos nacionais, toma-se consciência da necessidade de atenção sólida e máxima para com o todo nacional, desde a natureza até à esfera da arte e aos sentimentos de dignidade nacional.

Mas tudo deve ter a sua medida. Da mesma forma que a hipertrofia nas orientações da consciência do sujeito em si mesmo, conduz ao egoísmo, a hipertrofia das especificidades nacionais, o exagero da importância dos valores nacionais pode conduzir ao nacionalismo. Alguns autores comparam o nacionalismo com a peste.

O nacionalismo revela egoísmo nacional. Nação e nacionalismo são coisas muito diferentes, tal como o individuo e o seu eventual egoísmo agudizado. O fundamento do nacionalismo são as ideias da superioridade nacional e exclusividade nacional, que engendra arrogância nacional. Amor à pátria é coisa bela, mas há algo maior – amor à verdade. Nós nunca devemos esquecer isto, pois o amor cego à pátria liga-nos ao patriotismo instintivo. Uma das tentações do nacionalismo é  justificar o seu povo em tudo e sempre, exagerar a qualidade (mérito, dignidade) dele e deitar as culpas às forças “sempre-raivosas”, “traidores-inimigos”.

Qualquer povo que queira uma vida rica de conteúdo, não pode ficar separado –  tem de ultrapassar-se a si mesmo, sentir-se mesmo mais do que ele é:  tem de mergulhar nos interesses supra nacionais, na vida histórica mundial da humanidade. Para qualquer povo com grandes características naturais e históricas,  não é de nenhuma maneira natural fechar-se em si mesmo, nem viver apenas para si mesmo, sublinhando sempre o seu ego nacional ou, pior ainda – impor-se aos outros. Isto significaria isolar-se de sua vocação e de todo progresso histórico mundial da humanidade.

Há uma verdade simples: quanto mais alta for a consciência nacional do povo e forte o sentimento de dignidade nacional, tanto mais respeito e amor terá aos outros povos. Sem verdadeiro amor pela humanidade não há e não pode haver verdadeiro amor pela pátria.

Em Angola a palavra nacionalismo, por exemplo no jornalismo, em palestras, discussões, conversas em geral, confunde-se com a palavra patriotismo.

 

 

 

 

 PARTE  I

                  DIFERENÇAS E PARTICULARIDADES NAS CULTURAS

 

 

 Cada cultura tem a sua própria lógica, a sua visão do mundo. O que é significativo e importante numa cultura pode  não ser importante nem essencial na outra. Por isso é preciso sempre relacionar-se com muito respeito е cautelosamente com o seu parceiro de outra cultura. Ele realmente é diferente e tem direito de ser diferente. Este respeito e atenção será motivado não só pela simples curiosidade, mas ainda pelo interesse em conhecer algumas particularidades e características de outro país ou região.

Quando eu estudava em Moscovo tinha boas relações com um grupo de estudantes angolanos. Geralmente comiamos juntos. Muitas vezes queixavam-se que a comida de Moscovo não era saborosa e se fosse um funje eu poderia perceber o que é a verdadeira comida. Depois, trabalhando em Angola, percebi que o funje tem valor na cultura de Angola, porém  nada de especial para mim, pois prefiro as comidas da minha nacionalidade. Os vestidos das mumuilas são cómodos e bonitos para elas, embora para representantes de outros grupos étnicos possam até parecer estranhos.

O tempo e o espaço também têm leituras distintas nas diferentes culturas.

Se na cultura ocidental o tempo mede-se com exatidão e o atraso considerado como uma falha (lembre-se: a pontualidade é regra dos reis), na África, na América Latina ou em muitos países da Ásia o atraso não será surpresa para ninguém. Além disso, ser  tratado com seriedade, obriga a gastar algum tempo com conversas triviais, rituais. Apresentar precipitação e pressa pode gerar conflito cultural. Em 1997 eu trabalhava nas Nações Unidas. Deveria transportar medicamentos da Jamba (Kuando-Kubango) para Mucusso, na fronteira com a Namíbia. No carro levei comigo também um enfermeiro da UNITA. Todos lhe chamavam  doutor Libombo. Ultrapassamos o deserto com dificuldades e aventuras, mas no dia seguinte começamos a cerimónia da entrega. Percebi que o doutor Libombo já tinha encontrado o chefe do serviço de saúde de Mucusso alguns anos antes, quer dizer já se conheciam um pouco e o doutor Libombo perguntou-lhe muitas coisas não ligadas à nossa missão. O chefe  contou-lhe  tudo o que aconteceu nos últimos anos, sobretudo lembrando que na sua família faleceu uma pessoa. Para mim tolerar toda esta cena foi difícil, finalmente interrompi para realizar a entrega dos medicamentos. Á noite o doutor Libombo falou comigo zangado, disse que eu quebrei a cultura deles, que o chefe do serviço de saúde tinha o direito de colocar as suas perguntas. Os árabes tomam café conversando, podendo isto durar muito tempo e consideram-no como “fazer algo”, enquanto os americanos olham para isso como desperdício, perda de tempo (3). Assim, para muitos árabes a pontualidade exata, rigorosa, pode ser considerada como uma ofensa pessoal. Os etíopes, de modo geral, consideram tudo o que se faz por longo tempo como algo muito prestigiante: quanto mais dura melhor.

A perceção do espaço nas diferentes culturas também assinala diferenças. Angola é um pais multiétnico e num certo sentido multicultural. As culturas diferenciam-se não só pelo fator étnico mas também em virtude das regiões, gerações, educação etc. Seja como for na, maior parte dos casos para os angolanos, sobretudo a nível tradicional, o espaço é aberto. Na maioria das aldeias e subúrbios das cidades, as casas são construídas muito próximas com quintais comuns, sem limites rigidos. Se acontecer um facto pouco rotineiro ou se falar mais alto os vizinhos vão ouvir também. Quer dizer, vivem quase numa família ampla, tentam resolver os problemas juntos. O espaço social é comum. Na maior dos casos o espaço é comum dentro da casa também. Nas casas tradicionais,  mesmo com divisão entre os quartos, os tetos não são fechados com paredes até cima, o teto é comum a toda a casa. A família angolana é ampla pela linha vertical (sob o mesmo teto, na mesma família vivem diferentes gerações, bisavôs, avós, filhos, netos) e pela linha horizontal (em baixo do mesmo teto vivem sobrinhos, primos etc.). Todos eles ocupam o mesmo espaço físico e social. Não obstante, hoje muitos angolanos constroem casas como castelos, cercados por muros altos, onde  vive só uma geração. É uma mudança na interpretação do espaço.

Os latino-americanos e europeus, nos seus habitats costumeiros conversam a diferentes distâncias (4). Colocados lado a lado, o latino vai tentar estar numa distância normal para ele, quer dizer bem próximo enquanto o europeu pode sentir isto como intervenção, penetração no seu espaço privado e tentará se afastar. Em resposta, o latino-americano, vai aproximar-se mais uma vez, o que, do ponto de vista europeu, será percebido como uma expressão de agressão. O norte-americano, entrando para o pátio, quintal ou jardim do latino-americano, sente-se murado, pois na sua terra natal os quintais ou jardins de residência não têm sequer cercas. George Bush e Mikhail Gorbachev em 1989  encontraram-se, não no território de um deles, mas em navios militares perto de Malta, introduzindo alguma liberdade e igualdade nas relações, com cada um fora do ambiente habitual e fora também  das condicionalidades de um ou de outro lado.

As diferentes culturas usam diversas comunicações não verbais. Por exemplo, dentro da cultura “negra” norte-americana é considerado rude olhar diretamente nos olhos do professor. Há também diversas variantes em  manifestações simples diárias: uma maneira especial de andar ou um movimento especial dos olhos que pessoas de outra cultura podem nem notar. Um angolano para mostrar a altura de uma pessoa ergue o braço com a palma da mão virada para cima e para a altura de um animal ergue o braço na posição horizontal com a palma da mão vertical. O europeu para mostrar a altura da pessoa ou do animal faz isso com a palma da mão na posição horizontal.

Diferentes povos têm diferentes visões sobre relações hierárquicas. China e Japão respeitam-nas muito, enquanto os americanos tentam demonstrar igualdade.

No caso de Angola o valor das relações hierárquicas está muito exagerado. Neste caso, talvez no lugar da expressão “cultura de chefe”  deva utilizar-se “culto de chefe”. Penso que antes da chegada do europeu, a população que vivia no território da Angola atual, também tinha um culto dos chefes, os reis eram considerados próximos dos deuses. Portugal introduziu o seu sistema de hierarquia feudal, muito burocrática. Hoje Portugal já ultrapassou a maior parte desta burocracia feudal, mas Angola ainda tem caminho a percorrer. Claro que a burocracia tem alguns aspetos positivos: por exemplo, reduz as hipoteses de erros em muitas pessoas e pode diminuir a corrupção. Nas cerimónias, reuniões ou encontros, o moderador perde muito tempo apresentando os presentes um por um, sublinhando os seus títulos (excelentíssimo, meritíssimo, digníssimo etc. puro feudalismo). Ou ainda como se escrevem as cartas oficiais, requerimentos utilizando uma linguagem formal, arcaica, papel especial (25 linhas). Há muitos casos, mesmo simples, nos quais  primeiro faz-se uma solicitação para em seguida escrever o requerimento, paga-se  selo e carimba-se. O diretor subscreve e manda para o ministro, o ministro subscreve e manda para o diretor e assim por diante.

Os empresários ou negociantes ocidentais, como os angolanos, tentam realizar as suas negociações num ambiente confidencial, olho no olho. Na cultura árabe, dentro da sala existem outras pessoas também (5). Eventuais contradições das diferentes atitudes podem facilmente levar a conflito.

Entre várias culturas há diferenças nos sistemas dos valores também. Um objeto ou fenómeno pode ter um valor alto numa cultura e ser insignificante numa outra. Vamos imaginar uma situação. Você viaja num navio com filho, esposa e mãe. O navio começou a afundar. Você pode ajudar apenas uma pessoa. Quem será? Na cultura ocidental, 60% iria salvar ao filho, 40% a esposa. E ninguém vai salvar a mãe. Na cultura oriental 100% salvará a sua mãe. Os representantes desta cultura explicam que a gente pode se casar novamente, ter mais filhos mas nunca terá outra mãe.

Realmente a cultura dá-nos muitas possibilidades para formação da personalidade. E aqui tem grande papel o conhecimento das línguas. Aprender uma nova língua é adquirir um novo mundo. Na minha terra (Arménia), dizem, o número de línguas que conheces fazem de ti um numero equivalente de pessoas. Muitos problemas surgem no caso de tradução inadequada. Por exemplo, a palavra intermediária nas diferentes línguas pode ter diferentes significados.

Assim, temos com frequência pela frente não só outra cultura mas, sem exagero, um outro mundo. Muitos autores para conhecer o carácter nacional destes “outros mundos”  analisam os contos mais amados e queridos do povo, tentando perceber porque é que eles são amados e que elementos destes contos desempenham o papel mais importante para os leitores e ouvintes(6).

Alguns sinais idênticos  têm diferentes significados consoante as culturas. Os búlgaros, por exemplo, fazem (em relação a nós) diferentes movimentos para marcar o “sim” ou o “não”. Em algumas culturas o elemento comum das negociações é um brinde. A cultura ocidental claramente considera isso como um suborno, já em outras culturas é visto como atenção, boas maneiras.

A cultura não é uma coisa fixa, petrificada, passa por muitas mudanças ao longo dos séculos. Livros escritos na nossa própria língua, tal como agora a conhecemos, escritos alguns séculos atrás ficariam incompressíveis. Assim, lendo as obras de Camões, Shakespeare, Cervantes, Pushkin não se percebem muitas coisas sem conhecer a cultura da época deles. Para facilitar a perceção destas e outras obras, muitas vezes publicam-se dicionários e enciclopédias da cultura aristocrática da época (7).

O mesmo podemos dizer sobre a cultura da Idade Media. Para conhecê-la temos que conhecer os parâmetros especiais da época (8, 9, 10, 11, 12 , 13,  14). Seguindo a mesma lógica podemos dizer que na perceção e interpretação da essência das lendas, contos ou historias angolanas, alem de conhecimento da língua, será necessário  conhecer os  parâmetros especiais da época de criação.

Diferentes culturas apresentam diferentes regras para troca de informações. Um representante da cultura oriental, em princípio mais fechado, pode usar um longo tempo para tomar decisões, como fazem, por exemplo, japoneses ou chineses. Os japoneses têm mais uma característica, que frequentemente induz os negociantes em erro: em pricípio eles  não podem dizer um “não” categórico. Cuidadosamente inventam variadas formas, expressões, tentam mesmo  não objetar. No quadro da sua cultura  dizer “não” diretamente pode ser considerado como falta de educação. Boa parte dos angolanos frequentemente dão respostas positivas, que muitas vezes podem não corresponde à realidade, talvez como reflexo de boa vontade. Quando nas ruas eu pergunto alguma coisa a alguma pessoa, peço-lhe  que se não souber diga que não sabe e não dê qualquer “resposta positiva”.

Quando as culturas são bastante próximas, uma delas pode absorver  a outra. Por exemplo, uma investigação interessante sobre a beleza feminina na sociedade americana mostrou que os brancos americanos e os negros americanos já  têm os mesmos ideais de beleza (15). Mas isso cria uma situação de conflito, entre  negros americanos ou em relação  a eles,  em virtude de, por exemplo, existirem critérios de beleza feminina tipicamente “brancos”. Este exemplo vem novamente demonstrar que até a fusão de culturas apresenta conflitos.

Devido às diferenças ou contradições culturais  certos pensadores prognosticam até uma terceira guerra mundial. Por exemplo o famoso investigador americano  Samuel Huntington na sua obra Choque das Civilizações,  prognosticou  guerra mundial nas fronteiras das civilizações, ou seja, para ele a próxima guerra será uma guerra de civilizações, de culturas. Escreveu que  os conflitos  já foram  entre reis, depois entre nações, depois entre ideologias mas, com o fim da guerra fria teria acabado a politica internacional tradicional, substituida pelas contradições entre Ocidente e civilizações independentes. Nesta nova etapa, os povos e governos das civilizações independentes já não são só  objetos da História,  alvos da politica ocidental colonial. Em paralelo com o Ocidente criam História e tornam-se sujeitos nela. S. Huntington pensa que a maior parte da História é Historia das civilizações. Para A, Toinby a História humana conheceu 21 civilizações. A maioria surgiu, desenvolveu-se e desapareceu. Hoje  ainda continuariam  seis civilizações: Ocidental, Confucionista, Japonesa, Islâmica, Hinduísta, Ortodoxo-Eslava, Latino-americana. Fala-se também da formação da civilização Africana mas penso que os países africanos estão  muito inseridos nas civilizações Ocidental ou na Islâmica.

As diferenças  entre estas culturas ou civilizações revelam-se essenciais. Elas não são parecidas nem por língua, nem por historia, nem por tradições e, o que é mais importante, nem pela religião. Tem diferentes imagens sobre direito, liberdade, igualdade, hierarquia, família, etc. São mais diferentes do que as existentes entre ideologias políticas e regimes políticas, elemento que não vai desaparecer no curto prazo. Claro,  diferença não significa obrigatóriamente conflito e violência.

As pesquisas e opiniões sobre o papel, lugar e perspectiva desta ou daquela civilização, variam bastante e muitas  são até opostas. Há um bloco de estudos assinalando que a época de triunfo da civilização ocidental  chegou ao  fim e prevêm liderança num futuro próximo da China, Índia, Japão ou mesmo  Brasil. Pensamos que independentemente das últimas mudanças essenciais (crise económica mundial, problemas de globalização etc.) a civilização ocidental ainda continua a liderar e provavelmente no futuro próximo assim vai continuar, ainda que prever o futuro a longo prazo seja algo ingrato ou impossivel. A vida e a realidade sociais são muito mais ricas e complicadas do que os nossos conhecimentos sobre elas. A “moda”  da futurologia dos anos 60 do século passado não durou muito. Os “famosos futurologistas” quase sempre falharam. Conseguirem prever  alguns desenvolvimento da técnica, mas não o fim da guerra fria, nem a queda da União Soviético, a globalização etc.

Seja como for, atualmente, só a civilização japonesa  pode competir com a civilização ocidental, graças à força da sua economia. Pouco a pouco o mundo move-se no sentido da civilização ocidental. Claro que esta aproximação muitas vezes ocorre doentiamente.

O mundo modifica-se, moderniza-se e a palavra  “modernização”  muitas vezes é versão disfarçada da palavra “ocidentalização”. A cultura ocidental, sobretudo americana, através da mercadoria, da televisão, dos cinemas, da música, do turismo etc. penetra em todos os continentes, todos os países, todas as áreas.  Forma outros ideais, outras visões do mundo, outra mentalidade para as novas gerações. Há países onde, mesmo a nível estatal oficial, luta-se contra esta intervenção cultural (sobretudo em alguns países islâmicos), mas nem sempre com êxito, pois não podem fechar todas as portas e janelas à penetração da cultura ocidental, embora este processo não seja unilateral. De facto, ocorre também uma certa convergência civilizacional. Disto falaremos no próximo número.

 

 

       REFERÉNCIAS BIBLOGRAFICAS

  1. Cultura, Wikipédia, a enciclopédia livre, http://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura, pagina acessada 24/01/2011.
  2. Civilizacao, Wikipédia, a enciclopédia livre, http://pt.wikipedia.org/wiki/CivilizaC%A7%C3%A3o, pagina acessada 24/02/2011.
  3. Copeland L., Grigas L. Going international. — N.Y., 1985, p. 9
  4. Почепцов Г.Г. Имидж-мейкер. — К., 1996
  5. Сзлэкьюз Дж. Ч. Секреты заключения международ­ных сделок.
  6. Тернер Р. Контент-анализ биографий // Сравнитель­ная социология. Избранные переводы. — М., 1995 с. 186.
  7. Лотман Ю.М. Беседы о русской культуре. Быт и тра­диции русского дворянства (XVIII — начало XIX ве­ка). – СПб., 1994.
  8. Гуревич А.Я. Проблемы средневековой народной куль­туры. – М., 1981.
  9. Гуревич А.Я. Средневековый мир: культура безмолвно­го большинства. — М., 1990.
  10. Кардини Ф. Истоки средневекового рыцарства. — М., 1987.
  11. Карсавин Л.П. Культура средних веков. — П., 1918.
  12. Ле Гофф Ж. Цивилизация средневекового Запада. -М., 1992.
  13. Эйкен Г. История и система средневекового миросо­зерцания. – СПб., 1907.
  14. Eco U. Art and beauty in middle ages. – New Haven etc., 1986.
  15. Martin J.G. Racial Ethnocentrism and Judgementor Be­auty // Intercultural.
  16. СоловьевC. Сочинения: В 2 т. М., 1988. Т, 2. С. 579—580.
  17. Конрад Н.И. Запад и Восток. М., 1972

 

Análise da História de Martin Luther King e o Movimento Pelos Direitos Civis Do Negro Americano: O Amor Como Força Mobilizadora da Luta Não Violenta

  Angela Rebelo da Silva Arruda

                                               Mestre em História Social pela Universidade Federal do

                                                                                                                          Amazonas   

  E-mail:angelarebeloarruda@gmail.com

 

Resumo

Refletir sobre a história do movimento civil dos negros americanos é refletir sobre a liderança de Martin Luther King e sua radical opção pela luta não violenta. Um radicalismo mergulhado em sua coerência cristã que foi capaz de mobilizar homens e mulheres negros, principalmente nos estados mais segregados da América, a alcançar importantes conquistas com projeções nacionais e no mundo inteiro. O amor, valor este refletido em toda a experiência desse movimento, é um desafio a ser explorado pelas abordagens historiográficas, já que assim como o ódio também é capaz de desencadear e sustentar as insurreições sociais. Este trabalho pretende contribuir na análise da experiência de King e do movimento antissegregacionista compreendendo o amor como substância do protesto não violento.

 

PALAVRAS-CHAVE: Martin Luther King, movimento negro, amor.

 

 

 

 

ANALYSIS OF MARTIN LUTHER KING’S HISTORY AND THE MOVEMENT BY THE AMERICAN BLACK CIVIL RIGHTS: LOVE AS FIGHTING MOBILIZING FORCE NOT NON-VIOLENT

 

ABSTRACT

Reflecting on the history of the black American civil movement is to reflect on the leadership of Martin Luther King Jr. and his radical option for nonviolent struggle. A radicalism immersed in his Christian coherence that was able to mobilize black men and women, especially in the most segregated states of America, to achieve important achievements with national and worldwide projections. Love, a value that is reflected in the whole experience of this movement, is a challenge to be explored by historiographic approaches, since just as hate is also capable of unleashing and sustaining social insurrections. This paper intends to contribute to the analysis of the experience of King and of the antisegregationist movement comprising love as the substance of nonviolent protest.

KEYWORDS: Martin Luther King, black movement, love.

 

 

 

Ao longo da vida, deve se ter sensibilidade e moral o bastante para romper os grilhões do mal e do ódio. A melhor maneira de fazer isso é pelo amor. Creio firmemente que o amor é um poder transformador capaz de erguer toda uma comunidade a novos horizontes de retidão, boa vontade e justiça. (Martin Luther King Jr.).

 

 

            O historiador E. P. Thompson (1981: 190) observou que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, pois “as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos”, mas, “elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura”, como “valores” e nas “convicções religiosas”. Avaliar a trajetória da luta pelos direitos civis do negro americano pela presença marcante de Martin Luther King Jr., não só é ratificar o processo histórico enquanto uma experiência de valores, como talvez se deparar com o pessimismo da crise de princípios que se abateu na sociedade contemporânea, isto é, “vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é também criador da insegurança”. (SANTOS, 2004: 48; 59).

            O geógrafo Milton Santos (2004: 61) observou que “a nova lei do valor é uma filha dileta da competitividade” e “desse modo, o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades e ao fim da ética”. Nesse sentido, uma onda de nostalgia poderia nos invadir diante da experiência de King e a luta do movimento pacifista do negro americano colocando-a mais ainda no terreno da utopia, isto é, enquanto sociedade ideal e, irreal.

             Tal pessimismo, contudo, revelaria uma visão equivocada da questão. O mesmo movimento que, em nome do amor, clamou por dignidade era contemporâneo dos que não estavam do lado da justiça e da promoção humana. Na mesma época, história e sociedade homens e mulheres submeteram-se ao martírio e com orgulho honraram sua luta enfrentando seus algozes, tais como os membros da Ku Klux Klan e autoridades como Bull Connor que com suas ações recorriam à violência e à brutalidade.

             Isso significa que assim como a presença e a ausência de valores faz parte de todas as épocas e é comum em todo processo histórico – tomando como referência a polaridade dos valores onde o aspecto negativo é frequentemente denominado desvalor (MORA, 2001: 2972) –, a dignidade humana enquanto necessidade permanece como bandeira de luta ao longo dos tempos e por essa razão, acordar ou lembrar a eficácia do movimento não violento de King permanece igualmente relevante e necessário.

Povos oprimidos de todo o mundo anseiam por liberdade, usualmente, a história tem preferido lidar com esse grande e pertinente tema focando na luta armada, e, muito marginalmente, na resistência pacífica. Assim, de certa forma, ela tendeu a subestimar os protestos que, sob os moldes pacifistas, foram capazes de mobilizar homens e mulheres por justiça social.

Nesse sentido, a sublevação dos povos propagou-se muito mais pelo embate sangrento alimentado pelo ódio, fúria e revolta na conquista por direitos. Mas, tais estímulos não representaram em absoluto as insurreições sociais. É preciso não esquecer que Gandhi conseguiu galvanizar mais de 390 milhões de pessoas a alcançar a liberdade sob o valor da não violência (KING, 2014: 159).

 

A história como a conhecemos é um registro das guerras do mundo, tanto que há um provérbio entre os ingleses de que uma nação que não tem história, ou seja, sem guerras, é uma nação feliz. Como os reis agiram, como se tornaram inimigos uns dos outros, tudo isso se encontra registrado com precisão na história; se fosse só isso que houvesse ocorrido no mundo ele teria terminado há muito tempo. Se a história do universo houvesse começado com as guerras, nenhum homem seria encontrado com vida hoje em dia. (…) O fato de que há tantos homens ainda vivos no mundo nos mostra que ele se baseia não na força das armas, mas na força da verdade ou do amor. (GANDHI, 2010: 82).

 

A liderança de Martin Luther King Jr. (2014: 125) inaugurou no cenário americano “a ferramenta social da não violência”. A começar pela cidade de Montgomery que teve uma revolução “diferente das rebeliões de escravos, isoladas, fúteis e violentas. Também foi diferente dos muitos incidentes esporádicos de revolta contra a segregação protagonizados por indivíduos, resistindo do seu próprio jeito às forças da opressão que os submetia”

Estimulados por uma filosofia de um cristianismo socialmente aplicado, a comunidade negra do Sul dos Estados Unidos em sua luta contra a discriminação, permitia-se desabrochar a uma grande causa, em nome de um valor oposto ao ódio. A partir de King, adotara-se o amor como maior estímulo, apresentando uma experiência que se consolidaria muito além da fé religiosa e do terreno da utopia.

Pode ser demasiadamente ousado afirmar que King escolheu o amor para lutar, (e esta foi realmente a sua ousadia), mas não se pode ignorar que as experiências de homens e mulheres de tempos em tempos foram movidas pela multiplicidade de suas paixões. “Tínhamos dignidade porque sabíamos que nossa causa era justa. Não tínhamos raiva, mas paixão – paixão pela liberdade”. (KING, 2014: 267).

        A propósito, a partir das últimas viradas epistemológicas da história, especialmente a Nova História Cultural, tem esta ciência alguns desafios interessantes, como o enfrentamento do amor como tema. Assim, o ódio é dado muito naturalmente, fomentando as dinâmicas sociais sem aparente dificuldade de explicação, mesmo nas abordagens mais conservadoras. De fato, muito mais fácil é provocar o ódio das massas como combustível de revoltas, como pode ser observado nos mais diversos estudos de revoltas populares e grandes revoluções. Contrariamente, a opção racional e consequente da luta não violenta é obviamente uma missão que exige muito esforço, seriedade e equilíbrio, talvez por essa razão, não ocupou ainda o seu devido foco.

        Seria talvez muito mais cômodo simplificar esta abordagem investigando as razões do pacifismo que nascia no movimento negro da América, ao invés de enfrentar o amor como tema na história. Mas a experiência de King exige que se tente esse esforço. É preciso compreender o teor da técnica da não violência que ele havia conquistado entre seus seguidores e isso não seria possível sem notar o amor como um valor fundamental na identidade daquele movimento.

O amor aqui referido certamente pode ser traduzido como dignidade e justiça, os pilares essenciais para a luta corajosa da não violência que estava longe de ser uma postura comodista e passiva, pelo contrário, cobriria a causa de legitimidade, despertando uma força extraordinária capaz de enfrentar toda a opressão e todo o martírio que se abateu sobre tantos que foram capazes de sacrifícios pessoais pela causa, chegando até mesmo a pagar com a própria vida, à exemplo do próprio King.

O amor de King, traduzido na luta não violenta, fora também a escolha racional para lidar com as injustiças sociais sem promover ainda mais vítimas. Como Mandela na África do Sul, King também percebeu que responder às opressões com ódio resultaria em uma sangrenta e gigantesca guerra civil em que negros seriam massacrados.

 

Qualquer um que lidere uma rebelião violenta deve se dispor a fazer uma avaliação honesta com respeito às possíveis baixas de uma minoria da população confrontando uma minoria rica e bem-armada, com uma direita fanática que se deliciaria em exterminar milhares de negros, homens, mulheres e crianças. (KING, 2014: 388).

 

Isso remete à análise feita pelo historiador Eugene Genovese (1983; 1988) que conseguiu realizar um admirável estudo macro/micro, atuante entre o geral e o particular ao escolher regiões diferentes da América onde a escravidão era praticada, com especificidades próprias e distintas entre elas, num jogo habilidoso de visão abrangente e foco sem se perder em quaisquer das duas perspectivas. Sua análise de conjunto acabou por evidenciar os aspectos históricos das relações entre escravos e senhores; iluminando questões sobre docilidade e submissão e diagnosticando que no lugar disso, existia uma análise da correlação de forças entre eles, alianças e acomodações estratégicas, mas que no final de tudo: havia sempre resistência.

 

O desenvolvimento de um relacionamento orgânico entre senhores e escravos, inserido nas teias do paternalismo, não explica por si só, ou mesmo elementarmente, a baixa incidência das revoltas de escravos durante o século XIX e prova muito menos que os escravos eram infantilizados ou dóceis. (GENOVESE, 1983: 28)

 

Naturalmente, nas condições específicas da época no Velho Sul, ao avaliarem a revolta como suicídio, os negros precisaram utilizar de uma resistência adequada à sua sobrevivência enquanto povo escravizado, mas isso não significou de modo algum, a aceitação passiva da escravidão, nem tampouco, garantiu relações pacíficas entre senhores e entre os brancos de maneira geral. No regime escravocrata sempre houve resistência às injustiças, de modo violento e não violento. O cristianismo, por exemplo, serviu como instrumento contra a desumanização da escravidão. Logicamente, “se durante um longo período, um povo percebe que as dificuldades não são apenas prolongadas, mas virtualmente certas, ele prefere não tentar”. (GENOVESE, 1988).

Se por um lado isso revela uma diminuição na autoconfiança e mesmo um temor, por outro, trata-se de um esforço estratégico para garantir a sua sobrevivência. Afinal, “no Sul dos Estados Unidos, o mais importante de todos os países detentores de escravos, os negros permaneceram em minoria” e “os escravos enfrentavam essa minoria branca virtualmente desarmados”. (GENOVESE, 1988).

No caso da luta pelos direitos civis dos negros americanos, tal qual esse passado histórico, as formas de resistência também precisariam ser avaliadas. Na percepção de King, a não violência  foi vislumbrada como talvez a única chance de vencer, só que desta vez a manutenção da não violência enquanto princípio fundamental mergulharia na convicção do movimento de modo geral e isso consistiria exatamente no vigor de uma ação pronta a testar a sua eficácia. King (2014: 319) também avaliou o papel das lideranças num sentido de preservação das mesmas, pois para ele o negro americano não deveria arriscar perdê-las.

 

Homens de talentos são muito raros para serem destruídos pela inveja, pela ambição e pela rivalidade tribal antes de atingirem a maturidade plena. Da mesma forma que o assassinato de Patrice Lumumba no Congo, o assassinato de Malcolm X privou o mundo de um líder potencialmente grande. Eu não podia concordar com nenhum desses dois homens, mas conseguia ver neles uma capacidade de liderança que podia respeitar e que só estava começando a amadurecer em matéria de perspicácia e sabedoria.

 

Naturalmente – sem deixar de considerar o eterno ‘deve ser’ da natureza do homem no lugar do seu estado atual de ‘é’ (KING, 2014: 308) – nem todos os negros aderiram aos meios da não violência, o que aumentava ainda mais o seu constante desafio. King (2014: 35) adotou uma postura coerente entre métodos e concretizações, afinal “fins construtivos não podem jamais oferecer uma justificativa moral absoluta para o emprego de meios destrutivos, pois, em última análise, o fim preexiste aos meios”. Ele vivenciou sua luta preservando um sentido ético entre meio e fim, pois que, quando “não existem princípios fixos e imutáveis; logo, quase tudo – força, violência, assassinato, mentira – é um meio justificável”.

Sua força moral, isto é, seu valor, o credenciara na expressiva liderança que veio ao encontro da determinação dos negros americanos que buscavam por direitos, como Rosa Parks que nas palavras de King (2014: 70) agiu conforme seu “senso de dignidade e respeito próprio”, sendo presa em 1◦ de dezembro de 1955 por desrespeitar leis segregacionistas e E. D. Nixon que vislumbrou no boicote aos ônibus, um basta ao tratamento dado pelos brancos (KING, 2014: 70).

 

Antes de me ligar, Nixon havia discutido a ideia com o reverendo Ralph Abernathy, o jovem pastor da Primeira Igreja Batista de Montgomery que viria a ser uma das figuras centrais no protesto. Abernathy também achava que o boicote aos ônibus seria nosso melhor curso de ação. (…) Mais de quarenta pessoas, de todos os segmentos da comunidade negra, amontoavam-se no amplo salão de reuniões da igreja. A maioria era de sacerdotes cristãos. Fiquei cheio de alegria ao ver tantos deles lá; senti então que algo incomum estava para acontecer. O reverendo L. Roy Bennett, presidente da Aliança Interconfessional de Montgomery e pastor da Igreja Metodista Episcopal Africana de Mt. Zion, apresentou a proposta de que os cidadãos negros da cidade deveriam boicotar os ônibus na segunda-feira em sinal de protesto. (KING, 2014: 70-71).

 

O protesto americano constituiu assim parte da manifestação legítima da liberdade e da dignidade humana, que se repete nos mais diversos povos, como “as explosões de descontentamento na Ásia e na África” (KING, 2014: 135) enquanto expressões dessa mesma busca “por pessoas que por muito tempo têm sido vítimas do colonialismo e do imperialismo” (KING, 2014: 135) e estabelecem no mesmo binômio a crise mundial mais desafiadora da história da humanidade: a desigualdade.

“Vocês sabem, a igualdade não é somente uma questão de matemática e geometria, mas uma questão de psicologia. Não é apenas algo quantitativo, mas algo qualitativo” (KING, 2014: 115), sem equidade, a igualdade é apenas ficção. O problema da desigualdade é desencadear “o tríplice mal da pobreza, do racismo e da guerra em qualquer lugar do mundo” e isso sempre fora a preocupação vital de King. (SCOTT KING, 2009: 20-21).

Tomando o desafio da desencadeante experiência de Montgomery que conquistara em 1957 e 1960 as Leis dos Direitos Civis, assim como a experiência de Albany na Geórgia, a árdua conquista por um caminho de liberdade em Birmingham, considerada até então a cidade mais segregacionista da América, inspirando a Lei dos Direitos Civis de 1964, e Selma que produzira a Lei do Direito de Voto de 1965, dentre outras tantas peregrinações por cidades americanas do Sul e até mesmo por guetos do Norte, como grande trajetória de luta não violenta, é impossível desprezar a relevância desse líder e da comunidade americana, incluindo negros e brancos, que ofereceram à humanidade, a alternativa de um movimento não violento.

O movimento de Montgomery (KING, 2014: 125) – constituído pela ampla recusa dos negros americanos do estado de Alabama de andar de ônibus de maneira segregada, mas optando por caminharem em vez disso, num boicote brilhante que se utilizou de uma rede particular de veículos e de improviso sem esmorecimento até a sua vitória – representou o início da ação pacifista dos negros americanos que, sob esse formato, possuía Martin Luther King como liderança.

Ainda que alertado pelo próprio King (2014: 82) como uma batalha de difícil entendimento, eis que, no entanto, tratar-se-ia de uma referência instigante para a compreensão, mesmo que insatisfatória, do processo histórico da resistência pacífica. Em suas palavras “nenhum historiador jamais conseguiria descrever de maneira plena esse encontro e nenhum sociólogo seria capaz de interpretá-lo de forma adequada” pois, “era preciso ser parte da experiência para realmente entende-la”.

É King (2014: 81) quem nos apresenta a forma diferenciada com a qual a mobilização aconteceu: “As pessoas ficaram tão entusiasmadas quando as incitei ao amor como quando as incitei ao protesto”. O reverendo de autêntica fé, conquistava, substancialmente, famílias inteiras para que a justiça prevalecesse entre aqueles homens e mulheres. King (2014: 32) estava convicto de que ‘uma religião que termina no indivíduo é uma religião que termina’, isto é, qualquer religião que se preocupe apenas com as almas dos homens sem se importar com as favelas a que eles estejam condenados, com suas péssimas condições de vida, com uma situação econômica e sociais que os debilitem é uma religião “espiritualmente moribunda”.

 

De um lado, devo tentar transformar a alma dos indivíduos para que suas sociedades possam ser transformadas. De outro, devo tentar transformar as sociedades para que a alma do indivíduo sofra uma mudança. Assim, devo preocupar-me com desemprego, favelas e insegurança econômica. Sou um defensor convicto do evangelho social. (KING, 2014: 33)

 

É um erro subestimar o poder da fé, da religião ou de quaisquer outros valores que foram capazes de galvanizar pessoas a causas, no entanto, o que se observa na história da resistência negra que possuía King como uma de suas lideranças mais notáveis, é a enorme capacidade de abstração do que há de essencial no elo que os mantivera unidos na causa, isto é, o amor, este, a bandeira maior da ação libertadora de King e de homens como W. G. Anderson em Albany e Fred Shuttlesworth em Birmingham, que de modo algum, fora somente representativa, mas vivenciada umbilicalmente entre todos aqueles que abraçaram a luta e resistiram até a consolidação das vitórias subsequentes.

Conforme king (2014: 69), só no caso de Montgomery, tratou-se da história de 50 mil negros que com seriedade assumiram os princípios da não violência, aprendendo a lutar pelos seus direitos com as armas do amor, vindo a atingir nesse processo, um novo patamar de seu próprio valor humano.

Para King (2014: 81), o amor não era apenas um dos pontos fundamentais da fé cristã: “há um outro lado chamado justiça” diz ele, “ao lado do amor está sempre a justiça, e só estamos usando as ferramentas que ela nos proporciona”. Como já mencionado, em toda a história da humanidade, são as paixões que comandam as sublevações e revoluções, King (2014: 35) diria isto de outra forma, isto é, “a história é guiada, em última instância, pelo espírito, não pela matéria”.

Propagada por homens como King, a história é diferenciada por combinar militância e moderação pela substância de seus protestos, onde homens e mulheres se entusiasmaram por conquistar dignidade e justiça, em nome do amor fraternal que trocou o ódio pela tolerância, diferenciando-os da hostilidade com a qual eram frequentemente tratados pela comunidade branca. Assim, “a resistência não violenta tinha se tornado a técnica do movimento, enquanto que o amor continuava sendo seu ideal moderador” (KING, 2014: 89).

Apesar da estratégica pacifista, King (2014: 90) tinha consciência de que, muito provavelmente, a maioria deles não acreditava na não violência como filosofia de vida e compreendia sua eficácia pela confiança que eles possuíam em suas lideranças, o que necessariamente envolvia o fato de que a não violência era uma expressão do cristianismo em ação. Em sua autobiografia, King (2014: 124-125) menciona um episódio em que uma mulher negra ao sentar-se num ônibus em local anteriormente destinado exclusivamente aos brancos, não revidara um tapa que havia levado de um homem branco, afirmando que poderia ter reagido fisicamente de modo danoso ao tal sujeito, mas que preferira cumprir com sua determinação de atender ao pedido do reverendo King em assembleia recente.

King (2014: 43) estava ciente de todo o processo e não permitiu cair nas “ilusões de um otimismo superficial a respeito da natureza humana e os perigos de um falso idealismo”, compreendendo “a complexidade do envolvimento social do homem e a realidade patente do mal coletivo”. A tendência a interpretar “o pacifismo como uma espécie de resistência passiva ao mal” expressando “uma confiança ingênua no poder do amor” era muito mais presente no senso comum, mas essa grave distorção não encontrava ressonância na mente de King (2014: 42) que conhecia verdadeiramente o caminho de Gandhi.

 

Gandhi foi provavelmente a primeira pessoa na história a elevar a ética do amor de Jesus acima da mera interação entre indivíduos como uma força social amplamente poderosa e eficaz. Para Gandhi, o amor era um forte instrumento de transformação social e coletiva. Foi nessa ênfase de Gandhi no amor e na não violência que descobri o método de reforma social que estava procurando. (KING, 2014: 39-40).

 

Observou assim King (2014: 42) de que “o verdadeiro pacifismo não é uma não resistência ao mal, mas uma resistência não violenta ao mal”. Tratar-se-ia do “enfrentamento corajoso do mal pelo poder do amor”, acreditando que melhor é ser objeto e não sujeito da violência, já que de outra forma ela só multiplicaria ainda mais. Ele compreendeu que somente a não violência é quem pode “desenvolver no oponente um sentimento de vergonha, e assim produzir uma transformação e uma mudança de disposição”.

Em 1963, numa tarde de domingo, em Birmingham, centenas de negros realizaram um encontro de oração próximo à cadeia municipal. Bull Connor, autoridade que se consagrou inimiga dos cidadãos negros e contrária aos direitos civis destes, ordenou que levassem os cães policiais e as mangueiras de incêndio. Os manifestantes, ao se aproximaram da divisa entre as áreas branca e negra da cidade, deparam-se com a ordem de Connor para que voltassem. O reverendo Charles Billups, líder da passeata, educadamente não obedeceu. Enfurecido, Bull Connor ordenou gritando aos seus homens para que ligassem as mangueiras contra eles (KING, 2014: 253-254):

 

O que aconteceu nos trinta segundos seguintes foi um dos eventos mais fantásticos da história de Birmingham. Os homens de Bull Connor ficaram olhando os manifestantes. Estes, muitos de joelhos, preparados para não usar nada, exceto o poder de seus corpos e almas contra os cães policiais, os cassetetes e as mangueiras de Bull Connor, devolviam os olhares, imóveis e sem medo. Lentamente os negros se levantaram e começaram a avançar. Os homens de Connor, como que hipnotizados, recuaram, as mangueiras permanecendo inúteis em suas mãos enquanto centenas de negros passavam por eles, sem demais interferências, para realizar sua reunião de oração conforme planejado. Ali senti, pela primeira vez, o orgulho e o poder da não violência. (KING, 2014: 254).

 

King (2014: 46) possuía uma fé profunda nas possibilidades humanas para ele quando as mesmas estavam harmonizadas com os planos divinos, compreendidos como recusa radical à violência, na convicção de que esta, de nenhuma forma, possui qualquer ação libertadora, ou etapa necessária à “boa sociedade” (ALBORNOZ, 2002: 52), como, pelo contrário, deu-se “no romântico revolucionário que reconhece em certa espécie de ação violenta um caráter positivo – de oposição ao conformismo, de resposta corajosa e nobre ao status quo de injustiça, e que teve longa tradição na época moderna”. (ALBORNOZ, 2002: 28). A igreja ou o templo de King estava na sua prática e seu efeito estava na realização das conquistas do movimento, sem abrir mão do seu I have a dream, e sendo capaz de contrariar uma eventual contradição cristã de “violência santa” (ALBORNOZ, 2002: 84).

Em 1963, na cidade de Birmingham, pastores brancos criticaram o reverendo, pedindo um fim às manifestações. Em resposta aos pastores, acomodados com a ordem e indiferentes às injustiças, King (2014: 242) afirmou que a igreja possuía uma voz fraca, improdutiva e com um som ambíguo, sendo desta maneira, uma arquidefensora do status quo, o que causava conforto à estrutura de poder em geral, no lugar de presença moralmente ameaçadora que a igreja poderia representar. Assim, ela mantinha uma postura de aprovação silenciosa quando não, muitas vezes mesmo declarada, das coisas como elas são.

Apesar da iniciativa do reverendo Fred Shuttlesworth que na cidade mais segregacionista da América, organizara em 1956 o Movimento Cristão pelos Direitos Humanos do Alabama para tentar combater o domínio racista e terrorista de Bull Connor (KING, 2014: 210-211), “a maior tragédia de Birmingham não era a brutalidade dos maus, mas o silêncio dos bons” (KING, 2014: 210),

Shuttlesworth e sua família foram brutalmente atacados, espancados, esfaqueados, também atingidos por uma bomba que havia deixado sua casa completamente destruída e chegaram a ser presos por oito vezes. A violência dos racistas, instituída pelas autoridades locais, e tacitamente permitida pelos pastores brancos, era sempre a resposta aos que tentavam pôr um fim a uma vida de opressão. Naturalmente, King e sua liga, isto é, a SCLC – Conferência da Liderança Cristã do Sul, uniram seus esforços ao lado de Shuttlesworth.

Manobras jurídicas também eram usadas como recursos contra o crescimento das manifestações antissegregacionistas e em Birmingham, o movimento desencadeou num episódio de desobediência civil. As prisões eram previsíveis e comuns no percurso, as sabotagens do sistema tornavam a luta árdua, como a elevação do valor das fianças para dificultar o pagamento. No meio de todo esse tumulto, a determinação na conduta não violenta era mantida e a aprovação popular era crescente, incluindo ajuda financeira e apoio moral do mundo inteiro, como do cantor, músico, ativista político e pacifista Harry Belafonte que em determinada ocasião “conseguiu levantar 50 mil dólares para pagar fianças”. (KING, 2014: 225).

 

Um dos resultados mais gratificantes foi a inédita demonstração de unidade apresentada pela comunidade negra nacional em apoio à nossa cruzada. De todo o país vieram pastores, líderes dos direitos civis, atores, atletas de ponta e cidadãos comuns negros, prontos a se pronunciarem em nossas reuniões ou a se juntarem a nós na cadeia. O Fundo Educacional e de Defesa Jurídica da NAACP veio em nosso auxílio diversas vezes, tanto com dinheiro quanto com especialistas jurídicos talentosos. Muitos outros indivíduos e organizações deram contribuições inestimáveis em termos de tempo, dinheiro e apoio moral.(KING, 2014: 261).

 

Logo no início de sua militância, em Montgomery, King e sua família sofreram um atentado. Uma bomba fora jogada em sua casa em 30 de janeiro de 1956.

 

Não consegui dormir. Deitado naquele tranquilo quarto da frente, com o brilho tranquilizador de uma distante lâmpada de rua atravessando a cortina da janela, comecei a pensar na perversidade das pessoas que haviam lançado aquela bomba. Senti a raiva tomar conta de mim ao perceber que minha mulher e minha bebê poderiam estar mortas. Pensei nos comissários municipais e em todas as declarações que tinham feito sobre mim e sobre os negros em geral. Estava novamente à beira de um ódio corrosivo. E mais uma vez me contive e disse: ‘você não pode permitir tornar-se amargo’. (KING, 2014: 104).

 

Além de atentados, repressões policiais repletas de violências e prisões arbitrárias de King e dos demais companheiros de luta que desafiavam o sistema seriam frequentes em todas as cidades em que o negro abraçou a causa antissegregacionista. A luta pacifista seguia com o martírio da brutalidade e da morte, isso significou grandiosa “coragem inflexível de indivíduos dispostos a sofrer e sacrificar-se por sua liberdade e dignidade” como observou King (2014: 75).

Logo após ao episódio da bomba, King, humanamente testado pelas reações previsíveis à agressão sofrida, foi capaz de permanecer na escolha do caminho da não violência: “Eu já tinha percebido que a doutrina cristã do amor operando por meio da não violência de Gandhi era a mais poderosa arma de que o negro dispunha em sua luta por liberdade”. (KING, 2014: 88-89).

E King ia além disso, não era somente promover a liberdade dos negros, mas de estabelecer outro patamar entre negros e brancos, em suas palavras, “ a consequência da não violência é a criação de uma comunidade de amor, de modo que, terminada a batalha, nasce uma nova relação entre oprimidos e opressores”. (KING, 2014: 154).

Contudo, não se tratava de tarefa fácil, isto é, a aceitação de brancos unidos aos negros, apesar dos anos de militância pacifista e dos devotados brancos que junto deles sofreram o martírio pela causa da justiça racial, as frustrações do movimento abatiam os ânimos dos homens e mulheres negros que permaneciam sofrendo os horrores da discriminação pela maioria branca. Quanto a esse aspecto, King (2014: 373) observou “eu deveria me lembrar de que decepção produz desespero e desespero produz rancor, e que a única coisa certa em relação ao rancor é a sua cegueira”. Nesse contexto, alguns líderes cogitavam abandonar a não violência, mas King permaneceu convicto de que isso seria um grande erro.

 

Tal como a vida, a compreensão racial não é algo que se encontre, mas algo que devemos criar. O que encontramos ao entrar nessas planícies mortais é a existência, mas a existência é a matéria-prima a partir da qual se deve criar a vida. Uma vida feliz e produtiva não é algo que se encontre, é algo que se faz. E da mesma forma a capacidade de negros e brancos trabalharem juntos, de compreenderem uns aos outros, não será encontrada pronta; deve ser criada através do contato. (KING, 2014: 375).

 

Com essa consciência da necessidade de um esforço conciliatório entre negros e brancos, King orientava o movimento que, em determinado momento, 1966, estava inclinado a rejeitar a participação dos brancos em nome de um suposto fortalecimento da causa negra. “Greenwood se tornou o local do nascimento do slogan Poder Negro no movimento dos direitos civis” (KING, 2014: 376), mas King (2014: 377) via isso com reservas. “Eu tinha um sentimento profundo de que a escolha das palavras desse slogan fora infeliz. Além disso, achava que ele provocaria uma divisão nas fileiras dos manifestantes”.

King (2014: 379) sabia que o caminho não era um slogan, mas um programa em que se devesse usar meios criativos de acumulação de poder político e econômico, trabalhando na construção do orgulho racial e refutando a imagem pejorativa de que negro era feio e mau. Ainda assim, King (2014: 380) compreendia que Poder Negro era um grito de decepção e havia nascido das feridas profundas do desespero. “Por séculos o negro tem sido aprisionado pelos tentáculos do poder branco. Muitos negros perderam a fé na maioria branca porque o poder branco, detentor do controle total, deixou-os de mãos vazias”. Assim, Poder Negro como clamor, representava uma reação ao fracasso do poder branco, “para contrabalançar a força dos homens que ainda estão determinados a ser senhores em vez de irmãos”. (KING, 2014: 384).

 

O poder negro foi uma reação psicológica à doutrinação igualmente psicológica que levou à criação do escravo perfeito. Embora essa reação tenha levado a respostas negativas e irrealistas e frequentemente provocado palavras e ações destemperadas, não se deve desprezar o valor positivo de se apelar ao negro para que assuma um novo senso de bravura, um sentimento profundo de orgulho racial e uma nova valorização de sua herança. O negro tinha de abraçar uma nova compreensão de sua dignidade e de seu valor. Tinha de enfrentar um sistema que ainda o oprimia e desenvolver um senso inequívoco e grandioso de seu próprio valor. Não podia mais ter vergonha de ser negro. Não é fácil a tarefa de despertar a bravura de um povo que por tantos séculos fora ensinado que não era ninguém. (KING, 2014: 384).

 

Destarte essa bravura fora canalizada pelo caminho da não violência, poder capaz de salvar o homem negro, mas também o branco, pois que são irracionais os temores que sustentam a segregação racial, “como os da perda de privilégios econômicos, mudança de status social, casamento misto e adaptação a novas situações” (KING, 2014: 389). Para King, “somente aderindo à não violência – que também significa amor em seu sentido mais poderoso e impositivo – é que o medo da comunidade branca será mitigado”. (KING, 2014: 389).

A não violência do negro americano fora embalada pelas canções da liberdade. As assembleias realizadas por eles tinham os cânticos como ritual importante, King (2014: 216) chegou a denominá-las a alma do movimento. Não se tratava apenas de um fortalecimento da campanha antissegregacionista, mas de remeter a todos às raízes mais profundas da história do negro na América, pois as canções foram adaptadas de músicas feitas ainda pelos escravos com teor de lamentos, alegria, encorajamento, hinos de um velho movimento.

 

Em nosso movimento não violento, somos mestres em desarmar as forças policiais; eles não sabem o que fazer. (…). Caminhávamos às centenas e Bull Connor mandava soltarem os cachorros, e eles vinham. Mas nós enfrentávamos os cães cantando. (…) ‘sobre minha cabeça vejo a liberdade no ar’, E éramos jogados nos camburões e por vezes amontoados como sardinhas em lata. E eles nos jogavam lá dentro e o velho Bull dizia: ‘levem eles embora’. E eles o faziam e nós seguíamos no camburão cantando: ‘nós vamos vencer’. E várias vezes éramos presos e víamos os carcereiros nos olhando pelas janelas, sensibilizados por nossas preces, por nossas palavras e por nossas canções. (KING, 2014: 424-425).

 

Os cânticos de liberdade eram entoados “pelo mesmo motivo que os escravos os cantavam porque nós também estamos submetidos à servidão e esses cânticos reforçam nossa determinação de que ‘nós vamos vencer, negros e brancos juntos, nós vamos vencer um dia’” (KING, 2014: 216). Desse modo, a união era constituída, as músicas lhes davam coragem e os ajudavam a marchar juntos apelando por voluntários não violentos para servir naquele exército.

 

Em grupos de vinte, trinta ou quarenta, as pessoas se apresentavam para se alistar no nosso exército. Não hesitávamos em chamar nosso movimento de exército. Era um exército especial, sem suprimentos que não a sinceridade, sem uniforme que não a determinação, sem arsenal que não a fé, sem moeda que não a consciência. Era um exército capaz de cantar, mas não de matar. (KING, 2014: 217).

 

Um exército que marchava sob a firme liderança de King (2014: 218) que estava crente de que “Deus me deu, de alguma forma, o poder de transformar em fé e entusiasmo os ressentimentos”, certamente porque esse líder sabia conduzir suas palavras: “minha fala vinha do coração e a cada encontro obtive firmes manifestações de aprovação, juntamente com promessas de participação e apoio”.

Não há faltas quanto ao senso de justiça que questiona o amor e o coloca como suspeição (ALBORNOZ, 2002: 86) se a recusa à violência, ainda que sob os moldes de restauradora da justiça, for substituída pela ação não violenta onde a paz realmente é luta. Não se fugiu às peregrinações, às marchas, aos protestos, à necessidade da desobediência civil, aos riscos e ao martírio, apenas se trocou as armas que destroem pelas armas que constroem, a agressão pelo canto, o massacre pela esperança, a ruína e o desespero pela oportunidade de tentar outra alternativa de enfrentamento. King destruiu definitivamente, no movimento não violento pelos direitos civis dos negros americanos, a velha preocupação (ALBORNOZ, 2002: 89) de que a não violência favorece os que dominam. Sua luta não perpetuou a violência estruturada do sistema, combateu-a permanentemente.

 

Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o negro enfrenta em seu caminho para a liberdade não é o membro do Conselho dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado, mais devotado à ‘ordem’ do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que consiste na presença da justiça (…) A compreensão superficial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta daquelas de má vontade. (KING, 2014: 235-236).

 

Ele frustra uma eventual manipulação da ideologia da não violência no cristianismo, com atitudes totalmente contrárias aos pastores brancos interessados em parar o movimento. King (2014: 231) tinha plena convicção de que “a liberdade nunca é voluntariamente concedida pelo opressor, deve ser exigida pelo oprimido”.

 

Devo lhes dizer que não conseguimos uma única vitória em matéria de direitos civis sem certo grau de pressão legítima e não violenta. Por mais lamentável que seja, é um fato histórico que os grupos privilegiados dificilmente abrem mão de seus privilégios de maneira voluntária. (KING, 2014: 231).

 

A violência contra eles continuou. Em Selma, a sucessão de assassinatos e espancamentos brutais refletia o ódio e o terror dos racistas pelos que lutavam pelo direito de voto. “Protestantes, católicos e judeus juntaram-se lindamente para expressar as injustiças e indignidades que os negros enfrentavam no estado do Alabama e em todo o Sul no que se referia à questão do direito de voto”. (KING, 2014: 340). Além dos religiosos, a marcha de Selma para Montgomery mobilizou a comunidade acadêmica, intelectuais, sindicatos e entidades pelos direitos civis. “Um fato pouco conhecido é que quarenta dos principais historiadores dos Estados Unidos participaram da marcha para Montgomery”. (KING, 2014: 340). Apesar da conquista da lei federal em 1965, a violência contra eles não cessou, mas a escolha da ação não violenta também não.

Em 1964 King havia sido premiado pelo Nobel da Paz e mesmo assim, com relação ao enfrentamento da violência, o desafio continuou. O grito contra a Guerra do Vietnã em 1967 e a campanha pelos pobres o mantiveram atuantes como foi até o seu último dia de vida.

O resultado da escolha da luta não violenta de King, construída em nome do amor, foi inestimável e mudou radicalmente a história dos movimentos civis americanos. A crescente mobilização desencadeada pelas intensas campanhas tivera momento glorioso na Marcha sobre Washington em 1963, com cerca de 250 mil pessoas que de todos os cantos do país marcaram presença, entre celebridades e cidadãos comuns, muitos deles a partir de sacrifícios pessoais, mas todos compartilhando alegremente um sonho de liberdade e democracia.

 

Aquela enorme multidão era o coração vivo, pulsante, de um movimento infinitamente nobre. Era um exército sem armas, mas não sem força. Era um exército para o qual ninguém tinha de ser recrutado. Era branco, negro e de todas as idades. Tinha simpatizantes de todos os credos, de todas as classes, de todas as profissões, de todos os partidos políticos, unidos por um único ideal. Era um exército em luta, mas ninguém podia ignorar que sua arma mais poderosa era o amor. (KING, 2014: 266).

 

Referências

ALBORNOZ, S. Violência ou não-violência: um estudo em torno de Ernst Bloch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000 (2002 reimpressão). 192 p.

GANDHI, M. K., Hind Swaraj: autogoverno da índia/ M. K. Gandhi; tradução de Gláucia Gonçalves; Divanize Carbonieri; Carlos Gohn; Laura P. Z. Izarra. Brasília: FUNAG, 2010. 152 p.

GENOVESE, E. As Revoltas dos Escravos em uma Perspectiva Hemisférica. In: Da Rebelião à Revolução. São Paulo: Global, 1983, p. 25-61.

______. A Religião dos Escravos em Perspectiva Hemisférica. In: A Terra Prometida: O mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988, p. 267-284.

KING, M. L., 1929-1968. A autobiografia de Martin Luther King/Martin Luther King; organização Clayborne Carson; tradução Carlos Alberto Medeiros. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 463 p.

_______, As palavras de Martin Luther King / Coretta Scott King (org.); tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 127 p.

MORA, J. F. Dicionário de Filosofia, tomo IV (Q-Z). São Paulo: Edições Loyola, 2001.

 

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

THOMPSON, E. P. O termo ausente: experiência. In: A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Louis Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 180-121.

 

“Chão de Kanâmbua”: escovando a contrapelo a “História” de Angola

Marcelo Pacheco Soares

Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo verifica no romance Chão de Kanâmbua, publicado em 2010 pelo autor luso-angolano Tomás Lima Coelho, um resgate de parte da história de Angola, mais precisamente do desenvolvimento de Malanje, província do centro-norte angolano, na segunda metade dos oitocentos. Nesse empreendimento, o autor busca enfatizar a visão da população local sobre os acontecimentos e não a narrativa do colonizador que lhes sempre foi imposta, opção que encontra ratificação no “conceito de história” defendido por Walter Benjamin e aproxima essa narrativa daquelas que Linda Hutcheon classificou como “metaficções historiográficas”.

Palavras-chave: 1. Romance angolano; 2. Metaficção historiográfica; 3. Materialismo histórico.

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’.  Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” (Walter Benjamin)

Em um daqueles contos borgianos em que o escritor argentino traveste sua ficção de um discurso ensaístico acerca de obras imaginadas, discute-se uma versão de Dom Quixote que teria sido escrita por Pierre Menard no século XX, na qual, contudo, estaria reproduzido (mesmo que não necessariamente copiado), ipsis verbis (isto é, palavra por palavra), o romance composto por Miguel de Cervantes, publicado originalmente no princípio dos seiscentos. Não nos cabendo aqui aprofundar a análise do conto de Jorge Luis Borges, apontemos o seu trecho que agora mais especificamente nos vem a propósito, no qual se demonstra que, embora fosse o caso de se tratar de textos aparentemente idênticos, haveria de ter entre as duas escrituras diferenças inerentes às suas origens, cujas produções estariam então separadas por cerca de três séculos e meio:

Es una revelación cotejar el don Quijote de Menard con el de Cervantes.  Éste, por ejemplo, escribió (Don Quijote, primera parte, noveno capítulo):

“…la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.”

Redactada en el sigo diecisiete, redactada por el «ingenio lego» Cervantes, es­a enumeración es un mero elogio retórico de la historia.  Menard, en cambio, escribe:

la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.

La historia, madre de la verdad: la idea es asombrosa.  Menard, contemporáneo de William James, no define la historia como una indagación de la realidade sino como su origen.  La verdad histórica, para él, no es lo que sucedió; es lo que juzgamos que sucedió.  Las cláusulas fi­nales — ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir — son descaramente pragmáticas. (BORGES, 1976, 57)

Estamos assim diante de dois conceitos temporalmente distintos de História.  O primeiro vigora mais fortemente até o século XIX (mas não somente) e, ao ainda ignorar que o discurso histórico oficial advém de um ponto de vista específico, comprometido com os interesses e as ideologias de determinado grupo dominante, lega um estatuto de verdade absoluta a uma História única.  Não por acaso, proliferam nos 1800 os romances históricos realistas de caráter totalizante, isto é, fundados sob um projeto de descrição absoluta de uma sociedade em determinada época.  A substituição dessa primeira prática literário-historiográfica por uma segunda — marcada pela abertura de espaço para os discursos marginalizados na construção das suas narrativas e pela consciência de que, em última instância, elas edificam-se também a partir das subjetividades do seu próprio historiador — torna-se um fértil terreno para a proliferação, na Literatura produzida a partir das últimas décadas do século XX, do que Linda Hutcheon, em seu meritório Poética da Pós-Modernidade, de 1988, chamou de “metaficções historiográficas”.  Seriam essas narrativas baseadas na problematização da História oficial e na consciência da potencial existência de histórias múltiplas e da necessidade de construir narrativas antitotalizantes, modo pelo qual a prosa ficcional pós-moderna reinventa o romance histórico que, no século anterior, tinha a História oficial como base, propondo-se agora uma função não mais reprodutora e sim revisionista sua.  Ampliando ainda o conceito, completa Hutcheon:

A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção.  Ela recusa a visão de que apenas a história tem pretensão à verdade, por meio da afirmação que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade. (HUTCHEON, 1991, 127, grifo nosso)

Ora, no contexto pós-colonial dos países africanos, esse exercício da Literatura (de revisar as suas narrativas históricas ditas canônicas mas forçosamente oficializadas por poderes sócio-políticos) é, mais do que mera opção, uma necessidade, urgência em espaços cujas histórias e culturas e identidades foram sufocadas pela voz de um outro, o colonizador que buscou impor o seu ponto de vista na construção da história local.  Nesse sentido, é peça digna de atento olhar o romance contemporâneo Chão de Kanâmbua, publicado em 2010 por Tomás Lima Coelho (pesquisador conhecido também pelo árduo trabalho de investigação que originou em 2016 o volume Autores e Escritores de Angola – 1642-2015, em que se registram 1780 nomes que perpassam quase quatro séculos de Literatura Angolana).  Não será desse modo despiciendo que, no pequeno texto introdutório ao romance, o autor (diga-se de passagem, um prosador de grande talento, se for aqui permitido esse juízo de valor) faça constar a descrição: “É uma história simples que poderia ter acontecido (se é que não aconteceu mesmo…).” (COELHO, 2015, 9 [desse ponto em diante, as referências ao romance serão feitas apenas com a indicação da página]) — admitindo já assim desde o princípio que essa ficção, tal qual valeria para o discurso histórico, manifestará também a sua pretensão à verdade.

Para que fique marcada tal opção, figuras que com maior ou menor frequência encontrariam espaço nos documentos históricos oficiais serão, quando muito, citações de menor importância no romance (frutos, no entanto, cabe ressaltar, de outro árduo trabalho de investigação do pesquisador Lima Coelho), surgindo apenas como instrumentos a apontar justamente o caminho que as suas linhas privilegiarão, a escovar a História a contrapelo, nos termos conhecidos de Walter Benjamin.  Ao defender que o historiador, no estudo sobre uma época, abdique do seu conhecimento acerca de suas fases posteriores, a fim de eliminar a sua potencial empatia com os vencedores e poder se comprometer com aqueles que foram dominados (nomenclatura pertinente ao discurso marxista que rege o seu pensamento), Benjamin, na parte 7 do seu artigo “Sobre o conceito de história”, assevera:

Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes.  A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.  Isso diz tudo para o materialista histórico.  Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.  Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe.  Esses despojos são o que chamamos bens culturais.  O materialista histórico os contempla com distanciamento.  Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror.  Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos.  Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.  E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.  Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela.  Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1985, 225, grifo nosso)

Daí que, por exemplo, ao fazer rápida referência a Manuel Maria Coelho, o ex-tenente Coelho — oficial do exército português envolvido com a malsucedida revolta republicana de 1891 no Porto cuja pena é o degredo a Angola, país de que, todavia, será Governador após a Implantação da República — a narração do romance de Lima Coelho aponte ser essa precisamente uma outra história, qual seja, aquela que ali não se espera privilegiar: “Apenas cresceu o número de degredados e exilados políticos entre os quais se contavam muitos envolvidos na revolta de 31 de janeiro.  Entre eles estava um dos poucos oficiais que se juntaram aos sargentos revoltosos: o tenente Coelho.  Mas essa é outra história.” (147, grifo nosso).

Pode-se citar ainda a brevíssima passagem no romance do linguista e missionário protestante suíço Héli Chatelain (responsável, nos século XIX, por uma tradução dos Evangelhos para o kimbundu, pela elaboração de uma Gramática dessa língua e pela publicação bilíngue kimbundu-inglês de contos populares angolanos), que, em suas viagens pela África, conhece Jeremias Alves da Costa (no romance, amigo de infância, em Malanje, de Venâncio, um dos filhos do protagonista), o qual leva para a América e consta registrado pelo próprio Chatelain como o primeiro angolano convertido ao cristinanismo.

Ou é possível lembrarmos ainda a menção a um antigo fundidor de metal local, José Álvares Maciel, um dos punidos no século XVIII pela conjura conhecida no Brasil como Inconfidência Mineira.  Vale a pena observar, em 1910, os destroços que o narrador descreve da Fundição Nova Oeiras em que trabalhara Maciel: “o que teria sido um grande edifício cujas ruínas estavam quase totalmente cobertas por mato denso.  Já mal se distinguiam as portas e janelas por onde saíam troncos e lianas.  A selva, pujante e dominadora, reocupava o espaço que o homem em tempos lhe roubara.” (66) Ora, as ruínas configuram-se em fundamental alegoria do pensamento historiográfico materialista benjaminiano.  O anjo da história que o pensador alemão opta por do ponto de vista dos dominados é significar as ruínas.distinguir em uma tela de Paul Klee (o Angelus Novus) está de costas para o futuro ao qual é arrastado e seu olhar para o passado divisa “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína” (BENJAMIN, 1985, 226).  As ruínas benjaminianas são (dentre outras coisas) a manifestação iconoclasta do que ainda há da morte vivo na esfera presente, descrições das potencialidades daquilo que poderia ter sido/ser hoje, mas não foi/é: em suma, as ruínas são fragmentos que contam a história dos ditos vencidos, precisamente essa que o romance de Lima Coelho sói narrar.  Contar a história do ponto de vista dos dominados é significar as ruínas.

Por fim, para encerrarmos aqui essa pequena amostragem, outro exemplo mais da forma como se alude a história tradicional no romance encontramos quando se descreve a morte da esposa do protagonista, em que o fato habitualmente designado histórico (o assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe herdeiro Luís Filipe, que culminaria na queda do regime monárquico português dois anos depois) surge apenas como um ponto de referência temporal que não merece maiores considerações, sobre o qual não se discorre coisa alguma, descentralizando-o no discurso e legando-lhe o espaço marginal — ou seja, aqui a história do dominador é que aparece em paralelo, reduzida a ruínas que não mais farão jus ao olhar do historiador:

Foi numa noite chuvosa de Novembro, no fatídico ano de 1908, o ano do regicídio.  Na casa de Manuel Justino dois lampiões pendurados no alpendre iluminavam a porta por onde entravam e saíam pessoas num silêncio compungido.  D. Ana, a sua mulher, acamada havia dois meses, prostrada por uma doença desconhecida que a fazia definhar aos poucos, estava com a vida por um fio. (18)

Será, aliás, Manuel Justino aquele na companhia de quem o foco narrativo percorrerá, ainda que em narrativa extradiegética, todo o romance, o qual se desenvolve nas lembranças do protagonista, bem-sucedido comerciante, elaboradas durante viagem de trem de Malanje a Luanda nos trilhos da recém-inaugurada estrada de ferro, percurso de cerca de 450 km que, já idoso, ele empreende — meio século após ter vencido, a pé, o caminho contrário rumo a um espaço que, à época, reduzia-se a um presídio e a uma feira.  Embora português de nascença, Justino estabelece no decorrer do romance uma identidade angolana.  Por isso, por exemplo, recusa-se a chamar a esposa, uma mulata de olhos azuis filha de uma baluba (uma das etnias angolanas) e um kinguerez (branco não português) e que era escrava de Saturnino Machado (primeiro homem para quem Justino trabalhara) pela alcunha com a qual a batizara D. Josefa (esposa do chefe), referindo-se a ela sempre pelo seu nome africano: “´Nsiji…’.  Tratara-a sempre assim.  Nunca lhe chamou Ana.” (20) — embora, pelo contrário, por motivos óbvios ligados à busca de maior estatuto social, Nsiji tenha sempre se esforçado para cada vez mais se identificar com os costumes europeus dos brancos locais.  E, por ocasião de contato com exploradores europeus, o protagonista demonstra a consciência do valor da cultura local e indignação com os preconceitos, ciência que uma vez mais credencia que possa com ele se identificar uma narrativa que almeja contar a história dos dominados:

Apercebera-se que, apesar dos seus conhecimentos e cultura, estes homens vinham imbuídos de falsas verdades e de conceitos totalmente errados sobre os africanos e sobre a vida em África.  Ficava muito incomodado quando estes pretensos sábios se referiam aos negros considerando-os pouco mais do que animais de carga, não lhes reconhecendo tradição nem história e não respeitando a sua cultura.  Mas calava-se sempre, não deixando sair o que lhe ia na alma, reprimido pela sua condição de ex-degredado. (131)

A origem portuguesa do personagem, todavia, potencializa, por outro lado, que essa versão da história chegue também aos antigos vencedores que colonizavam e se apoderavam de Angola.  É, ademais, significativo que compareça no romance, que se passa nas últimas décadas do século XIX e no princípio do XX, esse protagonista o qual adota Angola como sua terra a despeito de sua origem portuguesa (seu degredo ao país africano ocorre após Justino assassinar um poderoso feitor que abusara de uma irmã sua, chegando à África, aliás, sob condições físicas algo semelhantes às dos africanos levados em navios negreiros, quiçá a primeira e mais sutil das aproximações que levarão o personagem a uma gradativa africanização).  Ora, o autor Tomás Lima Coelho é natural de Angola, mas sua nacionalidade civil é portuguesa, já que descende de avô colono, sendo fruto das relações estabelecidas entre angolanos e portugueses; reconhece-se, por outro lado, como angolano, nascido no Namibe, ainda que abrace Malanje (cenário do romance) como seu chão; na casa dos 20 anos, porém, passou a viver em Portugal, fugindo à guerra em 1975.  Parece-nos que é possível, portanto, verificar alguma identificação entre os sentimentos pátrios de criador e criatura em relação a Angola e a Portugal.

Mais do que isso, o intermitente (pelas circunstâncias mais variadas) convívio afetivo que por toda a trama Manuel Justino estabelece com Kangombe, angolano filho de um nganguela com uma jovem escrava da tribo dos songo, parece simbolizar a forma de se relacionar entre portugueses e angolanos, não as nações em si, em seus laços diplomáticos (ou na falta desses, como chegou a ocorrer logo após a independência), mas os seres humanos que povoam esses países ou que possuem uma ou outra dessas terras como origem.  Kangombe e Justino conhecem-se na viagem a Malanje e, na ocasião, o jovem é punido com a perda de um dedo ao dar vazão à curiosidade e mexer em um aparelho do chefe da comitiva, ação confundida com intenções de furto.  A amizade entre eles, no entanto, surge alguns anos depois, quando o angolano cuida do convalescente Justino após ter sido gravemente ferido em uma emboscada de guerreiros mbangala.  É então que Justino sente nele “uma confiança que nunca antes sentira apesar das diferenças de cultura, de crenças e de hábitos.  Desde que pisara solo africano era a primeira vez que sentia o espírito tão solto e livre.” (77)

Está certo que o título alternativo do romance, “O Feitiço de Kangombe”, na economia do enredo, refira-se ao efeito do “poderoso feitiço que lhe fizeram […] os maus espíritos” (27), por intermédio de um velho bruxo, sortilégio que condena Kangombe a afastar-se daqueles por quem sente apreço e terá resultado decisivo no destino de Manuel Justino.  Os sintomas físicos da condição de Kangombe, aliás, são percebidos pelo protagonista a certa altura:

Naqueles breves momentos a fisionomia de Kangombe ficava diferente.  O olhar fixava-se, tornava-se distante como se estivesse em transe.  E uma sensação pesada, de ameaça ou qualquer cosia parecida, pairava no ar causando um arrepio gelado a quem estivesse a seu lado.  Mas era um momento tão fugaz e transcendente que mal se conseguia perceber e muito menos explicar.  Mais esquisito ainda era o facto de Kangombe, aparentemente, não se aperceber da mudança que se operava nele. (78)

     Todavia, em leitura mais aprofundada, não há dúvidas de que tal feitiço faz alusão à entrada definitiva do protagonista na África e na gradativa mudança da sua identidade pátria; não é por acaso, mas por puro senso de contraste, que seja rapidamente descrito na trama outro comerciante, José Vaz, “um dos primeiros habitantes do Kisol, que retornara ao Reino por motivos de saúde e que, ao contrário de todos os outros, nunca se tinha deixado apanhar pelo feitiço africano: o seu coração nunca esqueceu Portugal” (163, grifo nosso).  É com Kangombe, por exemplo, que Justino toma as primeiras lições de kimbundu — embora o protagonista nunca deixe de falar português, já que “a língua era a única amarra que Justino fazia questão de manter relativamente a Portugal.  Em tudo o resto procurava viver e sentir como um africano” (157) — e contata de modo mais aprofundado a cultura local.  É o amigo a primeira porta para compreender o fascínio que o sertão angolano lhe proporcionara, aceitando-o como um filho seu, quando Justino deslumbrara-se pela primeira vez com a grandeza do espaço malanjino, do alto de uma grande rocha:

O que viu deixou-o paralisado: a imensidão que se abria diante de si, com mil tons de verde, azul e cinzento, oferecia-lhe um espetáculo de enorme beleza e grandiosidade.  Manuel Justino sentiu o coração disparar, tal era a sensação de pequenez perante tamanha imensidão.  Com o sol já no ocaso, aquela enorme bola vermelha que se despenhava no horizonte, as cores com que o céu se cobria eram de uma beleza tal que seus olhos marejavam de lágrimas.

[…]

Uma estranha paz se apoderou do seu espírito quando sentiu que aquele mundo que assim lhe abria as portas não lhe era hostil.  Foi como uma revelação, um sentimento que nunca saberia explicar por palavras, quando Manuel Justino sentiu, no mais profundo de si, que pertencia àquela terra.  Naquele momento, soube que era um homem novo, renascido. (50)

Daí que seja possível, apesar de sua condição original de português, que a narrativa contada sob o seu ponto de vista promova a história de Malanje como quem o faz a contrapelo, do ponto de vista de Angola, segundo procede então o romancista e pesquisador angolano Tomás Lima Coelho.  O autor já manifestou intenções de fazer uma continuação do romance: partes da história de Angola a receberem essa mesma escovada benjaminiana não faltam.

 

Referências bibliográficas:

  1. BENJAMIN, Walter. “As Teses sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas I – magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 222-232.
  2. BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor Del Quijote”. Ficciones. Buenos Aires / Madrid: Emecé Editores / Alianza Editorial, 1976, p. 47-59.
  3. COELHO, Tomás Lima. Autores e Escritores de Angola – 1642-2015. Lisboa: Perfil Criativo – Edições, 2016.
  4. ——. Chão de Kanâmbua. Lisboa: Chiado Editora, 2ed., 2015.
  5. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: História – Teoria – Ficção. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.