Análise da História de Martin Luther King e o Movimento Pelos Direitos Civis Do Negro Americano: O Amor Como Força Mobilizadora da Luta Não Violenta

  Angela Rebelo da Silva Arruda

                                               Mestre em História Social pela Universidade Federal do

                                                                                                                          Amazonas   

  E-mail:angelarebeloarruda@gmail.com

 

Resumo

Refletir sobre a história do movimento civil dos negros americanos é refletir sobre a liderança de Martin Luther King e sua radical opção pela luta não violenta. Um radicalismo mergulhado em sua coerência cristã que foi capaz de mobilizar homens e mulheres negros, principalmente nos estados mais segregados da América, a alcançar importantes conquistas com projeções nacionais e no mundo inteiro. O amor, valor este refletido em toda a experiência desse movimento, é um desafio a ser explorado pelas abordagens historiográficas, já que assim como o ódio também é capaz de desencadear e sustentar as insurreições sociais. Este trabalho pretende contribuir na análise da experiência de King e do movimento antissegregacionista compreendendo o amor como substância do protesto não violento.

 

PALAVRAS-CHAVE: Martin Luther King, movimento negro, amor.

 

 

 

 

ANALYSIS OF MARTIN LUTHER KING’S HISTORY AND THE MOVEMENT BY THE AMERICAN BLACK CIVIL RIGHTS: LOVE AS FIGHTING MOBILIZING FORCE NOT NON-VIOLENT

 

ABSTRACT

Reflecting on the history of the black American civil movement is to reflect on the leadership of Martin Luther King Jr. and his radical option for nonviolent struggle. A radicalism immersed in his Christian coherence that was able to mobilize black men and women, especially in the most segregated states of America, to achieve important achievements with national and worldwide projections. Love, a value that is reflected in the whole experience of this movement, is a challenge to be explored by historiographic approaches, since just as hate is also capable of unleashing and sustaining social insurrections. This paper intends to contribute to the analysis of the experience of King and of the antisegregationist movement comprising love as the substance of nonviolent protest.

KEYWORDS: Martin Luther King, black movement, love.

 

 

 

Ao longo da vida, deve se ter sensibilidade e moral o bastante para romper os grilhões do mal e do ódio. A melhor maneira de fazer isso é pelo amor. Creio firmemente que o amor é um poder transformador capaz de erguer toda uma comunidade a novos horizontes de retidão, boa vontade e justiça. (Martin Luther King Jr.).

 

 

            O historiador E. P. Thompson (1981: 190) observou que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, pois “as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos”, mas, “elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura”, como “valores” e nas “convicções religiosas”. Avaliar a trajetória da luta pelos direitos civis do negro americano pela presença marcante de Martin Luther King Jr., não só é ratificar o processo histórico enquanto uma experiência de valores, como talvez se deparar com o pessimismo da crise de princípios que se abateu na sociedade contemporânea, isto é, “vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é também criador da insegurança”. (SANTOS, 2004: 48; 59).

            O geógrafo Milton Santos (2004: 61) observou que “a nova lei do valor é uma filha dileta da competitividade” e “desse modo, o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades e ao fim da ética”. Nesse sentido, uma onda de nostalgia poderia nos invadir diante da experiência de King e a luta do movimento pacifista do negro americano colocando-a mais ainda no terreno da utopia, isto é, enquanto sociedade ideal e, irreal.

             Tal pessimismo, contudo, revelaria uma visão equivocada da questão. O mesmo movimento que, em nome do amor, clamou por dignidade era contemporâneo dos que não estavam do lado da justiça e da promoção humana. Na mesma época, história e sociedade homens e mulheres submeteram-se ao martírio e com orgulho honraram sua luta enfrentando seus algozes, tais como os membros da Ku Klux Klan e autoridades como Bull Connor que com suas ações recorriam à violência e à brutalidade.

             Isso significa que assim como a presença e a ausência de valores faz parte de todas as épocas e é comum em todo processo histórico – tomando como referência a polaridade dos valores onde o aspecto negativo é frequentemente denominado desvalor (MORA, 2001: 2972) –, a dignidade humana enquanto necessidade permanece como bandeira de luta ao longo dos tempos e por essa razão, acordar ou lembrar a eficácia do movimento não violento de King permanece igualmente relevante e necessário.

Povos oprimidos de todo o mundo anseiam por liberdade, usualmente, a história tem preferido lidar com esse grande e pertinente tema focando na luta armada, e, muito marginalmente, na resistência pacífica. Assim, de certa forma, ela tendeu a subestimar os protestos que, sob os moldes pacifistas, foram capazes de mobilizar homens e mulheres por justiça social.

Nesse sentido, a sublevação dos povos propagou-se muito mais pelo embate sangrento alimentado pelo ódio, fúria e revolta na conquista por direitos. Mas, tais estímulos não representaram em absoluto as insurreições sociais. É preciso não esquecer que Gandhi conseguiu galvanizar mais de 390 milhões de pessoas a alcançar a liberdade sob o valor da não violência (KING, 2014: 159).

 

A história como a conhecemos é um registro das guerras do mundo, tanto que há um provérbio entre os ingleses de que uma nação que não tem história, ou seja, sem guerras, é uma nação feliz. Como os reis agiram, como se tornaram inimigos uns dos outros, tudo isso se encontra registrado com precisão na história; se fosse só isso que houvesse ocorrido no mundo ele teria terminado há muito tempo. Se a história do universo houvesse começado com as guerras, nenhum homem seria encontrado com vida hoje em dia. (…) O fato de que há tantos homens ainda vivos no mundo nos mostra que ele se baseia não na força das armas, mas na força da verdade ou do amor. (GANDHI, 2010: 82).

 

A liderança de Martin Luther King Jr. (2014: 125) inaugurou no cenário americano “a ferramenta social da não violência”. A começar pela cidade de Montgomery que teve uma revolução “diferente das rebeliões de escravos, isoladas, fúteis e violentas. Também foi diferente dos muitos incidentes esporádicos de revolta contra a segregação protagonizados por indivíduos, resistindo do seu próprio jeito às forças da opressão que os submetia”

Estimulados por uma filosofia de um cristianismo socialmente aplicado, a comunidade negra do Sul dos Estados Unidos em sua luta contra a discriminação, permitia-se desabrochar a uma grande causa, em nome de um valor oposto ao ódio. A partir de King, adotara-se o amor como maior estímulo, apresentando uma experiência que se consolidaria muito além da fé religiosa e do terreno da utopia.

Pode ser demasiadamente ousado afirmar que King escolheu o amor para lutar, (e esta foi realmente a sua ousadia), mas não se pode ignorar que as experiências de homens e mulheres de tempos em tempos foram movidas pela multiplicidade de suas paixões. “Tínhamos dignidade porque sabíamos que nossa causa era justa. Não tínhamos raiva, mas paixão – paixão pela liberdade”. (KING, 2014: 267).

        A propósito, a partir das últimas viradas epistemológicas da história, especialmente a Nova História Cultural, tem esta ciência alguns desafios interessantes, como o enfrentamento do amor como tema. Assim, o ódio é dado muito naturalmente, fomentando as dinâmicas sociais sem aparente dificuldade de explicação, mesmo nas abordagens mais conservadoras. De fato, muito mais fácil é provocar o ódio das massas como combustível de revoltas, como pode ser observado nos mais diversos estudos de revoltas populares e grandes revoluções. Contrariamente, a opção racional e consequente da luta não violenta é obviamente uma missão que exige muito esforço, seriedade e equilíbrio, talvez por essa razão, não ocupou ainda o seu devido foco.

        Seria talvez muito mais cômodo simplificar esta abordagem investigando as razões do pacifismo que nascia no movimento negro da América, ao invés de enfrentar o amor como tema na história. Mas a experiência de King exige que se tente esse esforço. É preciso compreender o teor da técnica da não violência que ele havia conquistado entre seus seguidores e isso não seria possível sem notar o amor como um valor fundamental na identidade daquele movimento.

O amor aqui referido certamente pode ser traduzido como dignidade e justiça, os pilares essenciais para a luta corajosa da não violência que estava longe de ser uma postura comodista e passiva, pelo contrário, cobriria a causa de legitimidade, despertando uma força extraordinária capaz de enfrentar toda a opressão e todo o martírio que se abateu sobre tantos que foram capazes de sacrifícios pessoais pela causa, chegando até mesmo a pagar com a própria vida, à exemplo do próprio King.

O amor de King, traduzido na luta não violenta, fora também a escolha racional para lidar com as injustiças sociais sem promover ainda mais vítimas. Como Mandela na África do Sul, King também percebeu que responder às opressões com ódio resultaria em uma sangrenta e gigantesca guerra civil em que negros seriam massacrados.

 

Qualquer um que lidere uma rebelião violenta deve se dispor a fazer uma avaliação honesta com respeito às possíveis baixas de uma minoria da população confrontando uma minoria rica e bem-armada, com uma direita fanática que se deliciaria em exterminar milhares de negros, homens, mulheres e crianças. (KING, 2014: 388).

 

Isso remete à análise feita pelo historiador Eugene Genovese (1983; 1988) que conseguiu realizar um admirável estudo macro/micro, atuante entre o geral e o particular ao escolher regiões diferentes da América onde a escravidão era praticada, com especificidades próprias e distintas entre elas, num jogo habilidoso de visão abrangente e foco sem se perder em quaisquer das duas perspectivas. Sua análise de conjunto acabou por evidenciar os aspectos históricos das relações entre escravos e senhores; iluminando questões sobre docilidade e submissão e diagnosticando que no lugar disso, existia uma análise da correlação de forças entre eles, alianças e acomodações estratégicas, mas que no final de tudo: havia sempre resistência.

 

O desenvolvimento de um relacionamento orgânico entre senhores e escravos, inserido nas teias do paternalismo, não explica por si só, ou mesmo elementarmente, a baixa incidência das revoltas de escravos durante o século XIX e prova muito menos que os escravos eram infantilizados ou dóceis. (GENOVESE, 1983: 28)

 

Naturalmente, nas condições específicas da época no Velho Sul, ao avaliarem a revolta como suicídio, os negros precisaram utilizar de uma resistência adequada à sua sobrevivência enquanto povo escravizado, mas isso não significou de modo algum, a aceitação passiva da escravidão, nem tampouco, garantiu relações pacíficas entre senhores e entre os brancos de maneira geral. No regime escravocrata sempre houve resistência às injustiças, de modo violento e não violento. O cristianismo, por exemplo, serviu como instrumento contra a desumanização da escravidão. Logicamente, “se durante um longo período, um povo percebe que as dificuldades não são apenas prolongadas, mas virtualmente certas, ele prefere não tentar”. (GENOVESE, 1988).

Se por um lado isso revela uma diminuição na autoconfiança e mesmo um temor, por outro, trata-se de um esforço estratégico para garantir a sua sobrevivência. Afinal, “no Sul dos Estados Unidos, o mais importante de todos os países detentores de escravos, os negros permaneceram em minoria” e “os escravos enfrentavam essa minoria branca virtualmente desarmados”. (GENOVESE, 1988).

No caso da luta pelos direitos civis dos negros americanos, tal qual esse passado histórico, as formas de resistência também precisariam ser avaliadas. Na percepção de King, a não violência  foi vislumbrada como talvez a única chance de vencer, só que desta vez a manutenção da não violência enquanto princípio fundamental mergulharia na convicção do movimento de modo geral e isso consistiria exatamente no vigor de uma ação pronta a testar a sua eficácia. King (2014: 319) também avaliou o papel das lideranças num sentido de preservação das mesmas, pois para ele o negro americano não deveria arriscar perdê-las.

 

Homens de talentos são muito raros para serem destruídos pela inveja, pela ambição e pela rivalidade tribal antes de atingirem a maturidade plena. Da mesma forma que o assassinato de Patrice Lumumba no Congo, o assassinato de Malcolm X privou o mundo de um líder potencialmente grande. Eu não podia concordar com nenhum desses dois homens, mas conseguia ver neles uma capacidade de liderança que podia respeitar e que só estava começando a amadurecer em matéria de perspicácia e sabedoria.

 

Naturalmente – sem deixar de considerar o eterno ‘deve ser’ da natureza do homem no lugar do seu estado atual de ‘é’ (KING, 2014: 308) – nem todos os negros aderiram aos meios da não violência, o que aumentava ainda mais o seu constante desafio. King (2014: 35) adotou uma postura coerente entre métodos e concretizações, afinal “fins construtivos não podem jamais oferecer uma justificativa moral absoluta para o emprego de meios destrutivos, pois, em última análise, o fim preexiste aos meios”. Ele vivenciou sua luta preservando um sentido ético entre meio e fim, pois que, quando “não existem princípios fixos e imutáveis; logo, quase tudo – força, violência, assassinato, mentira – é um meio justificável”.

Sua força moral, isto é, seu valor, o credenciara na expressiva liderança que veio ao encontro da determinação dos negros americanos que buscavam por direitos, como Rosa Parks que nas palavras de King (2014: 70) agiu conforme seu “senso de dignidade e respeito próprio”, sendo presa em 1◦ de dezembro de 1955 por desrespeitar leis segregacionistas e E. D. Nixon que vislumbrou no boicote aos ônibus, um basta ao tratamento dado pelos brancos (KING, 2014: 70).

 

Antes de me ligar, Nixon havia discutido a ideia com o reverendo Ralph Abernathy, o jovem pastor da Primeira Igreja Batista de Montgomery que viria a ser uma das figuras centrais no protesto. Abernathy também achava que o boicote aos ônibus seria nosso melhor curso de ação. (…) Mais de quarenta pessoas, de todos os segmentos da comunidade negra, amontoavam-se no amplo salão de reuniões da igreja. A maioria era de sacerdotes cristãos. Fiquei cheio de alegria ao ver tantos deles lá; senti então que algo incomum estava para acontecer. O reverendo L. Roy Bennett, presidente da Aliança Interconfessional de Montgomery e pastor da Igreja Metodista Episcopal Africana de Mt. Zion, apresentou a proposta de que os cidadãos negros da cidade deveriam boicotar os ônibus na segunda-feira em sinal de protesto. (KING, 2014: 70-71).

 

O protesto americano constituiu assim parte da manifestação legítima da liberdade e da dignidade humana, que se repete nos mais diversos povos, como “as explosões de descontentamento na Ásia e na África” (KING, 2014: 135) enquanto expressões dessa mesma busca “por pessoas que por muito tempo têm sido vítimas do colonialismo e do imperialismo” (KING, 2014: 135) e estabelecem no mesmo binômio a crise mundial mais desafiadora da história da humanidade: a desigualdade.

“Vocês sabem, a igualdade não é somente uma questão de matemática e geometria, mas uma questão de psicologia. Não é apenas algo quantitativo, mas algo qualitativo” (KING, 2014: 115), sem equidade, a igualdade é apenas ficção. O problema da desigualdade é desencadear “o tríplice mal da pobreza, do racismo e da guerra em qualquer lugar do mundo” e isso sempre fora a preocupação vital de King. (SCOTT KING, 2009: 20-21).

Tomando o desafio da desencadeante experiência de Montgomery que conquistara em 1957 e 1960 as Leis dos Direitos Civis, assim como a experiência de Albany na Geórgia, a árdua conquista por um caminho de liberdade em Birmingham, considerada até então a cidade mais segregacionista da América, inspirando a Lei dos Direitos Civis de 1964, e Selma que produzira a Lei do Direito de Voto de 1965, dentre outras tantas peregrinações por cidades americanas do Sul e até mesmo por guetos do Norte, como grande trajetória de luta não violenta, é impossível desprezar a relevância desse líder e da comunidade americana, incluindo negros e brancos, que ofereceram à humanidade, a alternativa de um movimento não violento.

O movimento de Montgomery (KING, 2014: 125) – constituído pela ampla recusa dos negros americanos do estado de Alabama de andar de ônibus de maneira segregada, mas optando por caminharem em vez disso, num boicote brilhante que se utilizou de uma rede particular de veículos e de improviso sem esmorecimento até a sua vitória – representou o início da ação pacifista dos negros americanos que, sob esse formato, possuía Martin Luther King como liderança.

Ainda que alertado pelo próprio King (2014: 82) como uma batalha de difícil entendimento, eis que, no entanto, tratar-se-ia de uma referência instigante para a compreensão, mesmo que insatisfatória, do processo histórico da resistência pacífica. Em suas palavras “nenhum historiador jamais conseguiria descrever de maneira plena esse encontro e nenhum sociólogo seria capaz de interpretá-lo de forma adequada” pois, “era preciso ser parte da experiência para realmente entende-la”.

É King (2014: 81) quem nos apresenta a forma diferenciada com a qual a mobilização aconteceu: “As pessoas ficaram tão entusiasmadas quando as incitei ao amor como quando as incitei ao protesto”. O reverendo de autêntica fé, conquistava, substancialmente, famílias inteiras para que a justiça prevalecesse entre aqueles homens e mulheres. King (2014: 32) estava convicto de que ‘uma religião que termina no indivíduo é uma religião que termina’, isto é, qualquer religião que se preocupe apenas com as almas dos homens sem se importar com as favelas a que eles estejam condenados, com suas péssimas condições de vida, com uma situação econômica e sociais que os debilitem é uma religião “espiritualmente moribunda”.

 

De um lado, devo tentar transformar a alma dos indivíduos para que suas sociedades possam ser transformadas. De outro, devo tentar transformar as sociedades para que a alma do indivíduo sofra uma mudança. Assim, devo preocupar-me com desemprego, favelas e insegurança econômica. Sou um defensor convicto do evangelho social. (KING, 2014: 33)

 

É um erro subestimar o poder da fé, da religião ou de quaisquer outros valores que foram capazes de galvanizar pessoas a causas, no entanto, o que se observa na história da resistência negra que possuía King como uma de suas lideranças mais notáveis, é a enorme capacidade de abstração do que há de essencial no elo que os mantivera unidos na causa, isto é, o amor, este, a bandeira maior da ação libertadora de King e de homens como W. G. Anderson em Albany e Fred Shuttlesworth em Birmingham, que de modo algum, fora somente representativa, mas vivenciada umbilicalmente entre todos aqueles que abraçaram a luta e resistiram até a consolidação das vitórias subsequentes.

Conforme king (2014: 69), só no caso de Montgomery, tratou-se da história de 50 mil negros que com seriedade assumiram os princípios da não violência, aprendendo a lutar pelos seus direitos com as armas do amor, vindo a atingir nesse processo, um novo patamar de seu próprio valor humano.

Para King (2014: 81), o amor não era apenas um dos pontos fundamentais da fé cristã: “há um outro lado chamado justiça” diz ele, “ao lado do amor está sempre a justiça, e só estamos usando as ferramentas que ela nos proporciona”. Como já mencionado, em toda a história da humanidade, são as paixões que comandam as sublevações e revoluções, King (2014: 35) diria isto de outra forma, isto é, “a história é guiada, em última instância, pelo espírito, não pela matéria”.

Propagada por homens como King, a história é diferenciada por combinar militância e moderação pela substância de seus protestos, onde homens e mulheres se entusiasmaram por conquistar dignidade e justiça, em nome do amor fraternal que trocou o ódio pela tolerância, diferenciando-os da hostilidade com a qual eram frequentemente tratados pela comunidade branca. Assim, “a resistência não violenta tinha se tornado a técnica do movimento, enquanto que o amor continuava sendo seu ideal moderador” (KING, 2014: 89).

Apesar da estratégica pacifista, King (2014: 90) tinha consciência de que, muito provavelmente, a maioria deles não acreditava na não violência como filosofia de vida e compreendia sua eficácia pela confiança que eles possuíam em suas lideranças, o que necessariamente envolvia o fato de que a não violência era uma expressão do cristianismo em ação. Em sua autobiografia, King (2014: 124-125) menciona um episódio em que uma mulher negra ao sentar-se num ônibus em local anteriormente destinado exclusivamente aos brancos, não revidara um tapa que havia levado de um homem branco, afirmando que poderia ter reagido fisicamente de modo danoso ao tal sujeito, mas que preferira cumprir com sua determinação de atender ao pedido do reverendo King em assembleia recente.

King (2014: 43) estava ciente de todo o processo e não permitiu cair nas “ilusões de um otimismo superficial a respeito da natureza humana e os perigos de um falso idealismo”, compreendendo “a complexidade do envolvimento social do homem e a realidade patente do mal coletivo”. A tendência a interpretar “o pacifismo como uma espécie de resistência passiva ao mal” expressando “uma confiança ingênua no poder do amor” era muito mais presente no senso comum, mas essa grave distorção não encontrava ressonância na mente de King (2014: 42) que conhecia verdadeiramente o caminho de Gandhi.

 

Gandhi foi provavelmente a primeira pessoa na história a elevar a ética do amor de Jesus acima da mera interação entre indivíduos como uma força social amplamente poderosa e eficaz. Para Gandhi, o amor era um forte instrumento de transformação social e coletiva. Foi nessa ênfase de Gandhi no amor e na não violência que descobri o método de reforma social que estava procurando. (KING, 2014: 39-40).

 

Observou assim King (2014: 42) de que “o verdadeiro pacifismo não é uma não resistência ao mal, mas uma resistência não violenta ao mal”. Tratar-se-ia do “enfrentamento corajoso do mal pelo poder do amor”, acreditando que melhor é ser objeto e não sujeito da violência, já que de outra forma ela só multiplicaria ainda mais. Ele compreendeu que somente a não violência é quem pode “desenvolver no oponente um sentimento de vergonha, e assim produzir uma transformação e uma mudança de disposição”.

Em 1963, numa tarde de domingo, em Birmingham, centenas de negros realizaram um encontro de oração próximo à cadeia municipal. Bull Connor, autoridade que se consagrou inimiga dos cidadãos negros e contrária aos direitos civis destes, ordenou que levassem os cães policiais e as mangueiras de incêndio. Os manifestantes, ao se aproximaram da divisa entre as áreas branca e negra da cidade, deparam-se com a ordem de Connor para que voltassem. O reverendo Charles Billups, líder da passeata, educadamente não obedeceu. Enfurecido, Bull Connor ordenou gritando aos seus homens para que ligassem as mangueiras contra eles (KING, 2014: 253-254):

 

O que aconteceu nos trinta segundos seguintes foi um dos eventos mais fantásticos da história de Birmingham. Os homens de Bull Connor ficaram olhando os manifestantes. Estes, muitos de joelhos, preparados para não usar nada, exceto o poder de seus corpos e almas contra os cães policiais, os cassetetes e as mangueiras de Bull Connor, devolviam os olhares, imóveis e sem medo. Lentamente os negros se levantaram e começaram a avançar. Os homens de Connor, como que hipnotizados, recuaram, as mangueiras permanecendo inúteis em suas mãos enquanto centenas de negros passavam por eles, sem demais interferências, para realizar sua reunião de oração conforme planejado. Ali senti, pela primeira vez, o orgulho e o poder da não violência. (KING, 2014: 254).

 

King (2014: 46) possuía uma fé profunda nas possibilidades humanas para ele quando as mesmas estavam harmonizadas com os planos divinos, compreendidos como recusa radical à violência, na convicção de que esta, de nenhuma forma, possui qualquer ação libertadora, ou etapa necessária à “boa sociedade” (ALBORNOZ, 2002: 52), como, pelo contrário, deu-se “no romântico revolucionário que reconhece em certa espécie de ação violenta um caráter positivo – de oposição ao conformismo, de resposta corajosa e nobre ao status quo de injustiça, e que teve longa tradição na época moderna”. (ALBORNOZ, 2002: 28). A igreja ou o templo de King estava na sua prática e seu efeito estava na realização das conquistas do movimento, sem abrir mão do seu I have a dream, e sendo capaz de contrariar uma eventual contradição cristã de “violência santa” (ALBORNOZ, 2002: 84).

Em 1963, na cidade de Birmingham, pastores brancos criticaram o reverendo, pedindo um fim às manifestações. Em resposta aos pastores, acomodados com a ordem e indiferentes às injustiças, King (2014: 242) afirmou que a igreja possuía uma voz fraca, improdutiva e com um som ambíguo, sendo desta maneira, uma arquidefensora do status quo, o que causava conforto à estrutura de poder em geral, no lugar de presença moralmente ameaçadora que a igreja poderia representar. Assim, ela mantinha uma postura de aprovação silenciosa quando não, muitas vezes mesmo declarada, das coisas como elas são.

Apesar da iniciativa do reverendo Fred Shuttlesworth que na cidade mais segregacionista da América, organizara em 1956 o Movimento Cristão pelos Direitos Humanos do Alabama para tentar combater o domínio racista e terrorista de Bull Connor (KING, 2014: 210-211), “a maior tragédia de Birmingham não era a brutalidade dos maus, mas o silêncio dos bons” (KING, 2014: 210),

Shuttlesworth e sua família foram brutalmente atacados, espancados, esfaqueados, também atingidos por uma bomba que havia deixado sua casa completamente destruída e chegaram a ser presos por oito vezes. A violência dos racistas, instituída pelas autoridades locais, e tacitamente permitida pelos pastores brancos, era sempre a resposta aos que tentavam pôr um fim a uma vida de opressão. Naturalmente, King e sua liga, isto é, a SCLC – Conferência da Liderança Cristã do Sul, uniram seus esforços ao lado de Shuttlesworth.

Manobras jurídicas também eram usadas como recursos contra o crescimento das manifestações antissegregacionistas e em Birmingham, o movimento desencadeou num episódio de desobediência civil. As prisões eram previsíveis e comuns no percurso, as sabotagens do sistema tornavam a luta árdua, como a elevação do valor das fianças para dificultar o pagamento. No meio de todo esse tumulto, a determinação na conduta não violenta era mantida e a aprovação popular era crescente, incluindo ajuda financeira e apoio moral do mundo inteiro, como do cantor, músico, ativista político e pacifista Harry Belafonte que em determinada ocasião “conseguiu levantar 50 mil dólares para pagar fianças”. (KING, 2014: 225).

 

Um dos resultados mais gratificantes foi a inédita demonstração de unidade apresentada pela comunidade negra nacional em apoio à nossa cruzada. De todo o país vieram pastores, líderes dos direitos civis, atores, atletas de ponta e cidadãos comuns negros, prontos a se pronunciarem em nossas reuniões ou a se juntarem a nós na cadeia. O Fundo Educacional e de Defesa Jurídica da NAACP veio em nosso auxílio diversas vezes, tanto com dinheiro quanto com especialistas jurídicos talentosos. Muitos outros indivíduos e organizações deram contribuições inestimáveis em termos de tempo, dinheiro e apoio moral.(KING, 2014: 261).

 

Logo no início de sua militância, em Montgomery, King e sua família sofreram um atentado. Uma bomba fora jogada em sua casa em 30 de janeiro de 1956.

 

Não consegui dormir. Deitado naquele tranquilo quarto da frente, com o brilho tranquilizador de uma distante lâmpada de rua atravessando a cortina da janela, comecei a pensar na perversidade das pessoas que haviam lançado aquela bomba. Senti a raiva tomar conta de mim ao perceber que minha mulher e minha bebê poderiam estar mortas. Pensei nos comissários municipais e em todas as declarações que tinham feito sobre mim e sobre os negros em geral. Estava novamente à beira de um ódio corrosivo. E mais uma vez me contive e disse: ‘você não pode permitir tornar-se amargo’. (KING, 2014: 104).

 

Além de atentados, repressões policiais repletas de violências e prisões arbitrárias de King e dos demais companheiros de luta que desafiavam o sistema seriam frequentes em todas as cidades em que o negro abraçou a causa antissegregacionista. A luta pacifista seguia com o martírio da brutalidade e da morte, isso significou grandiosa “coragem inflexível de indivíduos dispostos a sofrer e sacrificar-se por sua liberdade e dignidade” como observou King (2014: 75).

Logo após ao episódio da bomba, King, humanamente testado pelas reações previsíveis à agressão sofrida, foi capaz de permanecer na escolha do caminho da não violência: “Eu já tinha percebido que a doutrina cristã do amor operando por meio da não violência de Gandhi era a mais poderosa arma de que o negro dispunha em sua luta por liberdade”. (KING, 2014: 88-89).

E King ia além disso, não era somente promover a liberdade dos negros, mas de estabelecer outro patamar entre negros e brancos, em suas palavras, “ a consequência da não violência é a criação de uma comunidade de amor, de modo que, terminada a batalha, nasce uma nova relação entre oprimidos e opressores”. (KING, 2014: 154).

Contudo, não se tratava de tarefa fácil, isto é, a aceitação de brancos unidos aos negros, apesar dos anos de militância pacifista e dos devotados brancos que junto deles sofreram o martírio pela causa da justiça racial, as frustrações do movimento abatiam os ânimos dos homens e mulheres negros que permaneciam sofrendo os horrores da discriminação pela maioria branca. Quanto a esse aspecto, King (2014: 373) observou “eu deveria me lembrar de que decepção produz desespero e desespero produz rancor, e que a única coisa certa em relação ao rancor é a sua cegueira”. Nesse contexto, alguns líderes cogitavam abandonar a não violência, mas King permaneceu convicto de que isso seria um grande erro.

 

Tal como a vida, a compreensão racial não é algo que se encontre, mas algo que devemos criar. O que encontramos ao entrar nessas planícies mortais é a existência, mas a existência é a matéria-prima a partir da qual se deve criar a vida. Uma vida feliz e produtiva não é algo que se encontre, é algo que se faz. E da mesma forma a capacidade de negros e brancos trabalharem juntos, de compreenderem uns aos outros, não será encontrada pronta; deve ser criada através do contato. (KING, 2014: 375).

 

Com essa consciência da necessidade de um esforço conciliatório entre negros e brancos, King orientava o movimento que, em determinado momento, 1966, estava inclinado a rejeitar a participação dos brancos em nome de um suposto fortalecimento da causa negra. “Greenwood se tornou o local do nascimento do slogan Poder Negro no movimento dos direitos civis” (KING, 2014: 376), mas King (2014: 377) via isso com reservas. “Eu tinha um sentimento profundo de que a escolha das palavras desse slogan fora infeliz. Além disso, achava que ele provocaria uma divisão nas fileiras dos manifestantes”.

King (2014: 379) sabia que o caminho não era um slogan, mas um programa em que se devesse usar meios criativos de acumulação de poder político e econômico, trabalhando na construção do orgulho racial e refutando a imagem pejorativa de que negro era feio e mau. Ainda assim, King (2014: 380) compreendia que Poder Negro era um grito de decepção e havia nascido das feridas profundas do desespero. “Por séculos o negro tem sido aprisionado pelos tentáculos do poder branco. Muitos negros perderam a fé na maioria branca porque o poder branco, detentor do controle total, deixou-os de mãos vazias”. Assim, Poder Negro como clamor, representava uma reação ao fracasso do poder branco, “para contrabalançar a força dos homens que ainda estão determinados a ser senhores em vez de irmãos”. (KING, 2014: 384).

 

O poder negro foi uma reação psicológica à doutrinação igualmente psicológica que levou à criação do escravo perfeito. Embora essa reação tenha levado a respostas negativas e irrealistas e frequentemente provocado palavras e ações destemperadas, não se deve desprezar o valor positivo de se apelar ao negro para que assuma um novo senso de bravura, um sentimento profundo de orgulho racial e uma nova valorização de sua herança. O negro tinha de abraçar uma nova compreensão de sua dignidade e de seu valor. Tinha de enfrentar um sistema que ainda o oprimia e desenvolver um senso inequívoco e grandioso de seu próprio valor. Não podia mais ter vergonha de ser negro. Não é fácil a tarefa de despertar a bravura de um povo que por tantos séculos fora ensinado que não era ninguém. (KING, 2014: 384).

 

Destarte essa bravura fora canalizada pelo caminho da não violência, poder capaz de salvar o homem negro, mas também o branco, pois que são irracionais os temores que sustentam a segregação racial, “como os da perda de privilégios econômicos, mudança de status social, casamento misto e adaptação a novas situações” (KING, 2014: 389). Para King, “somente aderindo à não violência – que também significa amor em seu sentido mais poderoso e impositivo – é que o medo da comunidade branca será mitigado”. (KING, 2014: 389).

A não violência do negro americano fora embalada pelas canções da liberdade. As assembleias realizadas por eles tinham os cânticos como ritual importante, King (2014: 216) chegou a denominá-las a alma do movimento. Não se tratava apenas de um fortalecimento da campanha antissegregacionista, mas de remeter a todos às raízes mais profundas da história do negro na América, pois as canções foram adaptadas de músicas feitas ainda pelos escravos com teor de lamentos, alegria, encorajamento, hinos de um velho movimento.

 

Em nosso movimento não violento, somos mestres em desarmar as forças policiais; eles não sabem o que fazer. (…). Caminhávamos às centenas e Bull Connor mandava soltarem os cachorros, e eles vinham. Mas nós enfrentávamos os cães cantando. (…) ‘sobre minha cabeça vejo a liberdade no ar’, E éramos jogados nos camburões e por vezes amontoados como sardinhas em lata. E eles nos jogavam lá dentro e o velho Bull dizia: ‘levem eles embora’. E eles o faziam e nós seguíamos no camburão cantando: ‘nós vamos vencer’. E várias vezes éramos presos e víamos os carcereiros nos olhando pelas janelas, sensibilizados por nossas preces, por nossas palavras e por nossas canções. (KING, 2014: 424-425).

 

Os cânticos de liberdade eram entoados “pelo mesmo motivo que os escravos os cantavam porque nós também estamos submetidos à servidão e esses cânticos reforçam nossa determinação de que ‘nós vamos vencer, negros e brancos juntos, nós vamos vencer um dia’” (KING, 2014: 216). Desse modo, a união era constituída, as músicas lhes davam coragem e os ajudavam a marchar juntos apelando por voluntários não violentos para servir naquele exército.

 

Em grupos de vinte, trinta ou quarenta, as pessoas se apresentavam para se alistar no nosso exército. Não hesitávamos em chamar nosso movimento de exército. Era um exército especial, sem suprimentos que não a sinceridade, sem uniforme que não a determinação, sem arsenal que não a fé, sem moeda que não a consciência. Era um exército capaz de cantar, mas não de matar. (KING, 2014: 217).

 

Um exército que marchava sob a firme liderança de King (2014: 218) que estava crente de que “Deus me deu, de alguma forma, o poder de transformar em fé e entusiasmo os ressentimentos”, certamente porque esse líder sabia conduzir suas palavras: “minha fala vinha do coração e a cada encontro obtive firmes manifestações de aprovação, juntamente com promessas de participação e apoio”.

Não há faltas quanto ao senso de justiça que questiona o amor e o coloca como suspeição (ALBORNOZ, 2002: 86) se a recusa à violência, ainda que sob os moldes de restauradora da justiça, for substituída pela ação não violenta onde a paz realmente é luta. Não se fugiu às peregrinações, às marchas, aos protestos, à necessidade da desobediência civil, aos riscos e ao martírio, apenas se trocou as armas que destroem pelas armas que constroem, a agressão pelo canto, o massacre pela esperança, a ruína e o desespero pela oportunidade de tentar outra alternativa de enfrentamento. King destruiu definitivamente, no movimento não violento pelos direitos civis dos negros americanos, a velha preocupação (ALBORNOZ, 2002: 89) de que a não violência favorece os que dominam. Sua luta não perpetuou a violência estruturada do sistema, combateu-a permanentemente.

 

Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o negro enfrenta em seu caminho para a liberdade não é o membro do Conselho dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado, mais devotado à ‘ordem’ do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que consiste na presença da justiça (…) A compreensão superficial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta daquelas de má vontade. (KING, 2014: 235-236).

 

Ele frustra uma eventual manipulação da ideologia da não violência no cristianismo, com atitudes totalmente contrárias aos pastores brancos interessados em parar o movimento. King (2014: 231) tinha plena convicção de que “a liberdade nunca é voluntariamente concedida pelo opressor, deve ser exigida pelo oprimido”.

 

Devo lhes dizer que não conseguimos uma única vitória em matéria de direitos civis sem certo grau de pressão legítima e não violenta. Por mais lamentável que seja, é um fato histórico que os grupos privilegiados dificilmente abrem mão de seus privilégios de maneira voluntária. (KING, 2014: 231).

 

A violência contra eles continuou. Em Selma, a sucessão de assassinatos e espancamentos brutais refletia o ódio e o terror dos racistas pelos que lutavam pelo direito de voto. “Protestantes, católicos e judeus juntaram-se lindamente para expressar as injustiças e indignidades que os negros enfrentavam no estado do Alabama e em todo o Sul no que se referia à questão do direito de voto”. (KING, 2014: 340). Além dos religiosos, a marcha de Selma para Montgomery mobilizou a comunidade acadêmica, intelectuais, sindicatos e entidades pelos direitos civis. “Um fato pouco conhecido é que quarenta dos principais historiadores dos Estados Unidos participaram da marcha para Montgomery”. (KING, 2014: 340). Apesar da conquista da lei federal em 1965, a violência contra eles não cessou, mas a escolha da ação não violenta também não.

Em 1964 King havia sido premiado pelo Nobel da Paz e mesmo assim, com relação ao enfrentamento da violência, o desafio continuou. O grito contra a Guerra do Vietnã em 1967 e a campanha pelos pobres o mantiveram atuantes como foi até o seu último dia de vida.

O resultado da escolha da luta não violenta de King, construída em nome do amor, foi inestimável e mudou radicalmente a história dos movimentos civis americanos. A crescente mobilização desencadeada pelas intensas campanhas tivera momento glorioso na Marcha sobre Washington em 1963, com cerca de 250 mil pessoas que de todos os cantos do país marcaram presença, entre celebridades e cidadãos comuns, muitos deles a partir de sacrifícios pessoais, mas todos compartilhando alegremente um sonho de liberdade e democracia.

 

Aquela enorme multidão era o coração vivo, pulsante, de um movimento infinitamente nobre. Era um exército sem armas, mas não sem força. Era um exército para o qual ninguém tinha de ser recrutado. Era branco, negro e de todas as idades. Tinha simpatizantes de todos os credos, de todas as classes, de todas as profissões, de todos os partidos políticos, unidos por um único ideal. Era um exército em luta, mas ninguém podia ignorar que sua arma mais poderosa era o amor. (KING, 2014: 266).

 

Referências

ALBORNOZ, S. Violência ou não-violência: um estudo em torno de Ernst Bloch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000 (2002 reimpressão). 192 p.

GANDHI, M. K., Hind Swaraj: autogoverno da índia/ M. K. Gandhi; tradução de Gláucia Gonçalves; Divanize Carbonieri; Carlos Gohn; Laura P. Z. Izarra. Brasília: FUNAG, 2010. 152 p.

GENOVESE, E. As Revoltas dos Escravos em uma Perspectiva Hemisférica. In: Da Rebelião à Revolução. São Paulo: Global, 1983, p. 25-61.

______. A Religião dos Escravos em Perspectiva Hemisférica. In: A Terra Prometida: O mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988, p. 267-284.

KING, M. L., 1929-1968. A autobiografia de Martin Luther King/Martin Luther King; organização Clayborne Carson; tradução Carlos Alberto Medeiros. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 463 p.

_______, As palavras de Martin Luther King / Coretta Scott King (org.); tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 127 p.

MORA, J. F. Dicionário de Filosofia, tomo IV (Q-Z). São Paulo: Edições Loyola, 2001.

 

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

THOMPSON, E. P. O termo ausente: experiência. In: A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Louis Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 180-121.

 

La geografía en la historia de las relaciones internacionales

Edmundo Aníbal Heredi

CONICET/Universidade Nacional de Cordoba (Argentina)

 

  1. La historia de las relaciones trans-nacionales

El estudio de las relaciones internacionales actuales muestra una fuerte inclinación hacia las relaciones políticas, estratégicas y económicas, aunque recientemente hay un notorio incremento por la orientación hacia los desplazamientos poblacionales y por lo que ellos inciden en los otros tipos de relaciones. En general, esta misma apreciación corresponde formular cuando se trata de la historia de estas relaciones. Otros factores dignos de ser tenidos en cuenta por su importancia en la vida de los pueblos son las cuestiones ambientales o culturales, por cuanto constituyen valores fundamentales en la vida de los pueblos y en consecuencia en las relaciones entre países y entre naciones.

Y esto resulta más significativo en cuanto se han desarrollado líneas importantes en la investigación en ciencias sociales que aprovechan los elementos de otras disciplinas; tal ocurre con los de naturaleza geográfica que han derivado en nuevas disciplinas, como las que se ocupan de las cuestiones geo-históricas, geo-culturales, geo-políticas, cada una de ellas con sus teorías y sus metodologías, y en las que se marca con fuerza decisiva la adherencia del hombre al suelo.[i] A su vez, una rama perteneciente a la geografía, la geografía histórica, que Claude Cortés ha definido como “una percepción temporal de los problemas espaciales”, aproxima a ambas disciplinas hacia objetivos comunes o compartidos.[ii]

También es necesario considerar que las cuestiones territoriales de las naciones, que necesariamente han necesitado recurrir a los conocimientos geográficos, han sido tratadas desde teorías muchas de ellas originadas en la observación de las situaciones europeas, muy diferentes a las de América Latina, lo que hace necesaria la creación de teorías propias o cuidadosamente adaptadas. Estas cuestiones han sido muy diferentes si se las compara con las europeas, desde las referidas a las dimensiones espaciales, a las superficies de los territorios en su relación con la densidad de las poblaciones, a su relativa ubicación en el planeta, a las comunicaciones interoceánicas, a la disponibilidad y usufructo de las riquezas naturales, a los desplazamientos poblacionales, a las cuestiones relativas al poder (como las dinásticas y hereditarias) y otros problemas ajenos o diferentes de la realidad latinoamericana. En tanto, el origen de las naciones europeas para muchos como Michel Foucault tiene su explicación y racionalidad en razones idiomáticas –como que el nombre de las naciones es el de su idioma- y también en antecedentes lejanos que se remontan a sagas y leyendas, y hasta a una literatura nacional representada en modelos ejemplares, todo ello diferente a los orígenes de las latinoamericanas.

Estas observaciones nos conducen, en fin, a buscar en la propia realidad latinoamericana la elaboración de teorías que sirvan para explicar sus propios procesos históricos, entre ellos la formación de sus naciones. Si nos referimos particularmente al Cono Sur parece obvio que lo que predominó en esos estudios hasta el último tercio del siglo XX fue el de las cuestiones territoriales y limítrofes, y ello porque entonces aún el mapa de esta América Latina deparaba incertidumbres originarias de conflictos que, aunque bilaterales o trilaterales, repercutían en todo el sector; entre ellos eran muy sensibles los que enfrentaban a Perú y Ecuador, cuyas preocupaciones excedían a las de las dos naciones por cuanto su contención era protegida por los gobiernos de otras cuatro naciones vecinas; y la que mantenían Chile y Argentina por el Canal de Beagle, que a su condición de unir océanos agregaba su ubicación próxima al sector antártico pretendido a nivel mundial, lo que implicaba la atención de otros países interesados en tener protagonismo en estos espacios, incluso de potencias geográficamente lejanas. Ante aquella realidad, la historiografía de las naciones latinoamericanas involucradas se hacía eco de estas preocupaciones, remontándose a antecedentes tan lejanos como el Tratado de Tordesillas (1494), concertado sobre bases cartográficas y documentales muy inciertas y a territorios en su mayor parte desconocidos entonces.

Al comenzar el siglo XXI estas cuestiones han sido en buena parte superadas y, aunque subsisten otras menores, lo cierto es que justificadamente la historiografía ha dejado de poner su atención preferente a estos temas, en tanto focaliza esa atención en las cuestiones presentes o presentidas, mirando hacia el futuro.

Así, podemos decir que actualmente hay una historia de las relaciones internacionales, una historia de las relaciones inter-regionales y una historia de las relaciones trans-nacionales. Si bien la denominación de “relaciones internacionales” es usada en forma abarcadora comprendiendo a las otras dos o a otras que tratan de la vida internacional, debe distinguirse en cuanto trata del protagonismo de las naciones como tales a partir de sus aparatos estatales, es decir entre los gobiernos y de organizaciones supra-nacionales, sobre todo, como dijimos, y focalizadas en las de carácter político, económico o estratégico. Quizá en el futuro debamos reconocer otra rama de estos estudios, que adquiera su propia identidad y en la que reconozcamos el protagonismo de otro actor de las relaciones, al que podemos denominar genéricamente gente, es decir todas las personas, que a menudo son consideradas más bien como objetos que como sujetos de las relaciones entre países y entre naciones.[iii]

 

  1. La historiografía latinoamericana de los conflictos territoriales

Un intento generalizador se enfrenta con una diferencia sustancial entre la historiografía de las naciones hispanoamericanas y la brasileña, simplemente porque los orígenes coloniales de la ocupación de espacios fueron diferentes en uno y otro caso. En tanto el plan imperial español consistió en la creación de diversas y complementarias administraciones territoriales, con sus diversas capitales y circuitos conducentes a la mejor explotación de sus riquezas del suelo y del subsuelo, muy diferente a la colonización portuguesa que unificó el centro de poder en una sola capital. Aquí preferimos poner mayor atención en el plan imperial español en América.

Aquellas disputas por los territorios nacionales tuvieron como corolario que, correlativamente, la historiografía de cada nación se ocupara preferentemente de esos temas; parecía natural que los historiadores no pudieran desprenderse de su sentimiento nacional, y por tanto sus interpretaciones discreparon vehementemente con las que presentaban los historiadores de los vecinos en conflicto. Entre ellas, las cuestiones territoriales entre las naciones Andinas y entre las naciones que comparten la Cuenca del Plata fueron las más resonantes, y hasta modelaron durante mucho tiempo los programas de gobierno de las naciones involucradas; aún la historiografía que trata de cada nación en particular presenta esa característica.[iv]

La reflexión anterior adquiere un interés adicional en la comprobación de que los límites geográficos de estas naciones, por lo general, se han formalizado en Tratados internacionales a partir de antecedentes históricos controvertidos y de todos modos subjetivos por cuestiones nacionalistas. Estos Tratados han sido alcanzados luego de un proceso de hondos conflictos y varios de ellos luego de enfrentamientos armados; para su formalización ulterior se han utilizado referencias geodésicas o arcifinias, o en su defecto mojones demarcadores. De más está decir que a menudo esas convenciones desafían o ignoran a la historia y a la geografía, bajo pretendidos hechos determinantes, confusas cartografías o derechos adquiridos con la fuerza de las armas.

Si se piensa en el caso de los países hispanoamericanos los límites de los territorios que luego fueron provincias y naciones partieron de un plan de colonización imperial basado en la fundación de ciudades y con la atención puesta en la explotación de recursos naturales y en las disputas con otras potencias colonialistas europeas; esto condicionó fuertemente la naturaleza de sus orígenes y la gravitación de ello en su desarrollo. En efecto, en la América colonizada por España las ciudades fueron los orígenes de las organizaciones administrativas dentro de ese plan imperial, con un espacio en su entorno que fue la base de las provincias y de las naciones, las cuales no fueron necesariamente centros de regiones, sino meramente centros administrativos que respondían a aquel plan imperial.

Así observamos que la primera controversia en la historia de la mayoría de estas naciones al iniciar su vida independiente fue en cuanto a su delimitación territorial. El primer acuerdo, aunque provisorio e inestable, fue el de admitir en los Tratados los límites que tenían los Virreinatos, Capitanías Generales, Audiencias o Gobernaciones, según la situación vigente en el momento del inicio de las revoluciones de independencia, esto es en el año 1810. Pero las guerras que se sucedieron en la lucha emancipadora ocasionaron desplazamientos militares, traslados de los centros de poder y otras situaciones innovadoras, hasta que en 1824 se obtuvo la emancipación definitiva y se dio término al poder español, por lo que fue necesario recomponer los criterios iniciales. Esto parece para muchos “historia antigua”, pero no lo es tanto, porque aún permanecen insuperados algunos conflictos territoriales durante un tiempo dormidos y que reaparecen cuando asumen gobiernos que buscan reavivarlos como manera de reivindicación histórica o para afianzar su poder.

Fue así que durante decenas de años sesudos estudiosos se introdujeron en los archivos europeos y preferentemente españoles para buscar los antecedentes de los derechos de su nación en sus controversias con los vecinos; así nació luego una historiografía nacionalista de gran desarrollo, porque esos mismos buceadores, luego de producir sus informes a las autoridades elaboraron una profusa bibliografía que hoy cubre un sector importante en los anaqueles de las bibliotecas nacionales.

 

  1. La región y las relaciones trans-nacionales

Dentro de esta vasta gama de la historia de las relaciones entre países y regiones está el de las relaciones trans-nacionales, que se refiere esencialmente a un espacio geográfico habitado comprensivo de territorios perteneciente a más de una nación, esto es que participa de la frontera entre naciones, y al que llamamos región trans-nacional.

En primer lugar hay que reconocer que el término región ha sido empleado con distintas acepciones, según el marco temático en que se lo encuadra, y una de ellas bien puede ser la que se aplique a las relaciones internacionales; pero debe reconocerse que la geografía es su ámbito esencial, por cuanto se refiere a un espacio específico de este planeta. El término región ha sido considerado como una wild card, como un comodín al que se lo define de acuerdo a la función que se le adjudica en el contexto de que se trata. Por tanto, para que el concepto de región sirva para profundizar y esclarecer las relaciones entre las naciones latinoamericanas es preciso conceptualizarla adecuadamente, considerando que se trata no sólo de una metodología apropiada para el análisis, sino también como una actitud de los investigadores para alcanzar un conocimiento más acabado y profundo de su objeto de estudio.

Para los historiadores de las relaciones trans-nacionales los mapas que concitan su atención son los de las regiones, es decir espacios geográficos que se identifican por su naturaleza y por su presencia humana y que son compartidos por dos o más naciones, por lo que tienen en su mente o en su mesa de trabajo mapas de las regiones junto a mapas superpuestos de las culturas y civilizaciones originarias, de las establecidas en los tiempos coloniales y de las que corresponden a partir de las formaciones nacionales. Si se superponen estos mapas uno sobre otro en transparencias, se tendrá una imagen mucho más compleja pero también más rica de los espacios geográficos y de su profunda incidencia en la historia de estas naciones y de las relaciones entre sí.

En esos mapas ocupan lugar destacado los sistemas urbanos jerárquicos, definidos por Chase-Dunn, y ésta es una de las características que nos vienen de la geografía.[v] En efecto, así como el nacimiento de las ciudades capitales latinoamericanas fue el fijado por sus metrópolis imperiales, esto es bajo el signo de la dominación colonial, los procesos de urbanización en América Latina han sido impulsados también por estímulos externos. Con ser una cuestión propia de la organización interna de los Estados, el fenómeno de la primacía en la jerarquización urbana deviene en una cuestión íntimamente relacionada con la vida internacional. Esa vinculación es explicable en tanto en aquellos planes imperiales predominaron la mejor conexión con la metrópoli europea y la desconexión interna, y esa estructura se mantuvo luego en la vida independiente, con dos excepciones ejemplares en América, las de Estados Unidos y Brasil, el primero fundando una capital desde el inicio y el segundo mudándola con el tiempo y buscando la interiorización de su país.

Este método da lugar a que la historia regional trans-nacional se confunda con algunos enfoques geo-políticos, pero sin embargo ambas perspectivas pueden también ser consideradas como antitéticas, pues la práctica de la geo-política se ha sustentado en hipótesis de conflictos y en el análisis de las estrategias de los Estados para resolver en su favor esos conflictos, en tanto las cuestiones trans-nacionales son estudiadas más bien como unidades espaciales compartidas por naciones.

La conjugación de la historia con la geografía, con la antropología, con la psicología social, han dado como síntesis una configuración del espacio que aparece como una recreación que el hombre hace de la naturaleza en función de creencias, de culturas y de necesidades materiales que dan como resultado hechos, imágenes, signos y símbolos que conforman en definitiva la idea de espacio; de ahí la idea de región y su materialización. La valorización del paisaje cultural, que es observado tanto por científicos como por artistas, resulta clave para la comprensión de una región histórica, y es donde se confunden la geografía y la historia y entonces puede asegurarse que ya estamos ante una visión interdisciplinaria, porque ambas disciplinas se inter-penetran. Una definición demasiado escueta pero que sirve para iniciar el diálogo es que la región es un espacio humanizado.

Es evidente que cuando hablamos de una región no podemos usar las mismas varas que para medir el espacio territorial de una provincia o de una nación, porque la región no tiene límites precisos; así como un territorio perteneciente a una provincia o a una nación es como el agua contenida en un recipiente, la región es como el agua derramada en una superficie espacial, es decir que el mapa que la representa no es absolutamente preciso, salvo cuando hay decisivos accidentes naturales que así lo imponen. Esto parece evidente cuando hablamos de regiones en los que los elementos naturales son significativos, por ejemplo los ríos, que originan la formación de culturas fluviales; en efecto, los ríos pueden ser determinantes de una región, la misma a un lado y a otro de su cauce, pero en cambio los poderes políticos se han empeñado en que cumplan el rol de divisorios de naciones, utilizando la línea del cauce más profundo, obrando así no sólo en contra de la naturaleza sino también de la cultura común de sus pobladores.

Así, la superposición del espacio del territorio nacional con el del espacio regional presenta correspondencias pero también divergencias, y es probable que sean más fuertes éstas que aquéllas. Por eso una etapa importante del proceso intelectivo de regionalización es la comparación, la distinción, la consideración de las compatibilidades y las incompatibilidades existentes entre las dos categorías espaciales. Si tomamos como ejemplo el caso argentino observamos que hay al menos dos de este tipo, la Circunpuneña, compartida por Chile, Bolivia y Argentina y la de la Triple Frontera, compartida por Paraguay, Brasil y Argentina, a las que puede agregarse, no obstante la distinta densidad poblacional, El Gran Chaco, que comprende superficies de Argentina, Paraguay y Bolivia, y que ha sido la motivación de una guerra regional. También encontramos esta característica en la frontera de Brasil con Paraguay y Uruguay, en la de Ecuador con Perú y Colombia, etc.

Lo mismo puede decirse con respecto a la temporalidad, porque las regiones, salvo las llamadas regiones-plan, no fueron creadas por decretos gubernamentales, sino que responden a procesos colectivos en que por lo general es difícil determinar cuándo un espacio se convirtió en una región, es decir cuándo un espacio natural se convirtió en un espacio humanizado y singular. Quizá sea posible encontrar alguna vinculación con estas antinomias y correspondencias entre Geografía e Historia en el hecho de que Brasil creó su Instituto Geográfico e Histórico ya en 1838, durante el Imperio y formando parte de su política continental, al que se agregaron luego otros similares en varios de sus Estados; en tanto, el Instituto Panamericano de Geografía e Historia fue creado en 1928 dentro del contexto panamericanista liderado por los Estados Unidos, lo que fue una nota más de su vocación hegemónica.

No se hablaba entonces de inter-disciplina, pero sí de una especie de sociedad complementaria para entender las cuestiones involucradas en el tiempo y en el espacio que debían enfrentar las naciones americanas para su desarrollo, convivencia y confrontaciones. En esta secuencia cronológica debemos intercalar la creación de la Academia Nacional de la Historia de Argentina en 1893, en un contexto ideológico que menospreciaba su inserción en el contexto latinoamericano y sin aludir a vinculación alguna con la geografía, lo que da lugar a analizar las motivaciones del contraste con las anteriores.

La historia tradicional y evocativa sigue confundiendo el concepto de regionalización con el de regionalismo, lo segundo como “amor o apego a determinada región de un Estado y a las cosas pertenecientes a ella”, como dice el Diccionario, aproximándose así a una forma de la creación literaria. Es lo que el mexicano José María Muriá llama “historia matria”, en oposición a la historia nacional o “historia patria”. Ambos términos, en lugar de ser concurrentes, resultan ser divergentes si se circunscriben a una nación, y pueden constituir un obstáculo a priori en el proceso intelectual de búsqueda de una regionalización del espacio. Así también una historia academicista sigue distinguiendo la “historia nacional” de las “historias provinciales”, encerrando estos términos en los marcos políticos y en las instituciones oficiales.

Obviamente, la propuesta es salir de estas categorías en que se encasilla la historia, lo que es necesario para llegar a este concepto de región en su aplicación a las relaciones trans-nacionales. Esta manera de entender la región incorpora la posibilidad de la existencia de hechos y fenómenos recurrentes, de regularidades de ciclos y procesos, de inter-relaciones en las secuencias temporales, tanto sincrónicas como diacrónicas.

Así, la región como espacio trans-nacional debe ser concebida como parte de un todo, y según el objetivo ese todo puede ser el Cono Sur o, mejor aún, América Latina. Una hipótesis que sirve de fundamento teórico para la regionalización es que las regiones forman parte de un conjunto por la confluencia y encuentro de factores históricos, geográficos, culturales, etc. En resumen, estas unidades se caracterizan por ser parte integrantes de un todo y por tanto son partícipes de los fenómenos que ocurren en su totalidad (principio de participación), tienen una especificidad propia que las distingue de las demás (principio de especificidad) y cumplen la función de relacionamiento entre otras regiones y de sí misma con las demás (principio de inter-relación).

Ello demanda estudios que superen las monografías dedicadas a determinados espacios regionales hasta aproximarse a la comprensión del conjunto; de este modo incorporamos a la idea de la diversidad las de regularidad y recurrencia. La incorporación de las relaciones trans-nacionales a la relaciones internacionales propiamente dichas están indicando que no hay una división entre la historia de una nación y la historia de sus relaciones internacionales en tanto la nación participe de una región-transnacional, y allí ya puede hablarse del abordaje de un estudio de una historia de sus relaciones internacionales que queda imbricada en la de las relaciones trans-nacionales, para lo cual es necesaria una visión inter-disciplinaria.

Pero he aquí que desde hace unos decenios ha aparecido el fenómeno de la globalización. Esto nos obliga a pensar en si es posible la compatibilidad entre regionalización y globalización como procesos históricos, porque en principio aparecen como dos conceptos antitéticos. La cuestión a dilucidar es si la globalización es una forma de relacionamiento, de interacción y de complementación de las regiones entre sí o en cambio, si la regionalización importa una actitud de rechazo a la globalización. Desde ya puede afirmarse que la regionalización, como proceso histórico constructor de regiones es un moderador de la globalización.

Otro aspecto de la regionalización concerniente al conjunto de las naciones latinoamericanas es que muchos de sus espacios han sido objeto de ocupaciones compulsivas, lo que ha dado lugar a concepciones enfrentadas entre sus mismos ocupantes, es decir que estos espacios no han sido consensuados entre los agentes de la ocupación y los habitantes originarios, y en estos casos las regiones han sufrido un violento proceso en su construcción y desarrollo. Esto nos lleva necesariamente a distinguir y a valorar separadamente a los espacios ocupados compulsivamente, espacios vacíos, espacios semi-vacíos, espacios vaciados.

La inclusión de las regiones trans-nacionales en los estudios de las relaciones internacionales depara otro desafío conceptual, que requiere su propia metodología: identificar y sumar al elenco de los actores a los habitantes de las regiones trans-nacionales, también considerados como habitantes de las fronteras. En términos históricos, en los tiempos coloniales al estar distantes de los centros urbanos no merecieron la atención de las autoridades, y en la era de la formación de los Estados nacionales pasaron a ser utilizados como objetos de conflictos y enfrentamientos; y tratándose de habitantes originarios quedaron fuera del control de los Estados hasta el punto de no aparecer en las estadísticas de población.

Estos estudios pueden ir más allá de la estricta erudición científica y constituirse en propuestas que lleguen también a los funcionarios encargados de sostener políticas internacionales coherentes. Con ello, estos ciudadanos se incorporarán al protagonismo de las relaciones internacionales, junto con los Estados, las corporaciones y todo el plantel reconocido como actores de las relaciones internacionales. De este modo deberemos sumar un nuevo agente (en cuanto actor) de las relaciones internacionales, el de los habitantes de las regiones trans-nacionales.

La investigación historiográfica presenta una dificultad que debe ser vencida con un método apropiado, y una de ellas es que las fuentes estatales proveen información circunscripta sobre la parte de la región de cada nación, y ellas pueden ser difíciles de compatibilizar. En fin, la tarea intelectual de entender la regionalización de América Latina como un todo es un proceso en construcción, que ya registra numerosos estudios monográficos o parciales, los cuales constituyen una base sólida a partir de la cual es posible acometer la gran labor de comprensión integrada de estos espacios. Una combinación adecuada de los factores históricos, étnicos, lingüísticos, económicos, políticos y culturales puede culminar en una concepción inter-disciplinaria en la que el espacio geográfico sea su base material. Es también necesario reconocer que para algunos de esos espacios así delimitados la incidencia de cada uno de esos diversos aspectos puede ser más gravitante que otros en la conformación regional.

Como vemos, en el caso de América Latina la falta de coincidencias entre un mapa político en que se señalan los límites de las naciones y un mapa regional es paradigmático. Esta fue casi una regla en la conformación de los territorios nacionales latinoamericanos, y de ahí es que el concepto de región incorporado al estudio de las relaciones internacionales nos permite obtener un cuadro más completo de esas relaciones en el largo tiempo histórico.

 

  1. Antecedentes precursores y algunos avances actuales

Estos estudios pueden apoyarse en antecedentes precursores de esta vinculación de la historia con el espacio. Entre ellos, nos debemos al alemán Oscar Schmieder, que presentó una visión antropogeográfica en su Geografía regional de América del Sur, de 1932; el de Carlos Badía Malagrida, con su libro El factor geográfico en la política sudamericana, de 1946, en el que postuló una mayor atención de este factor para la consolidación del federalismo en América Latina; este catalán, que tuvo una detenida estancia en México, dijo entonces: “los pueblos hispanoamericanos viven divorciados de su geografía y es preciso restablecer la concordancia entre su estructura política y su estructura natural”, advertencia que después de setenta años sigue teniendo vigencia; el del argentino Federico Daus, entre cuyas obras está su Fisonomía Regional de la República Argentina, de 1959, que introdujo los factores sociales en la conformación de las regiones, y el más reciente del brasileño Milton Santos en cuyo libro Por una Geografía Nueva, de 1990, postula los paradigmas de los problemas del mundo globalizado y la necesidad de colocar a la geografía en la inter-disciplina, lo que le ha valido la calificación de filósofo de la geografía. Por supuesto, hay muchos otros nombres, pero los mencionados constituyen pilares en etapas sucesivas de los estudios geográficos.

A manera de apéndice señalamos algunos aportes actuales que sirven de base valiosa para emprender una historia de las relaciones trans-nacionales e inter-regionales latinoamericanas: en el orden institucional, por lo que conocemos y en un somero extracto pueden citarse para Chile las de Iquique y Talca; la de San Andrés, en La Paz; en Brasil la Federal de Porto Alegre y la de Passo Fundo. Para Argentina las Universidades Nacionales del Comahue, de Salta, de Jujuy, de Misiones, de Cuyo.

 

Entre los investigadores, en Argentina merece citarse a Raúl Bernal-Meza, que analiza el rol de las regiones en la política exterior argentina con respecto a las naciones limítrofes. A Beatriz Figallo, que ha marcado la distinción entre espacios nacionales y espacios regionales argentino-brasileño-paraguayos. A Pablo Lacoste, que ha estudiado los pasos cordilleranos entre Argentina y Chile y sus implicaciones internacionales. A Gabriela Olivera por sus investigaciones sobre el circuito comercial entre La Rioja y el Norte Chico chileno. A Delia Otero, por su análisis de la articulación entre Estado y región de frontera en la región histórica de las Misiones. A Graciela Sturm, por su estudio sobre la región trans-nacional de la yerba mate. A Viviana Conti, por su visión trans-nacional observada desde el Noroeste argentino. A Susana Bandieri, por su análisis de las vinculaciones políticas y económicas entre el sur argentino y el chileno. Al estudio conjunto de Alicia Carlino y Federico Veiravé sobre la formación de bloques subregionales entre Argentina y Brasil. Y especialmente a Hebe Clementi, por su interpretación, casi filosófica, de la frontera en América.

Entre los chilenos cabe mencionar a Luis Castro, que ha planteado propuestas políticas y económicas integradas entre Bolivia, Argentina y Chile. A Eduardo Cavieres Figueroa, que ha intentado una visión global de todo el largo trayecto de la frontera chileno-argentina distinguiendo tres sectores en que prevalece la cooperación y la sinergia. A Sergio Vilalobos y a Leonardo León, que en un trabajo conjunto investigaron aspectos de la sociabilidad en la frontera argentino-chilena-mapuche. A Sergio González Miranda, que ha estudiado los procesos de chilenización en la región circunpuneña y que es un modelo de chileno por su interés en una salida al mar de Bolivia; y a Leonardo Jeffs, que también trabajó con iguales preocupaciones, incluso asumiendo responsabilidades personales.

Desde Brasil, Ana Luiza Setti Reckziegel estudió las vinculaciones políticas entre Rio Grande do Sul y Uruguay, Marcelo Dias las relaciones comerciales de Rio Grande do Sul con sectores platenses de Argentina, Carlos Rangel las cuestiones de nacionalidad ciudadana en la frontera brasileño-uruguaya, Aldomar Rouckert, quien ha sostenido que Rio Grande do Sul es un Estado de internacionalización segmentada, Eduardo Suartman, que ha expuesto conceptos propios de lo regional en las relaciones internacionales. Obviamente, estas menciones no son de ninguna manera exhaustivas ni comprenden a los investigadores de otros países que realizan investigaciones semejantes. Una impresión general de estos trabajos es que además del análisis que cubre el rigor propio de los estudios científicos, son demostrativos de una actitud de compromiso hacia la solución de problemas que se suscitan en estas regiones; esto pone en evidencia que estamos en otra etapa del estudio de las relaciones internacionales, en que la visión nacionalista de otros tiempos ha sido superada en beneficio de una visión integracionista.

Esta lista, obviamente incompleta, sirve para mostrar que nos encontramos ante una rama de las relaciones internacionales latinoamericanas que se encuentra en pleno desarrollo: la de las relaciones trans-nacionales.

[i] La investigación histórica dio un paso trascendental con la escuela francesa de los Annales, desde lacual Fernand Braudel (1902-1985) produjo su obra ejemplar: El Mediterráneo y el mundo del Mediterráneo en la época de Felipe II. Fue todo un desafío erigir al mar como protagonista de la historia.

[ii] Geografía Histórica. México, Universidad Autónoma Metropolitana, 1991.

[iii] V. HEREDIA, Edmundo. Actores emergentes en la historia de las relaciones internacionales latinoamericanas. Visoes de Brasil e da América Latina. Brasília, Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2003.

[iv] Sólo para citar un ejemplo puede tomarse la densa, extensa y monumental obra de Jorge Basadre sobre el Perú, en la que prevalecen las cuestiones conflictivas con sus vecinos andinos y en que los sucesos internos tienen connotaciones internacionales. (Historia de la República del Perú. Lima, Ed. Peruamérica, 1953. Hay ediciones anteriores, pero ésta es la más completa).

[v] CHASE-DUNN, Christopher. El fenómeno de primacía de una ciudad en los sistemas urbanos latinoamericanos: su surgimiento. En: Ciudades y sistemas urbanos. Buenos Aires, CLACSO, 1984.

 

 

+ Este artículo se corresponde con el texto de la conferencia pronunciada el 15 de junio de 2017 en la Universidad de Buenos Aires, durante las XV Jornadas de la Asociación Argentina de Historia de las Relaciones Internacionales y las V Jornadas de la Asociación Latinoamericana de Historia de las Relaciones Internacionales.

 

 

 

 

Apresentação da edição nº 4

Aqui está o quarto número desta serie dos Trabalhos Em Curso e já estamos em busca de artigos e pesquisas para o quinto. Com bastantes dificuldades pois muitos colegas reclamam da falta de oportunidades para publicar mas, uma vez convidados, não apresentam textos. Neste número abrimos com artigo de um dos nossos colegas da Argentina (país de onde nos chega sempre colaboração) . O segundo artigo é de colaboradora da Amazônia, também presente desde o primeiro numero. E em seguida, publicamos a primeira parte (a segunda sairá no número cinco) de texto de autor arménio docente no Lubango (Angola). Este trabalho obrigou a laboriosa tarefa de revisão ortográfica e, não é impossível que erros tenham “escapado”. Encerramos com uma nota sobre Mbanza Kongo, agora patrimônio da humanidade. Não temos ainda data para o próximo número, dependendo das condições financeiras..

Jonuel Gonçalves