“Chão de Kanâmbua”: escovando a contrapelo a “História” de Angola

Marcelo Pacheco Soares

Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo verifica no romance Chão de Kanâmbua, publicado em 2010 pelo autor luso-angolano Tomás Lima Coelho, um resgate de parte da história de Angola, mais precisamente do desenvolvimento de Malanje, província do centro-norte angolano, na segunda metade dos oitocentos. Nesse empreendimento, o autor busca enfatizar a visão da população local sobre os acontecimentos e não a narrativa do colonizador que lhes sempre foi imposta, opção que encontra ratificação no “conceito de história” defendido por Walter Benjamin e aproxima essa narrativa daquelas que Linda Hutcheon classificou como “metaficções historiográficas”.

Palavras-chave: 1. Romance angolano; 2. Metaficção historiográfica; 3. Materialismo histórico.

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’.  Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” (Walter Benjamin)

Em um daqueles contos borgianos em que o escritor argentino traveste sua ficção de um discurso ensaístico acerca de obras imaginadas, discute-se uma versão de Dom Quixote que teria sido escrita por Pierre Menard no século XX, na qual, contudo, estaria reproduzido (mesmo que não necessariamente copiado), ipsis verbis (isto é, palavra por palavra), o romance composto por Miguel de Cervantes, publicado originalmente no princípio dos seiscentos. Não nos cabendo aqui aprofundar a análise do conto de Jorge Luis Borges, apontemos o seu trecho que agora mais especificamente nos vem a propósito, no qual se demonstra que, embora fosse o caso de se tratar de textos aparentemente idênticos, haveria de ter entre as duas escrituras diferenças inerentes às suas origens, cujas produções estariam então separadas por cerca de três séculos e meio:

Es una revelación cotejar el don Quijote de Menard con el de Cervantes.  Éste, por ejemplo, escribió (Don Quijote, primera parte, noveno capítulo):

“…la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.”

Redactada en el sigo diecisiete, redactada por el «ingenio lego» Cervantes, es­a enumeración es un mero elogio retórico de la historia.  Menard, en cambio, escribe:

la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.

La historia, madre de la verdad: la idea es asombrosa.  Menard, contemporáneo de William James, no define la historia como una indagación de la realidade sino como su origen.  La verdad histórica, para él, no es lo que sucedió; es lo que juzgamos que sucedió.  Las cláusulas fi­nales — ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir — son descaramente pragmáticas. (BORGES, 1976, 57)

Estamos assim diante de dois conceitos temporalmente distintos de História.  O primeiro vigora mais fortemente até o século XIX (mas não somente) e, ao ainda ignorar que o discurso histórico oficial advém de um ponto de vista específico, comprometido com os interesses e as ideologias de determinado grupo dominante, lega um estatuto de verdade absoluta a uma História única.  Não por acaso, proliferam nos 1800 os romances históricos realistas de caráter totalizante, isto é, fundados sob um projeto de descrição absoluta de uma sociedade em determinada época.  A substituição dessa primeira prática literário-historiográfica por uma segunda — marcada pela abertura de espaço para os discursos marginalizados na construção das suas narrativas e pela consciência de que, em última instância, elas edificam-se também a partir das subjetividades do seu próprio historiador — torna-se um fértil terreno para a proliferação, na Literatura produzida a partir das últimas décadas do século XX, do que Linda Hutcheon, em seu meritório Poética da Pós-Modernidade, de 1988, chamou de “metaficções historiográficas”.  Seriam essas narrativas baseadas na problematização da História oficial e na consciência da potencial existência de histórias múltiplas e da necessidade de construir narrativas antitotalizantes, modo pelo qual a prosa ficcional pós-moderna reinventa o romance histórico que, no século anterior, tinha a História oficial como base, propondo-se agora uma função não mais reprodutora e sim revisionista sua.  Ampliando ainda o conceito, completa Hutcheon:

A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção.  Ela recusa a visão de que apenas a história tem pretensão à verdade, por meio da afirmação que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade. (HUTCHEON, 1991, 127, grifo nosso)

Ora, no contexto pós-colonial dos países africanos, esse exercício da Literatura (de revisar as suas narrativas históricas ditas canônicas mas forçosamente oficializadas por poderes sócio-políticos) é, mais do que mera opção, uma necessidade, urgência em espaços cujas histórias e culturas e identidades foram sufocadas pela voz de um outro, o colonizador que buscou impor o seu ponto de vista na construção da história local.  Nesse sentido, é peça digna de atento olhar o romance contemporâneo Chão de Kanâmbua, publicado em 2010 por Tomás Lima Coelho (pesquisador conhecido também pelo árduo trabalho de investigação que originou em 2016 o volume Autores e Escritores de Angola – 1642-2015, em que se registram 1780 nomes que perpassam quase quatro séculos de Literatura Angolana).  Não será desse modo despiciendo que, no pequeno texto introdutório ao romance, o autor (diga-se de passagem, um prosador de grande talento, se for aqui permitido esse juízo de valor) faça constar a descrição: “É uma história simples que poderia ter acontecido (se é que não aconteceu mesmo…).” (COELHO, 2015, 9 [desse ponto em diante, as referências ao romance serão feitas apenas com a indicação da página]) — admitindo já assim desde o princípio que essa ficção, tal qual valeria para o discurso histórico, manifestará também a sua pretensão à verdade.

Para que fique marcada tal opção, figuras que com maior ou menor frequência encontrariam espaço nos documentos históricos oficiais serão, quando muito, citações de menor importância no romance (frutos, no entanto, cabe ressaltar, de outro árduo trabalho de investigação do pesquisador Lima Coelho), surgindo apenas como instrumentos a apontar justamente o caminho que as suas linhas privilegiarão, a escovar a História a contrapelo, nos termos conhecidos de Walter Benjamin.  Ao defender que o historiador, no estudo sobre uma época, abdique do seu conhecimento acerca de suas fases posteriores, a fim de eliminar a sua potencial empatia com os vencedores e poder se comprometer com aqueles que foram dominados (nomenclatura pertinente ao discurso marxista que rege o seu pensamento), Benjamin, na parte 7 do seu artigo “Sobre o conceito de história”, assevera:

Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes.  A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.  Isso diz tudo para o materialista histórico.  Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.  Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe.  Esses despojos são o que chamamos bens culturais.  O materialista histórico os contempla com distanciamento.  Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror.  Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos.  Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.  E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.  Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela.  Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1985, 225, grifo nosso)

Daí que, por exemplo, ao fazer rápida referência a Manuel Maria Coelho, o ex-tenente Coelho — oficial do exército português envolvido com a malsucedida revolta republicana de 1891 no Porto cuja pena é o degredo a Angola, país de que, todavia, será Governador após a Implantação da República — a narração do romance de Lima Coelho aponte ser essa precisamente uma outra história, qual seja, aquela que ali não se espera privilegiar: “Apenas cresceu o número de degredados e exilados políticos entre os quais se contavam muitos envolvidos na revolta de 31 de janeiro.  Entre eles estava um dos poucos oficiais que se juntaram aos sargentos revoltosos: o tenente Coelho.  Mas essa é outra história.” (147, grifo nosso).

Pode-se citar ainda a brevíssima passagem no romance do linguista e missionário protestante suíço Héli Chatelain (responsável, nos século XIX, por uma tradução dos Evangelhos para o kimbundu, pela elaboração de uma Gramática dessa língua e pela publicação bilíngue kimbundu-inglês de contos populares angolanos), que, em suas viagens pela África, conhece Jeremias Alves da Costa (no romance, amigo de infância, em Malanje, de Venâncio, um dos filhos do protagonista), o qual leva para a América e consta registrado pelo próprio Chatelain como o primeiro angolano convertido ao cristinanismo.

Ou é possível lembrarmos ainda a menção a um antigo fundidor de metal local, José Álvares Maciel, um dos punidos no século XVIII pela conjura conhecida no Brasil como Inconfidência Mineira.  Vale a pena observar, em 1910, os destroços que o narrador descreve da Fundição Nova Oeiras em que trabalhara Maciel: “o que teria sido um grande edifício cujas ruínas estavam quase totalmente cobertas por mato denso.  Já mal se distinguiam as portas e janelas por onde saíam troncos e lianas.  A selva, pujante e dominadora, reocupava o espaço que o homem em tempos lhe roubara.” (66) Ora, as ruínas configuram-se em fundamental alegoria do pensamento historiográfico materialista benjaminiano.  O anjo da história que o pensador alemão opta por do ponto de vista dos dominados é significar as ruínas.distinguir em uma tela de Paul Klee (o Angelus Novus) está de costas para o futuro ao qual é arrastado e seu olhar para o passado divisa “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína” (BENJAMIN, 1985, 226).  As ruínas benjaminianas são (dentre outras coisas) a manifestação iconoclasta do que ainda há da morte vivo na esfera presente, descrições das potencialidades daquilo que poderia ter sido/ser hoje, mas não foi/é: em suma, as ruínas são fragmentos que contam a história dos ditos vencidos, precisamente essa que o romance de Lima Coelho sói narrar.  Contar a história do ponto de vista dos dominados é significar as ruínas.

Por fim, para encerrarmos aqui essa pequena amostragem, outro exemplo mais da forma como se alude a história tradicional no romance encontramos quando se descreve a morte da esposa do protagonista, em que o fato habitualmente designado histórico (o assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe herdeiro Luís Filipe, que culminaria na queda do regime monárquico português dois anos depois) surge apenas como um ponto de referência temporal que não merece maiores considerações, sobre o qual não se discorre coisa alguma, descentralizando-o no discurso e legando-lhe o espaço marginal — ou seja, aqui a história do dominador é que aparece em paralelo, reduzida a ruínas que não mais farão jus ao olhar do historiador:

Foi numa noite chuvosa de Novembro, no fatídico ano de 1908, o ano do regicídio.  Na casa de Manuel Justino dois lampiões pendurados no alpendre iluminavam a porta por onde entravam e saíam pessoas num silêncio compungido.  D. Ana, a sua mulher, acamada havia dois meses, prostrada por uma doença desconhecida que a fazia definhar aos poucos, estava com a vida por um fio. (18)

Será, aliás, Manuel Justino aquele na companhia de quem o foco narrativo percorrerá, ainda que em narrativa extradiegética, todo o romance, o qual se desenvolve nas lembranças do protagonista, bem-sucedido comerciante, elaboradas durante viagem de trem de Malanje a Luanda nos trilhos da recém-inaugurada estrada de ferro, percurso de cerca de 450 km que, já idoso, ele empreende — meio século após ter vencido, a pé, o caminho contrário rumo a um espaço que, à época, reduzia-se a um presídio e a uma feira.  Embora português de nascença, Justino estabelece no decorrer do romance uma identidade angolana.  Por isso, por exemplo, recusa-se a chamar a esposa, uma mulata de olhos azuis filha de uma baluba (uma das etnias angolanas) e um kinguerez (branco não português) e que era escrava de Saturnino Machado (primeiro homem para quem Justino trabalhara) pela alcunha com a qual a batizara D. Josefa (esposa do chefe), referindo-se a ela sempre pelo seu nome africano: “´Nsiji…’.  Tratara-a sempre assim.  Nunca lhe chamou Ana.” (20) — embora, pelo contrário, por motivos óbvios ligados à busca de maior estatuto social, Nsiji tenha sempre se esforçado para cada vez mais se identificar com os costumes europeus dos brancos locais.  E, por ocasião de contato com exploradores europeus, o protagonista demonstra a consciência do valor da cultura local e indignação com os preconceitos, ciência que uma vez mais credencia que possa com ele se identificar uma narrativa que almeja contar a história dos dominados:

Apercebera-se que, apesar dos seus conhecimentos e cultura, estes homens vinham imbuídos de falsas verdades e de conceitos totalmente errados sobre os africanos e sobre a vida em África.  Ficava muito incomodado quando estes pretensos sábios se referiam aos negros considerando-os pouco mais do que animais de carga, não lhes reconhecendo tradição nem história e não respeitando a sua cultura.  Mas calava-se sempre, não deixando sair o que lhe ia na alma, reprimido pela sua condição de ex-degredado. (131)

A origem portuguesa do personagem, todavia, potencializa, por outro lado, que essa versão da história chegue também aos antigos vencedores que colonizavam e se apoderavam de Angola.  É, ademais, significativo que compareça no romance, que se passa nas últimas décadas do século XIX e no princípio do XX, esse protagonista o qual adota Angola como sua terra a despeito de sua origem portuguesa (seu degredo ao país africano ocorre após Justino assassinar um poderoso feitor que abusara de uma irmã sua, chegando à África, aliás, sob condições físicas algo semelhantes às dos africanos levados em navios negreiros, quiçá a primeira e mais sutil das aproximações que levarão o personagem a uma gradativa africanização).  Ora, o autor Tomás Lima Coelho é natural de Angola, mas sua nacionalidade civil é portuguesa, já que descende de avô colono, sendo fruto das relações estabelecidas entre angolanos e portugueses; reconhece-se, por outro lado, como angolano, nascido no Namibe, ainda que abrace Malanje (cenário do romance) como seu chão; na casa dos 20 anos, porém, passou a viver em Portugal, fugindo à guerra em 1975.  Parece-nos que é possível, portanto, verificar alguma identificação entre os sentimentos pátrios de criador e criatura em relação a Angola e a Portugal.

Mais do que isso, o intermitente (pelas circunstâncias mais variadas) convívio afetivo que por toda a trama Manuel Justino estabelece com Kangombe, angolano filho de um nganguela com uma jovem escrava da tribo dos songo, parece simbolizar a forma de se relacionar entre portugueses e angolanos, não as nações em si, em seus laços diplomáticos (ou na falta desses, como chegou a ocorrer logo após a independência), mas os seres humanos que povoam esses países ou que possuem uma ou outra dessas terras como origem.  Kangombe e Justino conhecem-se na viagem a Malanje e, na ocasião, o jovem é punido com a perda de um dedo ao dar vazão à curiosidade e mexer em um aparelho do chefe da comitiva, ação confundida com intenções de furto.  A amizade entre eles, no entanto, surge alguns anos depois, quando o angolano cuida do convalescente Justino após ter sido gravemente ferido em uma emboscada de guerreiros mbangala.  É então que Justino sente nele “uma confiança que nunca antes sentira apesar das diferenças de cultura, de crenças e de hábitos.  Desde que pisara solo africano era a primeira vez que sentia o espírito tão solto e livre.” (77)

Está certo que o título alternativo do romance, “O Feitiço de Kangombe”, na economia do enredo, refira-se ao efeito do “poderoso feitiço que lhe fizeram […] os maus espíritos” (27), por intermédio de um velho bruxo, sortilégio que condena Kangombe a afastar-se daqueles por quem sente apreço e terá resultado decisivo no destino de Manuel Justino.  Os sintomas físicos da condição de Kangombe, aliás, são percebidos pelo protagonista a certa altura:

Naqueles breves momentos a fisionomia de Kangombe ficava diferente.  O olhar fixava-se, tornava-se distante como se estivesse em transe.  E uma sensação pesada, de ameaça ou qualquer cosia parecida, pairava no ar causando um arrepio gelado a quem estivesse a seu lado.  Mas era um momento tão fugaz e transcendente que mal se conseguia perceber e muito menos explicar.  Mais esquisito ainda era o facto de Kangombe, aparentemente, não se aperceber da mudança que se operava nele. (78)

     Todavia, em leitura mais aprofundada, não há dúvidas de que tal feitiço faz alusão à entrada definitiva do protagonista na África e na gradativa mudança da sua identidade pátria; não é por acaso, mas por puro senso de contraste, que seja rapidamente descrito na trama outro comerciante, José Vaz, “um dos primeiros habitantes do Kisol, que retornara ao Reino por motivos de saúde e que, ao contrário de todos os outros, nunca se tinha deixado apanhar pelo feitiço africano: o seu coração nunca esqueceu Portugal” (163, grifo nosso).  É com Kangombe, por exemplo, que Justino toma as primeiras lições de kimbundu — embora o protagonista nunca deixe de falar português, já que “a língua era a única amarra que Justino fazia questão de manter relativamente a Portugal.  Em tudo o resto procurava viver e sentir como um africano” (157) — e contata de modo mais aprofundado a cultura local.  É o amigo a primeira porta para compreender o fascínio que o sertão angolano lhe proporcionara, aceitando-o como um filho seu, quando Justino deslumbrara-se pela primeira vez com a grandeza do espaço malanjino, do alto de uma grande rocha:

O que viu deixou-o paralisado: a imensidão que se abria diante de si, com mil tons de verde, azul e cinzento, oferecia-lhe um espetáculo de enorme beleza e grandiosidade.  Manuel Justino sentiu o coração disparar, tal era a sensação de pequenez perante tamanha imensidão.  Com o sol já no ocaso, aquela enorme bola vermelha que se despenhava no horizonte, as cores com que o céu se cobria eram de uma beleza tal que seus olhos marejavam de lágrimas.

[…]

Uma estranha paz se apoderou do seu espírito quando sentiu que aquele mundo que assim lhe abria as portas não lhe era hostil.  Foi como uma revelação, um sentimento que nunca saberia explicar por palavras, quando Manuel Justino sentiu, no mais profundo de si, que pertencia àquela terra.  Naquele momento, soube que era um homem novo, renascido. (50)

Daí que seja possível, apesar de sua condição original de português, que a narrativa contada sob o seu ponto de vista promova a história de Malanje como quem o faz a contrapelo, do ponto de vista de Angola, segundo procede então o romancista e pesquisador angolano Tomás Lima Coelho.  O autor já manifestou intenções de fazer uma continuação do romance: partes da história de Angola a receberem essa mesma escovada benjaminiana não faltam.

 

Referências bibliográficas:

  1. BENJAMIN, Walter. “As Teses sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas I – magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 222-232.
  2. BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor Del Quijote”. Ficciones. Buenos Aires / Madrid: Emecé Editores / Alianza Editorial, 1976, p. 47-59.
  3. COELHO, Tomás Lima. Autores e Escritores de Angola – 1642-2015. Lisboa: Perfil Criativo – Edições, 2016.
  4. ——. Chão de Kanâmbua. Lisboa: Chiado Editora, 2ed., 2015.
  5. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: História – Teoria – Ficção. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 

 

A escritura da poesia afro-brasileira em(se) debate com uma literatura nacional dita canônica

AUTOR: Marcelo Pacheco Soares, Doutor pela UFRJ, Professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo
O artigo investiga, na produção poética afro-brasileira do último século, a releitura de alguns textos considerados academicamente como pertencentes ao cânone nacional.  Em seu comportamento leitor, constata-se nesses escritores um posicionamento artístico e político de construção de uma tradição literária pertinente à cultura negra, via de regra descentralizada pelos discursos de uma elite branca dominante.  Para análise, são eleitos trabalhos de Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa e Lourdes Teodoro.

Resumen
El trabajo investiga, en la producción poética afro-brasileña de lo último siglo, la relectura de textos académicamente considerados como pertenecientes al canon nacional.  En su comportamiento lector, estos autores revelan un posicionamiento artístico y político de la construcción de una tradición literaria relevante de la cultura negra, normalmente descentralizada por los discursos de una élite blanca dominante.  Para el análisis, se eligen empleos de Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa y Lourdes Teodoro.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Poesia afro-brasileira; 2. Intertextualidade; 3. Resistência. PALABRAS CLAVE: 1. Poesía afro-brasileña; 2. Intertextualidad; 3. Resistencia.

Ainda influenciado mais fortemente pelos conceitos norteadores do movimento estruturalista, Roland Barthes, no meritório ensaio “A morte do Autor”, de 1966, afirma que “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita a escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 1988, 70).  Ao migrar para a categoria literária do Leitor a construção de sentido de um texto, o semiólogo francês parece lhe conferir os plenos poderes interpretativos que mais tarde, numa espécie de contrarreforma da crítica que podará presumíveis excessos, seriam novamente (mas jamais no mesmo nível) limitados por outros estudiosos, de vertente pós-estruturalista, como Umberto Eco ou Stanley Fish.
Menos do que nos aprofundarmos em tais conceitos a respeito desse Leitor e de sua apropriação das prerrogativas da figura de um Autor clássico (e aqui o referimos também na condição de categoria narrativa), as quais se transformaram na história da crítica literária sob a esteira do desenvolvimento de suas escolas, trazemo-los antes a título de ilustração, com a finalidade de mais bem fazer compreender certo comportamento efetivamente leitor que observamos em autores afro-brasileiros aquando de suas produções poéticas, isto é, usamos o conceito barthesiano prioritariamente como modo de delinear a leitura que esses poetas afro-brasileiros promovem em sua criação artístico-literária acerca de poemas classificados pelo discurso acadêmico como pertencentes a um cânone nacional, subvertendo-os para, Leitores-Autores concomitantes que se revelam ser, reescrevê-los, atualizando-os ou recontextualizando-os e gerando a partir deles sentidos novos comprometidos ideologicamente com a sua identidade racial.
As motivações para esse procedimento parecem-nos evidentes: a necessidade, ou antes a premência, de instalar uma poética empenhada em questões étnico-culturais que, em geral, não encontram lugar no cânone literário brasileiro, a qual conquiste e ocupe espaços (habitualmente legados pela academia a esse cânone) para dar voz à identidade negra, representando-a de modo efetivo.  E para de outra forma uma vez mais ilustrar esse fenômeno, vem a propósito citar o recurso de que lança mão Ivana Silva Freitas ao fazer uso de signos que se acomodariam no campo semântico do desenho cartográfico — o ponto, a encruzilhada (ou a rasura) e os caminhos — para investigar precisamente essa prática da literatura afro-brasileira de problematizar uma produção literária que é dada como hegemônica, representação pretensamente exclusiva da cultura nacional, embora assim pareçam ser tão somente em razão do lugar, nesse sentido, central de que usufrutuam e da voz de que por isso desfrutam nos discursos acadêmicos e midiáticos: “‘O ponto’ aqui é a intertextualidade, o que há em comum, ainda que como cicatriz, enquanto a encruzilhada representa o desconforto, a descontinuidade, a rasura que possibilita a abertura de outros caminhos.” (FREITAS, 2015, 115)
Assim é que, por exemplo, o poeta gaúcho Oliveira Silveira escreve “Outra Nega Fulô”, poema que traz a público nos Cadernos Negros em 1979 como resposta possível ao composto por Jorge de Lima em 192825.

Outra Nega Fulô
O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
— ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia
a blusa e se pelou
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
— Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
— Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntava
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
— Ah, foi você que matou!
— É sim, fui eu que matou —
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô! Essa nega Fulô! (DUARTE, 2014, v.2, 121-2)

Poema sobre o qual a crítica contemporânea já com alguma frequência se debruçou na comparação com a sua confessada matriz intertextual (mais que evidenciada nos irônicos versos que mencionam o escândalo do bom Jorge de Lima, seminegro e cristão, dando a ver a sua origem que não coaduna com a da negra de que intenciona falar, portanto, não a representando de fato), “Outra nega Fulô”, a partir de uma situação semelhante — qual seja: a intenção de um sinhô de açoitar uma mulher negra que para ele trabalha — descreve outra reação de sua personagem-título, desse modo, como bem observa Elisalva Madruga Dantas, “desfazendo a mítica bondade do Pai João e da Mãe Negra, subvertendo a natureza passiva, submissa da negra Fulô, enquanto mulher objeto em mulher sujeito, dona de si mesma e dos seus desejos” (DANTAS, 2006, 75).  Assim como (para trazer um exemplo outro mas de similaridade processual) o vaqueiro Manuel da película de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, sob a mesma circunstância do Fabiano do romance de Graciliano Ramos Vidas secas, apresenta reação distinta à deste e, ao invés de se curvar aos números que lhe confundem, mata o patrão que lhe tenta enganar e roubar os seus bois, o que representa uma força revolucionária no herói do filme que ainda não era possível identificar no protagonista do romance, também a nega Fulô de Oliveira Silveira, a fim de escapar das punições aos pequenos delitos que lhe são imputados, não se deita com o sinhô como a do poema de Jorge de Lima (o que apenas substituía um açoite físico por outro também físico, especificamente de caráter sexual) mas o mata e, consubstanciando a sua alforria há muito oficialmente promulgada e a consequente autonomia sobre o seu próprio corpo a que tem direito, deita-se com quem decide.  Assim é que, em sua Dissertação de Mestrado, Silvia Regina Lourenso de Castro observa:
Ao parodiar o poema de Jorge de Lima, o sujeito enunciativo de “Outra Nega Fulô” sugere, no plano superficial, que irá falar da mesma mucama.  No entanto, ele deixa marcas no enunciado problematizando ambas as personagens.  Uma primeira marca é a opção por usar a palavra “nega” em oposição à palavra “negra” usada pelo poeta anterior.  Esse procedimento não se deve apenas à supressão do fonema /r/, ou seja, ele não é marcado como desvio da norma culta.  Ao usar “nega” o sujeito projeta o efeito de sentido de ser aquele que fala de um lugar diferente daquele que diz “negra”, isto é, ele projeta o efeito de proximidade em relação à fala que emerge da senzala, modalizada pela oralidade, enquanto a forma escrita “negra” representa a fala que emerge da Casa Grande.  Essa é uma estratégia para demarcar o território da formação discursiva, como também ocorre com a oposição “essa” vs. “outra”. (CASTRO, 2007, 79)
Ora, essa (o pronome sintomaticamente em terceira pessoa que observamos no poema de Jorge de Lima) era a negra marcada pelos estereótipos que lhe atribuíram os discursos da elite branca herdeira de escravocratas, pensamento cujos ecos ainda insistem em se fazer ouvir em nossa sociedade hodierna, ainda que semiocultamente reverberando pelos cantos da sala (física ou virtual) e não pelo centro das ruas, nos quais a mulher de origem africana surgia/surge assinalada como corpo sensualizado destinado tão-somente a dar prazer ao homem branco, poder erótico com que ademais ela deixaria a ver a sua malícia para enganá-lo.  A outra que intitula a peça de Oliveira Silveira, mulher negra capaz de subverter a ordem que lhe é imposta por imposições racistas e machistas, será, além disso, esta nossa no discurso do Pai João e o uso desse pronome demonstrativo, agora de segunda pessoa, aliado ao possessivo de primeira pessoa do plural, mostrará a relação de pertencimento da voz poético-narrativa à etnia negra da personagem (porque esta indica assim proximidade de quem fala) e do seu público leitor (porque quem fala encontra-se acompanhado de outros que justificam a forma nossa).  Essa nova voz irá, por sua vez, aniquilar a cultura da elite branca tal qual Fulô agora aniquila o patrão, já que também a sinhá será caracterizada como burra e besta, animalizada então em semelhança ao tratamento a que os negros foram submetidos no tempo da escravidão.  Assim, conclui a esse respeito Sueli Meira Liebig:
O referencial ideológico veiculado por Jorge de Lima em seu poema é virado do avesso por Silveira: ao invés de “objeto” açoitado, a outra Fulô torna-se “sujeito” açoitador.  A ressignificação das antigas práticas culturais torna-se, nas mãos do autor contemporâneo, o próprio chicote com que é vergastado o pensamento etnocêntrico. (LIEBIG, 2011, s/p)
Será sob égide equivalente que se dará o trabalho do poeta Solano Trindade, conhecido pelo epíteto de Poeta do Povo e, como nele reconhece Leda Maria Martins, “defensor intransitivo de sua ascendência africana, de seu requinte de negrura” (DUARTE, 2014, v.1, 389).  Artista que viveu cerca dos primeiros três quartos do século XX, importantes anos de transição do lento processo (em desenvolvimento até os dais atuais porque não alcançou ainda o seu absoluto sucesso) de efetiva alforria que a comunidade negra precisa cotidianamente impor contra velhos e criminosos preconceitos, o escritor pernambucano trabalha em sua poética a cultura negra com a assiduidade e a pertinência que o credenciam a tornar-se uma referência incontornável para os poetas que lhe sobreveem, enquanto voz que quebra a lógica do cânone da elite branca acadêmica, apresentando-se assim como alternativa a essa.  Daí que o importante escritor contemporâneo Luiz Silva, o Cuti, em poema muito a propósito intitulado “Tradição”, de 2007, faça-lhe reverência: “solano eu abraço / no boi-bumbado socialistado / num salto a-rap-iado” (DUARTE, 2014, v.3, 25).  E, da mesma geração de Cuti, José Carlos Limeira homenageará o poeta em “A Solano Trindade”, ode em que afirma: “O solo das tuas frases / Marcará os espaços dos meus sons” (DUARTE, 2014, v.3, 39) — reiterando tal condição da poética de Solano Trindade como referência tradicional afro-brasileira (e por isso mesmo elevada ao cânone da manifestação dessa poesia). Alcançar esse estatuto de pavimentação legítima da poesia negra no Brasil, reconhecido pelos seus sucessores, é vitória que Solano Trindade conquista na proposta de re-discursar sobre a História e a realidade do negro no Brasil sob a sua voz representante étnica da sua raça e das causas a ela pertinentes: “Eu canto aos Palmares / sem inveja de Virgílio de Homero / e de Camões / porque o meu canto / é o grito de uma raça / em plena luta pela liberdade.” (DUARTE, 2014, v.1, 400), assevera ele em um de seus poemas.  É dessa forma que Solano Trindade reconta o percurso poético do “Navio Negreiro” de Castro Alves, sob uma ótica, todavia, que dispensa a piedade do leitor — sentimento que pode ser motivado pelos versos oitocentistas, em que pese o seu importante caráter de denúncia das condições de uma viagem que, na época da sua composição, ocorria clandestinamente porque já havia sido legalmente proibida em 1850 — e, pelo contrário, exalta outros signos mais positivos, como o da resistência e o da inteligência: “Lá vem o navio negreiro / cheio de melancolia, / lá vem o navio negreiro / cheinho de poesia… // Lá vem o navio negreiro / com carga de resistência / lá vem o navio negreiro / cheinho de inteligência…” (DUARTE, 2014, v.1, 402)
Mas será em “Tem gente com fome”, publicado originalmente em 1944 no volume intitulado Poemas de uma vida simples, que Solano Trindade manuseará, quiçá com a sua mais apurada desenvoltura, um famoso poema do cânone nacional (relativamente contemporâneo ao seu, porque faz parte da coletânea de 1936 Estrela da manhã, e composto além do mais por um conterrâneo seu, o pernambucano Manuel Bandeira): trata-se de “Trem de ferro”.

Tem gente com fome
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu (DUARTE, 2014, v.1, 406-8)

“O poema descreve a vida da população afro-brasileira que não conseguiu se ajustar ao sonho europeu do branqueamento” (SANTOS, 2015, 29), segundo o define Josinete Pereira dos Santos.  Os versos espalham a preocupação social do poeta em relação a uma significativa parcela da população empobrecida, não exclusivamente mas de maioria negra.  Todo aglomerado de gente, como máquina, entra e sai dos vagões da locomotiva.  O trem promove um itinerário dos bairros mais afastados aos mais próximos do centro da cidade, ou, para além disso, uma simbólica tentativa de viagem para o centro do país — o centro geográfico, político, social, econômico a que as caras tristes estão querendo chegar mas apenas o intuem reconhecendo-o vagamente como algum lugar ou algum destino — na estrategicamente apenas subentendida, porque facilmente dedutível a partir do conhecimento da malha ferroviária carioca, estação terminal Central do Brasil, não textualizada no poema com certeza porque metaforicamente não alcançada.  Em seu percurso, anuncia, a todo momento, mas disfarçadamente (tanto que apenas parece dizer), que tem gente com fome, e ao fim reivindica lentamente, entre precavido e mesmo descrente, um dá de comer, que, todavia, será violentamente silenciado por uma voz que está no próprio trem (como o panóptico internalizado de que nos fala Michel Foucault?26) e impõe um onomatopeico Psiuuuuuuuuu, que Benjamin Abdala Jr. associa a “uma visão mais espontânea e quase infantil do referente opressivo” (ABDALA JR., 2006, 75): “E o ‘espontâneo’ realça a agressividade dos agentes alienadores.” (ABDALA JR., 2006, 75), completa ele.
Ao contrário, o poeta Manuel Bandeira nos conduzira, no seu “Trem de Ferro”, a uma viagem de trem pelo interior (oposto ao percurso urbano, ou antes sub-urbano, solaniano) e com poucas pessoas, como nos aponta ainda Josinete dos Santos:
O trem de Bandeira transporta gente (só levo/Pouca gente/Pouca gente/Pouca gente) e o trem de Solano transporta carga humana (Tantas caras tristes/querendo chegar/em algum destino/em algum lugar), haja vista o amontoado desumano a que são submetidos os passageiros do trem de Solano ao contrário do de Bandeira (em que se destaca justamente a oposição tantas vs. pouca). (SANTOS, 2015, 29-30)
Bandeira, além disso, oferece uma paisagem bucólica com bichos, pastos, boiadas, galhos, riachos e ingazeiras.  Aqui, o termo onomatopeico que simula o barulho e a velocidade do trem, café com pão, difere-se da opção de Solano (tem gente com fome), a qual denuncia outra condição social, encontrada afinal por muitos que, em processos migratórios, abandonaram esse mesmo espaço do campo bandeiriano em busca de oportunidades na urbe central.
A propósito de circularmos nesse momento pela obra de Manuel Bandeira, encaminhemo-nos à oportunidade de observarmos também como o poeta paulistano Márcio Barbosa fará igualmente na escrita de versos seus releitura de uma composição bandeiriana (o breve poema “Irene no Céu”, do livro Libertinagem, de 1936), com uma obra publicada originalmente em 1992:

O que não dizia o poeminha do Manuel:
Irene preta!
Boa Irene um amor
Mas nem sempre Irene
Está de bom humor

Se existisse mesmo o Céu
Imagino Irene à porta:
— Pela entrada de serviço — diz S. Pedro
dedo em riste
— Pro inferno, seu racista — ela corta.

Irene não dá bandeira.
Ela não é de brincadeira. (DUARTE, 2014, v.3, 313)

Atentemos inicialmente para um detalhe que evidentemente é casual mas contribui para o enriquecimento semântico da paródia-resposta edificada por Márcio Barbosa: o fato de ele e Bandeira possuírem as mesmas iniciais.  O nome de um, a partir de tais iniciais, completa-se com o que não dizia o nome do outro, o que se estende, é claro, a outras características, como a identidade racial de Barbosa que também não se pode fazer ouvir em Bandeira.  Dessa forma, a opção estético-política de Barbosa na construção do seu poema busca subverter a condição a que a figura do negro, segundo ele mesmo denuncia, está frequentemente submetida na história literário-editorial nacional, na qual normalmente não tem voz: “o lugar reservado ao negro na literatura sempre foi o de tema” (BARBOSA, 1997, 212).  Do mesmo modo observaremos se desenvolver o poema de Barbosa: de um ponto inicial semelhante, qual seja, a representação das relações interraciais no Brasil, “O que não dizia o poeminha do Manuel” traz soluções distintas da escrita bandeiriana para a questão e, baseados na denúncia explícita dos silêncios do discurso do poema de Bandeira, os seus versos apontam o racismo que, em “Irene no Céu”, seria registrado, quando muito, relativizado ou apenas em entrelinhas absolutamente sutis da leitura.
Atenhamo-nos agora mais detidamente ao título: ora, de toda a semântica possível em nossa língua para o uso de sufixos diminutivos, é possível inferir que a menção que Márcio Barbosa faz a “Irene no céu” chamando-o poeminha, transita do sentido dimensional (trata-se, afinal, de fato de um poema pequeno) para, de modo sem dúvida mais significativo, o irônico, em alguma medida desprestigiando o texto, o qual afinal irá contestar em seus versos, como pelo fato de, no poema de Bandeira, Irene estar sempre de bom humor (traço considerado positivo do ponto de vista dos senhores/patrões que veem aí ausência de subversão e que identificamos nos versos que dão conta de sua disposição de pedir licença ao branco que guarda as portas do paraíso), bom humor, ademais, que se mantém a despeito do modo invariavelmente servil segundo é tratada.  Tal tratamento observamos então no próprio São Pedro, que, não obstante o estilo bonachão a ele atribuído por Bandeira, identifica-se como alguém que está hierarquicamente acima da personagem poética de modo a ter poder para autorizar ou não a sua passagem (e arriscamo-nos a dizer que essa condição é menos por sua condição de santo do que a de branco), não sendo casual, pois, que surja como representante dessa outra etnia, enquanto figura mítico-religiosa das crenças teológicas de origem europeia que esse segmento da sociedade via de regra professa (as quais Barbosa, aliás, não deixa de desvalidar ao reduzi-las a hipótese: Se existisse mesmo o Céu).  A Irene mais contemporânea, pelo contrário, explicita o racismo que contra ela tenta se estabelecer e reage (como a outra/mesma Fulô de Oliveira Silveira), e o que não dizia o poeminha do Manuel por fim era que os Sãos Pedros que se espalham pela sociedade na verdade não maquiam o seu preconceito racial (exigindo, dedo em riste, que Irene use a entrada de serviço) mas que Irene se impõe contra essa circunstância.  Não se trata mesmo, portanto, da Irene subserviente pintada por Bandeira; daí o jocoso penúltimo verso a asseverar: Irene não dá bandeira.
E encaminhemo-nos, finalmente, para “Quilombhoje”, composição da coletânea Poemas antigos, de 1996, através da qual a goiana Lourdes Teodoro prestará homenagem ao Quilombhoje Literatura — grupo paulistano de escritores, fundado em 1980 por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros, com objetivo de discutir e aprofundar a experiência  afro-brasileira na literatura — ao mesmo tempo em que promoverá uma revisão da proposta poética de Carlos Drummond de Andrade no também consagrado poema “Procura da Poesia”, composição do volume Rosa do povo, de 1945.

Quilombhoje
Penetra calmamente nas ruas mais distantes.
Lá estão as emoções que precisam ser escritas
Convive com o teu povo antes de fazê-lo teu.
Espera que cada um se desnude, se rebele
Com seu poder de vida
Seu poder de palavra
Engravide tua palavra com a fome do teu povo
Oxigene tua palavra com a coragem do teu povo. (DUARTE, 2014, v.2, 247)

Evidente está o caráter metalinguístico do poema, em consonância ao drummondiano, ambos produzidos com o claro viés de formular os princípios, em cada caso, de um determinado fazer poético, o que será marcado pela presença de verbos imperativos a construírem um discurso injuntivo acerca da elaboração literária.  Além disso, o poema de Lourdes Teodoro, Professora Doutora em Literatura Comparada, debate francamente com o de Drummond, evidenciando a poética que a poeta reconhece e pesquisa no grupo literário Quilombhoje, a qual, segundo a sua leitura, propõe-se distinta da apresentada pelo escritor mineiro em “Procura da Poesia”, de modo que, é claro, o diálogo se registra em oposição (nas rasuras a que fez menção Ivana Freitas), debatendo a essencialidade de a poesia afro-brasileira firmar compromisso com as questões sociais do povo de que uma literatura engajada não pode se desviar, como expõe o primeiro verso de “Quilombhoje”, o qual se apropria parodicamente de uma passagem de “Procura da Poesia” ao instar o poeta a penetrar calmamente não no reino das palavras, como quereria Drummond, mas nas ruas mais distantes, logo, ao encontro do povo que carece dessa poesia, que denuncie as suas fomes e cante a sua coragem.
Tal atitude o famoso poema de Drummond a princípio condena, segundo inferimos de passagens como: Não faça versos sobre acontecimentos.  Não cantes tua cidade, deixe-a em paz.  O canto não é a natureza / nem os homens em sociedade.  É claro que, aprofundando a leitura, podemos identificar “Procura da Poesia” menos como um manual de escrita poética ou uma descrição precisa do fazer literário drummondiano propriamente dito do que uma discussão sobre a tensão entre o real a ser representado, o eu-poético e a estrutura formal do poema, entre subjetividade e alteridade na gênese do poema.  Por isso, a própria obra do autor demonstrará vastamente, na prática, atitude poética que ignora tais recomendações, o que alça “Procura da Poesia” a uma possível condição de poema-autocrítica do próprio poeta Drummond e sua obra como um todo. No entanto, é atendo-se claramente a esse poema específico, de que Lourdes Teodoro faz uso como substrato poético para compor “Quilombhoje”, que a poeta irá construir o seu debate (e, desde o início, nossa opção metodológica nesse trabalho foi o de identificar, e a ela nos deter, a leitura que o poeta afro-brasileiro promove do texto canônico com que dialoga) o qual representa um manifesto e uma convocação do compromisso social de uma poesia de engajamento, defendendo que o poder de palavra e o poder de silêncio a que Drummond fazia menção, reconhecendo-os residentes nos poemas, habita na verdade precisamente nos acontecimentos que ele rejeitaria: no povo e na sua coragem que, na sua atitude rebelar-se, ignora os poderes de um hipotético silêncio (que na poesia afro-brasileira pertence invariavelemnte ao campo semântico da repressão) já que o termo que agora se justapõem à palavra na dupla de poderes evocados é vida.
Em sua economia formal (mas uma oposição à relativamente longa composição drummondiana), o poema de Lourdes Teodoro é como uma pequena semente de que brotam grandes árvores que representa uma Literatura de raízes cada vez mais profundas na poética nacional.  Dizendo o mesmo de outro modo, “Quilombhoje” concentra, na positiva iminência de por isso explodir como em um Big Bang poético ou uma bomba, os princípios literários do fazer artístico que aqui buscamos investigar e, desse modo, se nos encerra o artigo, teria podido também iniciá-lo.  Debruçamo-nos nesse ensaio sobre uma produção que empreende a superação do cânone estabelecido pelo discurso acadêmico da elite branca e a distribuição dos espaços que ele latifundiariamente ocupa, um produção por conseguinte que busca dar espaço às questões cujo desenvolvimento tem lugar fora do centro, nas ruas mais distantes da Central do Brasil omitida em “Tem gente com fome”: a fome do povo e as suas emoções que (mais do que esperam) precisam ser escritas — fome que, nesse caso, é metonímia desde a fome física que sofrem os passageiros da locomotiva de Solano Trindade até a fome de liberdade, autonomia e respeito que movem as ações das Irenes e das Negas Fulôs que, em um novo tempo, rebelam-se com uma coragem que oxigena a arte, que por esse motivo a canta.  Os versos que analisamos estão, assim, grávidos dessa fome.
A poesia afro-brasileira, por fim, está imbuída de uma missão que as palavras que compõem “Quilombhoje” descrevem ao mesmo tempo em que a delegam, a qual Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa e Lourdes Teodoro cumprem com êxito.

Notas
25) O corpus que por agora analisamos tem lugar no rico trabalho organizado por Eduardo de Assis Duarte Literatura e afrodescendência no Brasil – antologia crítica, ampla pesquisa publicada em quatro volumes em 2011 (com reedição em 2014) pela Editora UFMG, já hoje bibliografia fundamental nesses estudos.
26) Ao descrever as sociedades disciplinares, Foucault usara o exemplo do Panóptico de Jeremy Bentham, jurista inglês de fins do século XVIII que desenhou um projeto de penitenciária no qual, de uma torre central, seria possível vigiar todas as celas sem que a sentinela fosse vista, sem que mesmo fosse possível saber quando a torre estaria ou não de fato ocupada, gerando um efeito de introjeção do poder no vigiado, que, por isso, autocensura-se, instaurando um poder disciplinador internalizado, de que nos fala Foucault.

Referências bibliográficas
1.    ABDALA JR., Benjamin. “Antônio Jacinto, José Craveirinha, Solano Trindade— o sonho (diurno) de uma poética popular”. In: CHAVES, Rita; SECCO, Carmen; MACÊDO, Tania (org.). Brasil/África: como se o mar fosse mentira. São Paulo: UNESP; Luanda: Chá de Caxinde, 2006, p. 69-78.
2.    BARBOSA, Márcio. “Cadernos Negros e Quilombhoje: algumas páginas de história.” In: Thot – Escribas dos Deuses: Pensamentos dos Povos Africanos e Afrodescendentes. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, n.2, maio/agosto de 1997, p. 207-219.
3.    BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 65-70.
4.    CASTRO, Silvia Regina Lourenso de. Corpo e erotismo em Cadernos Negros: a reconstrução semiótica da liberdade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007.
5.    DANTAS, Elisalva Madruga. “A negritude poética do gaúcho Oliveira Silveira”. In: Revista de Letras. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, n.28,
v.    1/2, janeiro/dezembro de 2006, p. 74-7.
6.    DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, 4v..
7.    FOUCAULT, Michel. “O panoptismo”. In: ——. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 186-214.
8.    FREITAS, Ivana Silva. “O ponto e a encruzilhada: a poesia negra rasurando a literatura oficial através da intertextualidade”. In: Pontos de Interrogação –Revista de Crítica Cultural. Salvador: Universidade do Estado da Bahia, n.2,
v.    5, julho/dezembro de 2015, p. 113-29.
9.    LIEBIG, Sueli Meira. “Por um descentramento ético do negro: Esmeralda Ribeiro, Oliveira Silveira, Socorro Coelho e Solano Trindade”. In: Anais Online do XII Congresso Internacional da ABRALIC. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, s/p, disponível online em http://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0650-1.pdf, último acesso: 09/05/2016.
10. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1998.
11.    ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964.
12.    SANTOS, Josinete Pereira dos. Pelos caminhos da poesia, a descoberta do orgulho de ser negro. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização. São Gonçalo: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, 2015.