Dialética do particular e do geral nas culturas

 Yura Udumyan

                                                               Instituto Superior Politecnico Sinodal

                            Lubango-Angola

                                                         

INTRODUÇÃO

 

A problemática das particularidades culturais dos diferentes povos e a unidade de diferentes culturas sempre interessou aos investigadores. Tais investigações tinham e têm  valor teórico mas sobretudo  valor prático,  pragmático até.

Teóricos, filósofos, sociólogos, grupos sociais ou indivíduos tentam absolutizar, exagerar o papel e lugar  do particular ou do geral na cultura e não só.

A diferença, até contradição, entre a cultura mundial, nacional e local é mais evidente nos países em vias de desenvolvimento, incluindo Angola. É que nestes países, particularmente em Angola, muitos valores e sistemas da cultura, incluindo os sistemas de valorização, foram introduzidos de fora, no caso de Angola da Europa, de Portugal. Os europeus vieram e trouxeram a sua superestrutura social (o sistema de governação europeu, o seu sistema jurídico, sistemas da comunicação social, a sua filosofia, arte, moral, religião).  Tentaram obrigar os locais a esquecer a sua memória social, a sua história. Num certo sentido Angola deixou de ser o sujeito da história, tornou-se só objeto da história. Como resultado disto os angolanos, no seu caminho para o futuro, frequentemente  encontram não os seus antepassados, mas antepassados dos outros. Isto cria sérias dificuldades na via do desenvolvimento. Claro que, como quase todos os fenómenos sociais, este também pode ser qualificado unilateralmente como só negativo. Tem aspetos positivos também.

A introdução, a obrigação e a utilização da cultura do outro, da cultura mundial, durante séculos, teve os seus resultados negativos e positivos. Por exemplo, na Angola atual, como resultado disto, muitos estão inclinados para a Europa, para a cultura mundial, olhando para a cultura nacional ou local com certa ironia. Alguns, sobretudo na capital, orgulham-se de não dominarem nenhuma língua nacional. Alguns jovens, estudantes abertamente, mesmo na sala de aula, vão ao ponto de dizer que preferiam ser  brancos, europeus, por exemplo francêses.

Ao contrário desta visão unilateral formou-se e existe uma outra aproximação diametralmente oposta que, num certo sentido, é resposta à visão acima referida; é autodefesa e, em certos quadros, tem um conteúdo democrático. Esta visão exagera o lugar e papel do tradicional, local, nacional. Por vezes  olha com algum ódio para a cultura e valores de fora. Os representantes desta conceção consideram que, por exemplo, se os europeus não chegassem a Angola, hoje ela poderia ser um dos países mais desenvolvidos do mundo e talvez a língua de comunicação mundial fosse umbundo. Como explicação lembram que antes da chegada dos europeus ao território da Angola atual haviam estados, organizações politicas bem formadas até com elementos de democracia. A maior parte dos representantes desta visão são patriotas. Mas às vezes o patriotismo exagera, aproximando-se do nacionalismo, que pode ter certas explicações mas não justificações. Sobre a diferença de patriotismo e nacionalismo falaremos adiante.

Há uma terceira visão: a cultura mundial e a cultura nacional, a cultura europeia e a cultura angolana, o moderno e o tradicional estão, ou pelo menos devem estar, em unidade, numa interligação dialéctica. Complementam-se entre si. Esta harmonia hoje ocorre mais fácilmente nos países desenvolvidos e, por vezes de forma pouco adequada, nos países em vias do desenvolvimento, incluindo Angola

Durante esta investigação penso basear-se em primeiro lugar na realidade  angolana, tentando juntar os meus conhecimentos de Angola (há sete anos que trabalho em Angola nos sistemas das Nações Unidas e ensino universitário: visão de dentro) aos de outros países (viajei muito, trabalhei em diferentes países, conheço línguas: visão de fora).

Para alcançar os objetivos da estrutura do trabalho acima referida e  não deturpar a primeira lei da lógica aristotélica, a lei da identidade, vamos clarificar os conteúdos e sentidos das palavras e expressões chaves para este trabalho.

Vamos começar pela dialéctica do singular (particular) e do geral. O nosso objetivo não é entrar em detalhes. Apoiado na dialéctica hegeliana, este trabalho considera mais aceitável que o singular ou particular é um objeto que possui uma série de traços especiais, inerentes somente a ele. São estes traços que destacam este objeto entre muitos outros.

No entanto qualquer coisa singular ou particular, não existe por si própria, sem nexo com outros objetos e fenómenos. Cada objeto, além dos traços individuais, próprios somente a ele, tem também traços comuns com outros objetos. O geral constitui aquilo que é inerente a uma quantidade de objetos singulares, particulares. Em qualquer objeto, o singular e o geral estão em unidade dialéctica. Por um lado, o singular encerra o geral e não existe de outra forma senão no quadro do nexo conducente ao geral. Levando em consideração a relação entre  singular, geral e a existência do geral no particular, a dialéctica hegeliana considera que qualquer particular é de uma ou outra forma o geral. Por outro lado, o geral é essência do particular.

O particular e o geral não só estão interligados, mas também mudam constantemente. O limite entre eles é móvel. No processo de desenvolvimento, em determinadas condições, transformam-se no outro: o particular torna-se geral e vice versa. Por exemplo, a cultura angolana em relação à cultura mundial é particular mas, em relação as culturas dos grupos étnicos angolanos torna-se geral. A consideração da dialéctica do particular e do geral tem uma grande importância para a atividade científica e prática. Somente o conhecimento do nexo mútuo e da dialéctica do singular e do geral permite orientar-se profundamente em toda a complexidade dos diversos processos da realidade, revelar as leis do seu desenvolvimento e utilizá-las corretamente na atividade prática.

Quanto ao termo cultura, existem mais de 150 definições, mas nenhuma delas pretende incluir todos os aspetos e perceções do fenómeno. Isto significa que a categoria ainda está longe de ser bem investigada. Os filósofos neste caso dividem o mundo em duas partes: a tudo aquilo que surgiu e existe sem participação ou interferência do homem chamam natura (natureza), a tudo  que foi criado pelo homem, incluindo os métodos da criação e sistemas de avaliação, chamam cultura (mundo humano e humanizado). Por exemplo, a mata criada pela natureza é natura e a mata plantada pelo homem é cultura. Podemos dizer quanto menos é desenvolvida uma sociedade tanto mais é circundada pela natura. A filosofia divide a cultura em material e espiritual. Elas estão interligadas, uma não pode existir sem a outra. Muitas vezes  é bastante difícil conhecer os limites entre elas, distinguir a obra de dada cultura, se faz parte da cultura espiritual ou material. Neste caso a orientação pode ser a seguinte: se uma dada obra  satisfaz as necessidades espirituais do homem, então faz parte da cultura espiritual e se antes de mais nada satisfaz as necessidades materiais, é parte da cultura material.

Pensamos que não vale a pena entrar em detalhes. Para este trabalho consideramos mais aceitável a interpretação antropológica da cultura. Antropologia entende a cultura como a totalidade de padrões aprendidos e desenvolvidos pelo ser humano. Segundo a definição de Edward Burnett Tylor, sobre a etnologia (ciência relativa ao estudo da cultura) a cultura seria “o complexo que inclui conhecimento, crenças, artes, morais, leis, costumes, outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Portanto, corresponde neste último sentido, às formas de organização de um povo, seus costumes e tradições transmitidas de geração em geração (1).

No âmbito deste trabalho, sobre a civilização entenderemos o estágio mais avançado de determinada sociedade humana. Num sentido mais amplo, a civilização designa toda uma cultura de determinado povo e o acervo de suas características sociais, científicas, políticas, económicas e artísticas próprias  (2). A civilização é a essência da cultura, é a unidade cultural no nível máximo.

O patriotismo é  sentimento e auto consciência da unidade espiritual do respetivo povo e  da sua peculiaridade cultural – dos costumes, tradições, crenças. O patriotismo possui uma grande força regulativa e vivificante: contribui para a unificação dos homens da mesma nacionalidade, de certa maneira tem o papel de defesa, que permite salvaguardar a sua unidade e determinação sociocultural na comunidade contra outros povos e nações que tentem humilhar os seus interesses, contra a assimilação etc.

O patriotismo contribui para elevação da cultura geral da nação, do seu desenvolvimento histórico na família das nações. Do processo de educação do homem resulta a formação do gosto pela arte nacional, do respeito às condutas, costumes, tradições, sentimento de orgulho aos heróis da sua história e cultura, cuja memória vive na alma dos homens, transmitida de geração a geração. Contribui para unificação do povo e da nação como unidade especial. O significado educativo do patriotismo é muito grande: é uma escola onde se desenvolve a perceção das ideias e sentimentos nacionais, toma-se consciência da necessidade de atenção sólida e máxima para com o todo nacional, desde a natureza até à esfera da arte e aos sentimentos de dignidade nacional.

Mas tudo deve ter a sua medida. Da mesma forma que a hipertrofia nas orientações da consciência do sujeito em si mesmo, conduz ao egoísmo, a hipertrofia das especificidades nacionais, o exagero da importância dos valores nacionais pode conduzir ao nacionalismo. Alguns autores comparam o nacionalismo com a peste.

O nacionalismo revela egoísmo nacional. Nação e nacionalismo são coisas muito diferentes, tal como o individuo e o seu eventual egoísmo agudizado. O fundamento do nacionalismo são as ideias da superioridade nacional e exclusividade nacional, que engendra arrogância nacional. Amor à pátria é coisa bela, mas há algo maior – amor à verdade. Nós nunca devemos esquecer isto, pois o amor cego à pátria liga-nos ao patriotismo instintivo. Uma das tentações do nacionalismo é  justificar o seu povo em tudo e sempre, exagerar a qualidade (mérito, dignidade) dele e deitar as culpas às forças “sempre-raivosas”, “traidores-inimigos”.

Qualquer povo que queira uma vida rica de conteúdo, não pode ficar separado –  tem de ultrapassar-se a si mesmo, sentir-se mesmo mais do que ele é:  tem de mergulhar nos interesses supra nacionais, na vida histórica mundial da humanidade. Para qualquer povo com grandes características naturais e históricas,  não é de nenhuma maneira natural fechar-se em si mesmo, nem viver apenas para si mesmo, sublinhando sempre o seu ego nacional ou, pior ainda – impor-se aos outros. Isto significaria isolar-se de sua vocação e de todo progresso histórico mundial da humanidade.

Há uma verdade simples: quanto mais alta for a consciência nacional do povo e forte o sentimento de dignidade nacional, tanto mais respeito e amor terá aos outros povos. Sem verdadeiro amor pela humanidade não há e não pode haver verdadeiro amor pela pátria.

Em Angola a palavra nacionalismo, por exemplo no jornalismo, em palestras, discussões, conversas em geral, confunde-se com a palavra patriotismo.

 

 

 

 

 PARTE  I

                  DIFERENÇAS E PARTICULARIDADES NAS CULTURAS

 

 

 Cada cultura tem a sua própria lógica, a sua visão do mundo. O que é significativo e importante numa cultura pode  não ser importante nem essencial na outra. Por isso é preciso sempre relacionar-se com muito respeito е cautelosamente com o seu parceiro de outra cultura. Ele realmente é diferente e tem direito de ser diferente. Este respeito e atenção será motivado não só pela simples curiosidade, mas ainda pelo interesse em conhecer algumas particularidades e características de outro país ou região.

Quando eu estudava em Moscovo tinha boas relações com um grupo de estudantes angolanos. Geralmente comiamos juntos. Muitas vezes queixavam-se que a comida de Moscovo não era saborosa e se fosse um funje eu poderia perceber o que é a verdadeira comida. Depois, trabalhando em Angola, percebi que o funje tem valor na cultura de Angola, porém  nada de especial para mim, pois prefiro as comidas da minha nacionalidade. Os vestidos das mumuilas são cómodos e bonitos para elas, embora para representantes de outros grupos étnicos possam até parecer estranhos.

O tempo e o espaço também têm leituras distintas nas diferentes culturas.

Se na cultura ocidental o tempo mede-se com exatidão e o atraso considerado como uma falha (lembre-se: a pontualidade é regra dos reis), na África, na América Latina ou em muitos países da Ásia o atraso não será surpresa para ninguém. Além disso, ser  tratado com seriedade, obriga a gastar algum tempo com conversas triviais, rituais. Apresentar precipitação e pressa pode gerar conflito cultural. Em 1997 eu trabalhava nas Nações Unidas. Deveria transportar medicamentos da Jamba (Kuando-Kubango) para Mucusso, na fronteira com a Namíbia. No carro levei comigo também um enfermeiro da UNITA. Todos lhe chamavam  doutor Libombo. Ultrapassamos o deserto com dificuldades e aventuras, mas no dia seguinte começamos a cerimónia da entrega. Percebi que o doutor Libombo já tinha encontrado o chefe do serviço de saúde de Mucusso alguns anos antes, quer dizer já se conheciam um pouco e o doutor Libombo perguntou-lhe muitas coisas não ligadas à nossa missão. O chefe  contou-lhe  tudo o que aconteceu nos últimos anos, sobretudo lembrando que na sua família faleceu uma pessoa. Para mim tolerar toda esta cena foi difícil, finalmente interrompi para realizar a entrega dos medicamentos. Á noite o doutor Libombo falou comigo zangado, disse que eu quebrei a cultura deles, que o chefe do serviço de saúde tinha o direito de colocar as suas perguntas. Os árabes tomam café conversando, podendo isto durar muito tempo e consideram-no como “fazer algo”, enquanto os americanos olham para isso como desperdício, perda de tempo (3). Assim, para muitos árabes a pontualidade exata, rigorosa, pode ser considerada como uma ofensa pessoal. Os etíopes, de modo geral, consideram tudo o que se faz por longo tempo como algo muito prestigiante: quanto mais dura melhor.

A perceção do espaço nas diferentes culturas também assinala diferenças. Angola é um pais multiétnico e num certo sentido multicultural. As culturas diferenciam-se não só pelo fator étnico mas também em virtude das regiões, gerações, educação etc. Seja como for na, maior parte dos casos para os angolanos, sobretudo a nível tradicional, o espaço é aberto. Na maioria das aldeias e subúrbios das cidades, as casas são construídas muito próximas com quintais comuns, sem limites rigidos. Se acontecer um facto pouco rotineiro ou se falar mais alto os vizinhos vão ouvir também. Quer dizer, vivem quase numa família ampla, tentam resolver os problemas juntos. O espaço social é comum. Na maior dos casos o espaço é comum dentro da casa também. Nas casas tradicionais,  mesmo com divisão entre os quartos, os tetos não são fechados com paredes até cima, o teto é comum a toda a casa. A família angolana é ampla pela linha vertical (sob o mesmo teto, na mesma família vivem diferentes gerações, bisavôs, avós, filhos, netos) e pela linha horizontal (em baixo do mesmo teto vivem sobrinhos, primos etc.). Todos eles ocupam o mesmo espaço físico e social. Não obstante, hoje muitos angolanos constroem casas como castelos, cercados por muros altos, onde  vive só uma geração. É uma mudança na interpretação do espaço.

Os latino-americanos e europeus, nos seus habitats costumeiros conversam a diferentes distâncias (4). Colocados lado a lado, o latino vai tentar estar numa distância normal para ele, quer dizer bem próximo enquanto o europeu pode sentir isto como intervenção, penetração no seu espaço privado e tentará se afastar. Em resposta, o latino-americano, vai aproximar-se mais uma vez, o que, do ponto de vista europeu, será percebido como uma expressão de agressão. O norte-americano, entrando para o pátio, quintal ou jardim do latino-americano, sente-se murado, pois na sua terra natal os quintais ou jardins de residência não têm sequer cercas. George Bush e Mikhail Gorbachev em 1989  encontraram-se, não no território de um deles, mas em navios militares perto de Malta, introduzindo alguma liberdade e igualdade nas relações, com cada um fora do ambiente habitual e fora também  das condicionalidades de um ou de outro lado.

As diferentes culturas usam diversas comunicações não verbais. Por exemplo, dentro da cultura “negra” norte-americana é considerado rude olhar diretamente nos olhos do professor. Há também diversas variantes em  manifestações simples diárias: uma maneira especial de andar ou um movimento especial dos olhos que pessoas de outra cultura podem nem notar. Um angolano para mostrar a altura de uma pessoa ergue o braço com a palma da mão virada para cima e para a altura de um animal ergue o braço na posição horizontal com a palma da mão vertical. O europeu para mostrar a altura da pessoa ou do animal faz isso com a palma da mão na posição horizontal.

Diferentes povos têm diferentes visões sobre relações hierárquicas. China e Japão respeitam-nas muito, enquanto os americanos tentam demonstrar igualdade.

No caso de Angola o valor das relações hierárquicas está muito exagerado. Neste caso, talvez no lugar da expressão “cultura de chefe”  deva utilizar-se “culto de chefe”. Penso que antes da chegada do europeu, a população que vivia no território da Angola atual, também tinha um culto dos chefes, os reis eram considerados próximos dos deuses. Portugal introduziu o seu sistema de hierarquia feudal, muito burocrática. Hoje Portugal já ultrapassou a maior parte desta burocracia feudal, mas Angola ainda tem caminho a percorrer. Claro que a burocracia tem alguns aspetos positivos: por exemplo, reduz as hipoteses de erros em muitas pessoas e pode diminuir a corrupção. Nas cerimónias, reuniões ou encontros, o moderador perde muito tempo apresentando os presentes um por um, sublinhando os seus títulos (excelentíssimo, meritíssimo, digníssimo etc. puro feudalismo). Ou ainda como se escrevem as cartas oficiais, requerimentos utilizando uma linguagem formal, arcaica, papel especial (25 linhas). Há muitos casos, mesmo simples, nos quais  primeiro faz-se uma solicitação para em seguida escrever o requerimento, paga-se  selo e carimba-se. O diretor subscreve e manda para o ministro, o ministro subscreve e manda para o diretor e assim por diante.

Os empresários ou negociantes ocidentais, como os angolanos, tentam realizar as suas negociações num ambiente confidencial, olho no olho. Na cultura árabe, dentro da sala existem outras pessoas também (5). Eventuais contradições das diferentes atitudes podem facilmente levar a conflito.

Entre várias culturas há diferenças nos sistemas dos valores também. Um objeto ou fenómeno pode ter um valor alto numa cultura e ser insignificante numa outra. Vamos imaginar uma situação. Você viaja num navio com filho, esposa e mãe. O navio começou a afundar. Você pode ajudar apenas uma pessoa. Quem será? Na cultura ocidental, 60% iria salvar ao filho, 40% a esposa. E ninguém vai salvar a mãe. Na cultura oriental 100% salvará a sua mãe. Os representantes desta cultura explicam que a gente pode se casar novamente, ter mais filhos mas nunca terá outra mãe.

Realmente a cultura dá-nos muitas possibilidades para formação da personalidade. E aqui tem grande papel o conhecimento das línguas. Aprender uma nova língua é adquirir um novo mundo. Na minha terra (Arménia), dizem, o número de línguas que conheces fazem de ti um numero equivalente de pessoas. Muitos problemas surgem no caso de tradução inadequada. Por exemplo, a palavra intermediária nas diferentes línguas pode ter diferentes significados.

Assim, temos com frequência pela frente não só outra cultura mas, sem exagero, um outro mundo. Muitos autores para conhecer o carácter nacional destes “outros mundos”  analisam os contos mais amados e queridos do povo, tentando perceber porque é que eles são amados e que elementos destes contos desempenham o papel mais importante para os leitores e ouvintes(6).

Alguns sinais idênticos  têm diferentes significados consoante as culturas. Os búlgaros, por exemplo, fazem (em relação a nós) diferentes movimentos para marcar o “sim” ou o “não”. Em algumas culturas o elemento comum das negociações é um brinde. A cultura ocidental claramente considera isso como um suborno, já em outras culturas é visto como atenção, boas maneiras.

A cultura não é uma coisa fixa, petrificada, passa por muitas mudanças ao longo dos séculos. Livros escritos na nossa própria língua, tal como agora a conhecemos, escritos alguns séculos atrás ficariam incompressíveis. Assim, lendo as obras de Camões, Shakespeare, Cervantes, Pushkin não se percebem muitas coisas sem conhecer a cultura da época deles. Para facilitar a perceção destas e outras obras, muitas vezes publicam-se dicionários e enciclopédias da cultura aristocrática da época (7).

O mesmo podemos dizer sobre a cultura da Idade Media. Para conhecê-la temos que conhecer os parâmetros especiais da época (8, 9, 10, 11, 12 , 13,  14). Seguindo a mesma lógica podemos dizer que na perceção e interpretação da essência das lendas, contos ou historias angolanas, alem de conhecimento da língua, será necessário  conhecer os  parâmetros especiais da época de criação.

Diferentes culturas apresentam diferentes regras para troca de informações. Um representante da cultura oriental, em princípio mais fechado, pode usar um longo tempo para tomar decisões, como fazem, por exemplo, japoneses ou chineses. Os japoneses têm mais uma característica, que frequentemente induz os negociantes em erro: em pricípio eles  não podem dizer um “não” categórico. Cuidadosamente inventam variadas formas, expressões, tentam mesmo  não objetar. No quadro da sua cultura  dizer “não” diretamente pode ser considerado como falta de educação. Boa parte dos angolanos frequentemente dão respostas positivas, que muitas vezes podem não corresponde à realidade, talvez como reflexo de boa vontade. Quando nas ruas eu pergunto alguma coisa a alguma pessoa, peço-lhe  que se não souber diga que não sabe e não dê qualquer “resposta positiva”.

Quando as culturas são bastante próximas, uma delas pode absorver  a outra. Por exemplo, uma investigação interessante sobre a beleza feminina na sociedade americana mostrou que os brancos americanos e os negros americanos já  têm os mesmos ideais de beleza (15). Mas isso cria uma situação de conflito, entre  negros americanos ou em relação  a eles,  em virtude de, por exemplo, existirem critérios de beleza feminina tipicamente “brancos”. Este exemplo vem novamente demonstrar que até a fusão de culturas apresenta conflitos.

Devido às diferenças ou contradições culturais  certos pensadores prognosticam até uma terceira guerra mundial. Por exemplo o famoso investigador americano  Samuel Huntington na sua obra Choque das Civilizações,  prognosticou  guerra mundial nas fronteiras das civilizações, ou seja, para ele a próxima guerra será uma guerra de civilizações, de culturas. Escreveu que  os conflitos  já foram  entre reis, depois entre nações, depois entre ideologias mas, com o fim da guerra fria teria acabado a politica internacional tradicional, substituida pelas contradições entre Ocidente e civilizações independentes. Nesta nova etapa, os povos e governos das civilizações independentes já não são só  objetos da História,  alvos da politica ocidental colonial. Em paralelo com o Ocidente criam História e tornam-se sujeitos nela. S. Huntington pensa que a maior parte da História é Historia das civilizações. Para A, Toinby a História humana conheceu 21 civilizações. A maioria surgiu, desenvolveu-se e desapareceu. Hoje  ainda continuariam  seis civilizações: Ocidental, Confucionista, Japonesa, Islâmica, Hinduísta, Ortodoxo-Eslava, Latino-americana. Fala-se também da formação da civilização Africana mas penso que os países africanos estão  muito inseridos nas civilizações Ocidental ou na Islâmica.

As diferenças  entre estas culturas ou civilizações revelam-se essenciais. Elas não são parecidas nem por língua, nem por historia, nem por tradições e, o que é mais importante, nem pela religião. Tem diferentes imagens sobre direito, liberdade, igualdade, hierarquia, família, etc. São mais diferentes do que as existentes entre ideologias políticas e regimes políticas, elemento que não vai desaparecer no curto prazo. Claro,  diferença não significa obrigatóriamente conflito e violência.

As pesquisas e opiniões sobre o papel, lugar e perspectiva desta ou daquela civilização, variam bastante e muitas  são até opostas. Há um bloco de estudos assinalando que a época de triunfo da civilização ocidental  chegou ao  fim e prevêm liderança num futuro próximo da China, Índia, Japão ou mesmo  Brasil. Pensamos que independentemente das últimas mudanças essenciais (crise económica mundial, problemas de globalização etc.) a civilização ocidental ainda continua a liderar e provavelmente no futuro próximo assim vai continuar, ainda que prever o futuro a longo prazo seja algo ingrato ou impossivel. A vida e a realidade sociais são muito mais ricas e complicadas do que os nossos conhecimentos sobre elas. A “moda”  da futurologia dos anos 60 do século passado não durou muito. Os “famosos futurologistas” quase sempre falharam. Conseguirem prever  alguns desenvolvimento da técnica, mas não o fim da guerra fria, nem a queda da União Soviético, a globalização etc.

Seja como for, atualmente, só a civilização japonesa  pode competir com a civilização ocidental, graças à força da sua economia. Pouco a pouco o mundo move-se no sentido da civilização ocidental. Claro que esta aproximação muitas vezes ocorre doentiamente.

O mundo modifica-se, moderniza-se e a palavra  “modernização”  muitas vezes é versão disfarçada da palavra “ocidentalização”. A cultura ocidental, sobretudo americana, através da mercadoria, da televisão, dos cinemas, da música, do turismo etc. penetra em todos os continentes, todos os países, todas as áreas.  Forma outros ideais, outras visões do mundo, outra mentalidade para as novas gerações. Há países onde, mesmo a nível estatal oficial, luta-se contra esta intervenção cultural (sobretudo em alguns países islâmicos), mas nem sempre com êxito, pois não podem fechar todas as portas e janelas à penetração da cultura ocidental, embora este processo não seja unilateral. De facto, ocorre também uma certa convergência civilizacional. Disto falaremos no próximo número.

 

 

       REFERÉNCIAS BIBLOGRAFICAS

  1. Cultura, Wikipédia, a enciclopédia livre, http://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura, pagina acessada 24/01/2011.
  2. Civilizacao, Wikipédia, a enciclopédia livre, http://pt.wikipedia.org/wiki/CivilizaC%A7%C3%A3o, pagina acessada 24/02/2011.
  3. Copeland L., Grigas L. Going international. — N.Y., 1985, p. 9
  4. Почепцов Г.Г. Имидж-мейкер. — К., 1996
  5. Сзлэкьюз Дж. Ч. Секреты заключения международ­ных сделок.
  6. Тернер Р. Контент-анализ биографий // Сравнитель­ная социология. Избранные переводы. — М., 1995 с. 186.
  7. Лотман Ю.М. Беседы о русской культуре. Быт и тра­диции русского дворянства (XVIII — начало XIX ве­ка). – СПб., 1994.
  8. Гуревич А.Я. Проблемы средневековой народной куль­туры. – М., 1981.
  9. Гуревич А.Я. Средневековый мир: культура безмолвно­го большинства. — М., 1990.
  10. Кардини Ф. Истоки средневекового рыцарства. — М., 1987.
  11. Карсавин Л.П. Культура средних веков. — П., 1918.
  12. Ле Гофф Ж. Цивилизация средневекового Запада. -М., 1992.
  13. Эйкен Г. История и система средневекового миросо­зерцания. – СПб., 1907.
  14. Eco U. Art and beauty in middle ages. – New Haven etc., 1986.
  15. Martin J.G. Racial Ethnocentrism and Judgementor Be­auty // Intercultural.
  16. СоловьевC. Сочинения: В 2 т. М., 1988. Т, 2. С. 579—580.
  17. Конрад Н.И. Запад и Восток. М., 1972

 

Análise da História de Martin Luther King e o Movimento Pelos Direitos Civis Do Negro Americano: O Amor Como Força Mobilizadora da Luta Não Violenta

  Angela Rebelo da Silva Arruda

                                               Mestre em História Social pela Universidade Federal do

                                                                                                                          Amazonas   

  E-mail:angelarebeloarruda@gmail.com

 

Resumo

Refletir sobre a história do movimento civil dos negros americanos é refletir sobre a liderança de Martin Luther King e sua radical opção pela luta não violenta. Um radicalismo mergulhado em sua coerência cristã que foi capaz de mobilizar homens e mulheres negros, principalmente nos estados mais segregados da América, a alcançar importantes conquistas com projeções nacionais e no mundo inteiro. O amor, valor este refletido em toda a experiência desse movimento, é um desafio a ser explorado pelas abordagens historiográficas, já que assim como o ódio também é capaz de desencadear e sustentar as insurreições sociais. Este trabalho pretende contribuir na análise da experiência de King e do movimento antissegregacionista compreendendo o amor como substância do protesto não violento.

 

PALAVRAS-CHAVE: Martin Luther King, movimento negro, amor.

 

 

 

 

ANALYSIS OF MARTIN LUTHER KING’S HISTORY AND THE MOVEMENT BY THE AMERICAN BLACK CIVIL RIGHTS: LOVE AS FIGHTING MOBILIZING FORCE NOT NON-VIOLENT

 

ABSTRACT

Reflecting on the history of the black American civil movement is to reflect on the leadership of Martin Luther King Jr. and his radical option for nonviolent struggle. A radicalism immersed in his Christian coherence that was able to mobilize black men and women, especially in the most segregated states of America, to achieve important achievements with national and worldwide projections. Love, a value that is reflected in the whole experience of this movement, is a challenge to be explored by historiographic approaches, since just as hate is also capable of unleashing and sustaining social insurrections. This paper intends to contribute to the analysis of the experience of King and of the antisegregationist movement comprising love as the substance of nonviolent protest.

KEYWORDS: Martin Luther King, black movement, love.

 

 

 

Ao longo da vida, deve se ter sensibilidade e moral o bastante para romper os grilhões do mal e do ódio. A melhor maneira de fazer isso é pelo amor. Creio firmemente que o amor é um poder transformador capaz de erguer toda uma comunidade a novos horizontes de retidão, boa vontade e justiça. (Martin Luther King Jr.).

 

 

            O historiador E. P. Thompson (1981: 190) observou que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, pois “as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos”, mas, “elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura”, como “valores” e nas “convicções religiosas”. Avaliar a trajetória da luta pelos direitos civis do negro americano pela presença marcante de Martin Luther King Jr., não só é ratificar o processo histórico enquanto uma experiência de valores, como talvez se deparar com o pessimismo da crise de princípios que se abateu na sociedade contemporânea, isto é, “vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é também criador da insegurança”. (SANTOS, 2004: 48; 59).

            O geógrafo Milton Santos (2004: 61) observou que “a nova lei do valor é uma filha dileta da competitividade” e “desse modo, o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades e ao fim da ética”. Nesse sentido, uma onda de nostalgia poderia nos invadir diante da experiência de King e a luta do movimento pacifista do negro americano colocando-a mais ainda no terreno da utopia, isto é, enquanto sociedade ideal e, irreal.

             Tal pessimismo, contudo, revelaria uma visão equivocada da questão. O mesmo movimento que, em nome do amor, clamou por dignidade era contemporâneo dos que não estavam do lado da justiça e da promoção humana. Na mesma época, história e sociedade homens e mulheres submeteram-se ao martírio e com orgulho honraram sua luta enfrentando seus algozes, tais como os membros da Ku Klux Klan e autoridades como Bull Connor que com suas ações recorriam à violência e à brutalidade.

             Isso significa que assim como a presença e a ausência de valores faz parte de todas as épocas e é comum em todo processo histórico – tomando como referência a polaridade dos valores onde o aspecto negativo é frequentemente denominado desvalor (MORA, 2001: 2972) –, a dignidade humana enquanto necessidade permanece como bandeira de luta ao longo dos tempos e por essa razão, acordar ou lembrar a eficácia do movimento não violento de King permanece igualmente relevante e necessário.

Povos oprimidos de todo o mundo anseiam por liberdade, usualmente, a história tem preferido lidar com esse grande e pertinente tema focando na luta armada, e, muito marginalmente, na resistência pacífica. Assim, de certa forma, ela tendeu a subestimar os protestos que, sob os moldes pacifistas, foram capazes de mobilizar homens e mulheres por justiça social.

Nesse sentido, a sublevação dos povos propagou-se muito mais pelo embate sangrento alimentado pelo ódio, fúria e revolta na conquista por direitos. Mas, tais estímulos não representaram em absoluto as insurreições sociais. É preciso não esquecer que Gandhi conseguiu galvanizar mais de 390 milhões de pessoas a alcançar a liberdade sob o valor da não violência (KING, 2014: 159).

 

A história como a conhecemos é um registro das guerras do mundo, tanto que há um provérbio entre os ingleses de que uma nação que não tem história, ou seja, sem guerras, é uma nação feliz. Como os reis agiram, como se tornaram inimigos uns dos outros, tudo isso se encontra registrado com precisão na história; se fosse só isso que houvesse ocorrido no mundo ele teria terminado há muito tempo. Se a história do universo houvesse começado com as guerras, nenhum homem seria encontrado com vida hoje em dia. (…) O fato de que há tantos homens ainda vivos no mundo nos mostra que ele se baseia não na força das armas, mas na força da verdade ou do amor. (GANDHI, 2010: 82).

 

A liderança de Martin Luther King Jr. (2014: 125) inaugurou no cenário americano “a ferramenta social da não violência”. A começar pela cidade de Montgomery que teve uma revolução “diferente das rebeliões de escravos, isoladas, fúteis e violentas. Também foi diferente dos muitos incidentes esporádicos de revolta contra a segregação protagonizados por indivíduos, resistindo do seu próprio jeito às forças da opressão que os submetia”

Estimulados por uma filosofia de um cristianismo socialmente aplicado, a comunidade negra do Sul dos Estados Unidos em sua luta contra a discriminação, permitia-se desabrochar a uma grande causa, em nome de um valor oposto ao ódio. A partir de King, adotara-se o amor como maior estímulo, apresentando uma experiência que se consolidaria muito além da fé religiosa e do terreno da utopia.

Pode ser demasiadamente ousado afirmar que King escolheu o amor para lutar, (e esta foi realmente a sua ousadia), mas não se pode ignorar que as experiências de homens e mulheres de tempos em tempos foram movidas pela multiplicidade de suas paixões. “Tínhamos dignidade porque sabíamos que nossa causa era justa. Não tínhamos raiva, mas paixão – paixão pela liberdade”. (KING, 2014: 267).

        A propósito, a partir das últimas viradas epistemológicas da história, especialmente a Nova História Cultural, tem esta ciência alguns desafios interessantes, como o enfrentamento do amor como tema. Assim, o ódio é dado muito naturalmente, fomentando as dinâmicas sociais sem aparente dificuldade de explicação, mesmo nas abordagens mais conservadoras. De fato, muito mais fácil é provocar o ódio das massas como combustível de revoltas, como pode ser observado nos mais diversos estudos de revoltas populares e grandes revoluções. Contrariamente, a opção racional e consequente da luta não violenta é obviamente uma missão que exige muito esforço, seriedade e equilíbrio, talvez por essa razão, não ocupou ainda o seu devido foco.

        Seria talvez muito mais cômodo simplificar esta abordagem investigando as razões do pacifismo que nascia no movimento negro da América, ao invés de enfrentar o amor como tema na história. Mas a experiência de King exige que se tente esse esforço. É preciso compreender o teor da técnica da não violência que ele havia conquistado entre seus seguidores e isso não seria possível sem notar o amor como um valor fundamental na identidade daquele movimento.

O amor aqui referido certamente pode ser traduzido como dignidade e justiça, os pilares essenciais para a luta corajosa da não violência que estava longe de ser uma postura comodista e passiva, pelo contrário, cobriria a causa de legitimidade, despertando uma força extraordinária capaz de enfrentar toda a opressão e todo o martírio que se abateu sobre tantos que foram capazes de sacrifícios pessoais pela causa, chegando até mesmo a pagar com a própria vida, à exemplo do próprio King.

O amor de King, traduzido na luta não violenta, fora também a escolha racional para lidar com as injustiças sociais sem promover ainda mais vítimas. Como Mandela na África do Sul, King também percebeu que responder às opressões com ódio resultaria em uma sangrenta e gigantesca guerra civil em que negros seriam massacrados.

 

Qualquer um que lidere uma rebelião violenta deve se dispor a fazer uma avaliação honesta com respeito às possíveis baixas de uma minoria da população confrontando uma minoria rica e bem-armada, com uma direita fanática que se deliciaria em exterminar milhares de negros, homens, mulheres e crianças. (KING, 2014: 388).

 

Isso remete à análise feita pelo historiador Eugene Genovese (1983; 1988) que conseguiu realizar um admirável estudo macro/micro, atuante entre o geral e o particular ao escolher regiões diferentes da América onde a escravidão era praticada, com especificidades próprias e distintas entre elas, num jogo habilidoso de visão abrangente e foco sem se perder em quaisquer das duas perspectivas. Sua análise de conjunto acabou por evidenciar os aspectos históricos das relações entre escravos e senhores; iluminando questões sobre docilidade e submissão e diagnosticando que no lugar disso, existia uma análise da correlação de forças entre eles, alianças e acomodações estratégicas, mas que no final de tudo: havia sempre resistência.

 

O desenvolvimento de um relacionamento orgânico entre senhores e escravos, inserido nas teias do paternalismo, não explica por si só, ou mesmo elementarmente, a baixa incidência das revoltas de escravos durante o século XIX e prova muito menos que os escravos eram infantilizados ou dóceis. (GENOVESE, 1983: 28)

 

Naturalmente, nas condições específicas da época no Velho Sul, ao avaliarem a revolta como suicídio, os negros precisaram utilizar de uma resistência adequada à sua sobrevivência enquanto povo escravizado, mas isso não significou de modo algum, a aceitação passiva da escravidão, nem tampouco, garantiu relações pacíficas entre senhores e entre os brancos de maneira geral. No regime escravocrata sempre houve resistência às injustiças, de modo violento e não violento. O cristianismo, por exemplo, serviu como instrumento contra a desumanização da escravidão. Logicamente, “se durante um longo período, um povo percebe que as dificuldades não são apenas prolongadas, mas virtualmente certas, ele prefere não tentar”. (GENOVESE, 1988).

Se por um lado isso revela uma diminuição na autoconfiança e mesmo um temor, por outro, trata-se de um esforço estratégico para garantir a sua sobrevivência. Afinal, “no Sul dos Estados Unidos, o mais importante de todos os países detentores de escravos, os negros permaneceram em minoria” e “os escravos enfrentavam essa minoria branca virtualmente desarmados”. (GENOVESE, 1988).

No caso da luta pelos direitos civis dos negros americanos, tal qual esse passado histórico, as formas de resistência também precisariam ser avaliadas. Na percepção de King, a não violência  foi vislumbrada como talvez a única chance de vencer, só que desta vez a manutenção da não violência enquanto princípio fundamental mergulharia na convicção do movimento de modo geral e isso consistiria exatamente no vigor de uma ação pronta a testar a sua eficácia. King (2014: 319) também avaliou o papel das lideranças num sentido de preservação das mesmas, pois para ele o negro americano não deveria arriscar perdê-las.

 

Homens de talentos são muito raros para serem destruídos pela inveja, pela ambição e pela rivalidade tribal antes de atingirem a maturidade plena. Da mesma forma que o assassinato de Patrice Lumumba no Congo, o assassinato de Malcolm X privou o mundo de um líder potencialmente grande. Eu não podia concordar com nenhum desses dois homens, mas conseguia ver neles uma capacidade de liderança que podia respeitar e que só estava começando a amadurecer em matéria de perspicácia e sabedoria.

 

Naturalmente – sem deixar de considerar o eterno ‘deve ser’ da natureza do homem no lugar do seu estado atual de ‘é’ (KING, 2014: 308) – nem todos os negros aderiram aos meios da não violência, o que aumentava ainda mais o seu constante desafio. King (2014: 35) adotou uma postura coerente entre métodos e concretizações, afinal “fins construtivos não podem jamais oferecer uma justificativa moral absoluta para o emprego de meios destrutivos, pois, em última análise, o fim preexiste aos meios”. Ele vivenciou sua luta preservando um sentido ético entre meio e fim, pois que, quando “não existem princípios fixos e imutáveis; logo, quase tudo – força, violência, assassinato, mentira – é um meio justificável”.

Sua força moral, isto é, seu valor, o credenciara na expressiva liderança que veio ao encontro da determinação dos negros americanos que buscavam por direitos, como Rosa Parks que nas palavras de King (2014: 70) agiu conforme seu “senso de dignidade e respeito próprio”, sendo presa em 1◦ de dezembro de 1955 por desrespeitar leis segregacionistas e E. D. Nixon que vislumbrou no boicote aos ônibus, um basta ao tratamento dado pelos brancos (KING, 2014: 70).

 

Antes de me ligar, Nixon havia discutido a ideia com o reverendo Ralph Abernathy, o jovem pastor da Primeira Igreja Batista de Montgomery que viria a ser uma das figuras centrais no protesto. Abernathy também achava que o boicote aos ônibus seria nosso melhor curso de ação. (…) Mais de quarenta pessoas, de todos os segmentos da comunidade negra, amontoavam-se no amplo salão de reuniões da igreja. A maioria era de sacerdotes cristãos. Fiquei cheio de alegria ao ver tantos deles lá; senti então que algo incomum estava para acontecer. O reverendo L. Roy Bennett, presidente da Aliança Interconfessional de Montgomery e pastor da Igreja Metodista Episcopal Africana de Mt. Zion, apresentou a proposta de que os cidadãos negros da cidade deveriam boicotar os ônibus na segunda-feira em sinal de protesto. (KING, 2014: 70-71).

 

O protesto americano constituiu assim parte da manifestação legítima da liberdade e da dignidade humana, que se repete nos mais diversos povos, como “as explosões de descontentamento na Ásia e na África” (KING, 2014: 135) enquanto expressões dessa mesma busca “por pessoas que por muito tempo têm sido vítimas do colonialismo e do imperialismo” (KING, 2014: 135) e estabelecem no mesmo binômio a crise mundial mais desafiadora da história da humanidade: a desigualdade.

“Vocês sabem, a igualdade não é somente uma questão de matemática e geometria, mas uma questão de psicologia. Não é apenas algo quantitativo, mas algo qualitativo” (KING, 2014: 115), sem equidade, a igualdade é apenas ficção. O problema da desigualdade é desencadear “o tríplice mal da pobreza, do racismo e da guerra em qualquer lugar do mundo” e isso sempre fora a preocupação vital de King. (SCOTT KING, 2009: 20-21).

Tomando o desafio da desencadeante experiência de Montgomery que conquistara em 1957 e 1960 as Leis dos Direitos Civis, assim como a experiência de Albany na Geórgia, a árdua conquista por um caminho de liberdade em Birmingham, considerada até então a cidade mais segregacionista da América, inspirando a Lei dos Direitos Civis de 1964, e Selma que produzira a Lei do Direito de Voto de 1965, dentre outras tantas peregrinações por cidades americanas do Sul e até mesmo por guetos do Norte, como grande trajetória de luta não violenta, é impossível desprezar a relevância desse líder e da comunidade americana, incluindo negros e brancos, que ofereceram à humanidade, a alternativa de um movimento não violento.

O movimento de Montgomery (KING, 2014: 125) – constituído pela ampla recusa dos negros americanos do estado de Alabama de andar de ônibus de maneira segregada, mas optando por caminharem em vez disso, num boicote brilhante que se utilizou de uma rede particular de veículos e de improviso sem esmorecimento até a sua vitória – representou o início da ação pacifista dos negros americanos que, sob esse formato, possuía Martin Luther King como liderança.

Ainda que alertado pelo próprio King (2014: 82) como uma batalha de difícil entendimento, eis que, no entanto, tratar-se-ia de uma referência instigante para a compreensão, mesmo que insatisfatória, do processo histórico da resistência pacífica. Em suas palavras “nenhum historiador jamais conseguiria descrever de maneira plena esse encontro e nenhum sociólogo seria capaz de interpretá-lo de forma adequada” pois, “era preciso ser parte da experiência para realmente entende-la”.

É King (2014: 81) quem nos apresenta a forma diferenciada com a qual a mobilização aconteceu: “As pessoas ficaram tão entusiasmadas quando as incitei ao amor como quando as incitei ao protesto”. O reverendo de autêntica fé, conquistava, substancialmente, famílias inteiras para que a justiça prevalecesse entre aqueles homens e mulheres. King (2014: 32) estava convicto de que ‘uma religião que termina no indivíduo é uma religião que termina’, isto é, qualquer religião que se preocupe apenas com as almas dos homens sem se importar com as favelas a que eles estejam condenados, com suas péssimas condições de vida, com uma situação econômica e sociais que os debilitem é uma religião “espiritualmente moribunda”.

 

De um lado, devo tentar transformar a alma dos indivíduos para que suas sociedades possam ser transformadas. De outro, devo tentar transformar as sociedades para que a alma do indivíduo sofra uma mudança. Assim, devo preocupar-me com desemprego, favelas e insegurança econômica. Sou um defensor convicto do evangelho social. (KING, 2014: 33)

 

É um erro subestimar o poder da fé, da religião ou de quaisquer outros valores que foram capazes de galvanizar pessoas a causas, no entanto, o que se observa na história da resistência negra que possuía King como uma de suas lideranças mais notáveis, é a enorme capacidade de abstração do que há de essencial no elo que os mantivera unidos na causa, isto é, o amor, este, a bandeira maior da ação libertadora de King e de homens como W. G. Anderson em Albany e Fred Shuttlesworth em Birmingham, que de modo algum, fora somente representativa, mas vivenciada umbilicalmente entre todos aqueles que abraçaram a luta e resistiram até a consolidação das vitórias subsequentes.

Conforme king (2014: 69), só no caso de Montgomery, tratou-se da história de 50 mil negros que com seriedade assumiram os princípios da não violência, aprendendo a lutar pelos seus direitos com as armas do amor, vindo a atingir nesse processo, um novo patamar de seu próprio valor humano.

Para King (2014: 81), o amor não era apenas um dos pontos fundamentais da fé cristã: “há um outro lado chamado justiça” diz ele, “ao lado do amor está sempre a justiça, e só estamos usando as ferramentas que ela nos proporciona”. Como já mencionado, em toda a história da humanidade, são as paixões que comandam as sublevações e revoluções, King (2014: 35) diria isto de outra forma, isto é, “a história é guiada, em última instância, pelo espírito, não pela matéria”.

Propagada por homens como King, a história é diferenciada por combinar militância e moderação pela substância de seus protestos, onde homens e mulheres se entusiasmaram por conquistar dignidade e justiça, em nome do amor fraternal que trocou o ódio pela tolerância, diferenciando-os da hostilidade com a qual eram frequentemente tratados pela comunidade branca. Assim, “a resistência não violenta tinha se tornado a técnica do movimento, enquanto que o amor continuava sendo seu ideal moderador” (KING, 2014: 89).

Apesar da estratégica pacifista, King (2014: 90) tinha consciência de que, muito provavelmente, a maioria deles não acreditava na não violência como filosofia de vida e compreendia sua eficácia pela confiança que eles possuíam em suas lideranças, o que necessariamente envolvia o fato de que a não violência era uma expressão do cristianismo em ação. Em sua autobiografia, King (2014: 124-125) menciona um episódio em que uma mulher negra ao sentar-se num ônibus em local anteriormente destinado exclusivamente aos brancos, não revidara um tapa que havia levado de um homem branco, afirmando que poderia ter reagido fisicamente de modo danoso ao tal sujeito, mas que preferira cumprir com sua determinação de atender ao pedido do reverendo King em assembleia recente.

King (2014: 43) estava ciente de todo o processo e não permitiu cair nas “ilusões de um otimismo superficial a respeito da natureza humana e os perigos de um falso idealismo”, compreendendo “a complexidade do envolvimento social do homem e a realidade patente do mal coletivo”. A tendência a interpretar “o pacifismo como uma espécie de resistência passiva ao mal” expressando “uma confiança ingênua no poder do amor” era muito mais presente no senso comum, mas essa grave distorção não encontrava ressonância na mente de King (2014: 42) que conhecia verdadeiramente o caminho de Gandhi.

 

Gandhi foi provavelmente a primeira pessoa na história a elevar a ética do amor de Jesus acima da mera interação entre indivíduos como uma força social amplamente poderosa e eficaz. Para Gandhi, o amor era um forte instrumento de transformação social e coletiva. Foi nessa ênfase de Gandhi no amor e na não violência que descobri o método de reforma social que estava procurando. (KING, 2014: 39-40).

 

Observou assim King (2014: 42) de que “o verdadeiro pacifismo não é uma não resistência ao mal, mas uma resistência não violenta ao mal”. Tratar-se-ia do “enfrentamento corajoso do mal pelo poder do amor”, acreditando que melhor é ser objeto e não sujeito da violência, já que de outra forma ela só multiplicaria ainda mais. Ele compreendeu que somente a não violência é quem pode “desenvolver no oponente um sentimento de vergonha, e assim produzir uma transformação e uma mudança de disposição”.

Em 1963, numa tarde de domingo, em Birmingham, centenas de negros realizaram um encontro de oração próximo à cadeia municipal. Bull Connor, autoridade que se consagrou inimiga dos cidadãos negros e contrária aos direitos civis destes, ordenou que levassem os cães policiais e as mangueiras de incêndio. Os manifestantes, ao se aproximaram da divisa entre as áreas branca e negra da cidade, deparam-se com a ordem de Connor para que voltassem. O reverendo Charles Billups, líder da passeata, educadamente não obedeceu. Enfurecido, Bull Connor ordenou gritando aos seus homens para que ligassem as mangueiras contra eles (KING, 2014: 253-254):

 

O que aconteceu nos trinta segundos seguintes foi um dos eventos mais fantásticos da história de Birmingham. Os homens de Bull Connor ficaram olhando os manifestantes. Estes, muitos de joelhos, preparados para não usar nada, exceto o poder de seus corpos e almas contra os cães policiais, os cassetetes e as mangueiras de Bull Connor, devolviam os olhares, imóveis e sem medo. Lentamente os negros se levantaram e começaram a avançar. Os homens de Connor, como que hipnotizados, recuaram, as mangueiras permanecendo inúteis em suas mãos enquanto centenas de negros passavam por eles, sem demais interferências, para realizar sua reunião de oração conforme planejado. Ali senti, pela primeira vez, o orgulho e o poder da não violência. (KING, 2014: 254).

 

King (2014: 46) possuía uma fé profunda nas possibilidades humanas para ele quando as mesmas estavam harmonizadas com os planos divinos, compreendidos como recusa radical à violência, na convicção de que esta, de nenhuma forma, possui qualquer ação libertadora, ou etapa necessária à “boa sociedade” (ALBORNOZ, 2002: 52), como, pelo contrário, deu-se “no romântico revolucionário que reconhece em certa espécie de ação violenta um caráter positivo – de oposição ao conformismo, de resposta corajosa e nobre ao status quo de injustiça, e que teve longa tradição na época moderna”. (ALBORNOZ, 2002: 28). A igreja ou o templo de King estava na sua prática e seu efeito estava na realização das conquistas do movimento, sem abrir mão do seu I have a dream, e sendo capaz de contrariar uma eventual contradição cristã de “violência santa” (ALBORNOZ, 2002: 84).

Em 1963, na cidade de Birmingham, pastores brancos criticaram o reverendo, pedindo um fim às manifestações. Em resposta aos pastores, acomodados com a ordem e indiferentes às injustiças, King (2014: 242) afirmou que a igreja possuía uma voz fraca, improdutiva e com um som ambíguo, sendo desta maneira, uma arquidefensora do status quo, o que causava conforto à estrutura de poder em geral, no lugar de presença moralmente ameaçadora que a igreja poderia representar. Assim, ela mantinha uma postura de aprovação silenciosa quando não, muitas vezes mesmo declarada, das coisas como elas são.

Apesar da iniciativa do reverendo Fred Shuttlesworth que na cidade mais segregacionista da América, organizara em 1956 o Movimento Cristão pelos Direitos Humanos do Alabama para tentar combater o domínio racista e terrorista de Bull Connor (KING, 2014: 210-211), “a maior tragédia de Birmingham não era a brutalidade dos maus, mas o silêncio dos bons” (KING, 2014: 210),

Shuttlesworth e sua família foram brutalmente atacados, espancados, esfaqueados, também atingidos por uma bomba que havia deixado sua casa completamente destruída e chegaram a ser presos por oito vezes. A violência dos racistas, instituída pelas autoridades locais, e tacitamente permitida pelos pastores brancos, era sempre a resposta aos que tentavam pôr um fim a uma vida de opressão. Naturalmente, King e sua liga, isto é, a SCLC – Conferência da Liderança Cristã do Sul, uniram seus esforços ao lado de Shuttlesworth.

Manobras jurídicas também eram usadas como recursos contra o crescimento das manifestações antissegregacionistas e em Birmingham, o movimento desencadeou num episódio de desobediência civil. As prisões eram previsíveis e comuns no percurso, as sabotagens do sistema tornavam a luta árdua, como a elevação do valor das fianças para dificultar o pagamento. No meio de todo esse tumulto, a determinação na conduta não violenta era mantida e a aprovação popular era crescente, incluindo ajuda financeira e apoio moral do mundo inteiro, como do cantor, músico, ativista político e pacifista Harry Belafonte que em determinada ocasião “conseguiu levantar 50 mil dólares para pagar fianças”. (KING, 2014: 225).

 

Um dos resultados mais gratificantes foi a inédita demonstração de unidade apresentada pela comunidade negra nacional em apoio à nossa cruzada. De todo o país vieram pastores, líderes dos direitos civis, atores, atletas de ponta e cidadãos comuns negros, prontos a se pronunciarem em nossas reuniões ou a se juntarem a nós na cadeia. O Fundo Educacional e de Defesa Jurídica da NAACP veio em nosso auxílio diversas vezes, tanto com dinheiro quanto com especialistas jurídicos talentosos. Muitos outros indivíduos e organizações deram contribuições inestimáveis em termos de tempo, dinheiro e apoio moral.(KING, 2014: 261).

 

Logo no início de sua militância, em Montgomery, King e sua família sofreram um atentado. Uma bomba fora jogada em sua casa em 30 de janeiro de 1956.

 

Não consegui dormir. Deitado naquele tranquilo quarto da frente, com o brilho tranquilizador de uma distante lâmpada de rua atravessando a cortina da janela, comecei a pensar na perversidade das pessoas que haviam lançado aquela bomba. Senti a raiva tomar conta de mim ao perceber que minha mulher e minha bebê poderiam estar mortas. Pensei nos comissários municipais e em todas as declarações que tinham feito sobre mim e sobre os negros em geral. Estava novamente à beira de um ódio corrosivo. E mais uma vez me contive e disse: ‘você não pode permitir tornar-se amargo’. (KING, 2014: 104).

 

Além de atentados, repressões policiais repletas de violências e prisões arbitrárias de King e dos demais companheiros de luta que desafiavam o sistema seriam frequentes em todas as cidades em que o negro abraçou a causa antissegregacionista. A luta pacifista seguia com o martírio da brutalidade e da morte, isso significou grandiosa “coragem inflexível de indivíduos dispostos a sofrer e sacrificar-se por sua liberdade e dignidade” como observou King (2014: 75).

Logo após ao episódio da bomba, King, humanamente testado pelas reações previsíveis à agressão sofrida, foi capaz de permanecer na escolha do caminho da não violência: “Eu já tinha percebido que a doutrina cristã do amor operando por meio da não violência de Gandhi era a mais poderosa arma de que o negro dispunha em sua luta por liberdade”. (KING, 2014: 88-89).

E King ia além disso, não era somente promover a liberdade dos negros, mas de estabelecer outro patamar entre negros e brancos, em suas palavras, “ a consequência da não violência é a criação de uma comunidade de amor, de modo que, terminada a batalha, nasce uma nova relação entre oprimidos e opressores”. (KING, 2014: 154).

Contudo, não se tratava de tarefa fácil, isto é, a aceitação de brancos unidos aos negros, apesar dos anos de militância pacifista e dos devotados brancos que junto deles sofreram o martírio pela causa da justiça racial, as frustrações do movimento abatiam os ânimos dos homens e mulheres negros que permaneciam sofrendo os horrores da discriminação pela maioria branca. Quanto a esse aspecto, King (2014: 373) observou “eu deveria me lembrar de que decepção produz desespero e desespero produz rancor, e que a única coisa certa em relação ao rancor é a sua cegueira”. Nesse contexto, alguns líderes cogitavam abandonar a não violência, mas King permaneceu convicto de que isso seria um grande erro.

 

Tal como a vida, a compreensão racial não é algo que se encontre, mas algo que devemos criar. O que encontramos ao entrar nessas planícies mortais é a existência, mas a existência é a matéria-prima a partir da qual se deve criar a vida. Uma vida feliz e produtiva não é algo que se encontre, é algo que se faz. E da mesma forma a capacidade de negros e brancos trabalharem juntos, de compreenderem uns aos outros, não será encontrada pronta; deve ser criada através do contato. (KING, 2014: 375).

 

Com essa consciência da necessidade de um esforço conciliatório entre negros e brancos, King orientava o movimento que, em determinado momento, 1966, estava inclinado a rejeitar a participação dos brancos em nome de um suposto fortalecimento da causa negra. “Greenwood se tornou o local do nascimento do slogan Poder Negro no movimento dos direitos civis” (KING, 2014: 376), mas King (2014: 377) via isso com reservas. “Eu tinha um sentimento profundo de que a escolha das palavras desse slogan fora infeliz. Além disso, achava que ele provocaria uma divisão nas fileiras dos manifestantes”.

King (2014: 379) sabia que o caminho não era um slogan, mas um programa em que se devesse usar meios criativos de acumulação de poder político e econômico, trabalhando na construção do orgulho racial e refutando a imagem pejorativa de que negro era feio e mau. Ainda assim, King (2014: 380) compreendia que Poder Negro era um grito de decepção e havia nascido das feridas profundas do desespero. “Por séculos o negro tem sido aprisionado pelos tentáculos do poder branco. Muitos negros perderam a fé na maioria branca porque o poder branco, detentor do controle total, deixou-os de mãos vazias”. Assim, Poder Negro como clamor, representava uma reação ao fracasso do poder branco, “para contrabalançar a força dos homens que ainda estão determinados a ser senhores em vez de irmãos”. (KING, 2014: 384).

 

O poder negro foi uma reação psicológica à doutrinação igualmente psicológica que levou à criação do escravo perfeito. Embora essa reação tenha levado a respostas negativas e irrealistas e frequentemente provocado palavras e ações destemperadas, não se deve desprezar o valor positivo de se apelar ao negro para que assuma um novo senso de bravura, um sentimento profundo de orgulho racial e uma nova valorização de sua herança. O negro tinha de abraçar uma nova compreensão de sua dignidade e de seu valor. Tinha de enfrentar um sistema que ainda o oprimia e desenvolver um senso inequívoco e grandioso de seu próprio valor. Não podia mais ter vergonha de ser negro. Não é fácil a tarefa de despertar a bravura de um povo que por tantos séculos fora ensinado que não era ninguém. (KING, 2014: 384).

 

Destarte essa bravura fora canalizada pelo caminho da não violência, poder capaz de salvar o homem negro, mas também o branco, pois que são irracionais os temores que sustentam a segregação racial, “como os da perda de privilégios econômicos, mudança de status social, casamento misto e adaptação a novas situações” (KING, 2014: 389). Para King, “somente aderindo à não violência – que também significa amor em seu sentido mais poderoso e impositivo – é que o medo da comunidade branca será mitigado”. (KING, 2014: 389).

A não violência do negro americano fora embalada pelas canções da liberdade. As assembleias realizadas por eles tinham os cânticos como ritual importante, King (2014: 216) chegou a denominá-las a alma do movimento. Não se tratava apenas de um fortalecimento da campanha antissegregacionista, mas de remeter a todos às raízes mais profundas da história do negro na América, pois as canções foram adaptadas de músicas feitas ainda pelos escravos com teor de lamentos, alegria, encorajamento, hinos de um velho movimento.

 

Em nosso movimento não violento, somos mestres em desarmar as forças policiais; eles não sabem o que fazer. (…). Caminhávamos às centenas e Bull Connor mandava soltarem os cachorros, e eles vinham. Mas nós enfrentávamos os cães cantando. (…) ‘sobre minha cabeça vejo a liberdade no ar’, E éramos jogados nos camburões e por vezes amontoados como sardinhas em lata. E eles nos jogavam lá dentro e o velho Bull dizia: ‘levem eles embora’. E eles o faziam e nós seguíamos no camburão cantando: ‘nós vamos vencer’. E várias vezes éramos presos e víamos os carcereiros nos olhando pelas janelas, sensibilizados por nossas preces, por nossas palavras e por nossas canções. (KING, 2014: 424-425).

 

Os cânticos de liberdade eram entoados “pelo mesmo motivo que os escravos os cantavam porque nós também estamos submetidos à servidão e esses cânticos reforçam nossa determinação de que ‘nós vamos vencer, negros e brancos juntos, nós vamos vencer um dia’” (KING, 2014: 216). Desse modo, a união era constituída, as músicas lhes davam coragem e os ajudavam a marchar juntos apelando por voluntários não violentos para servir naquele exército.

 

Em grupos de vinte, trinta ou quarenta, as pessoas se apresentavam para se alistar no nosso exército. Não hesitávamos em chamar nosso movimento de exército. Era um exército especial, sem suprimentos que não a sinceridade, sem uniforme que não a determinação, sem arsenal que não a fé, sem moeda que não a consciência. Era um exército capaz de cantar, mas não de matar. (KING, 2014: 217).

 

Um exército que marchava sob a firme liderança de King (2014: 218) que estava crente de que “Deus me deu, de alguma forma, o poder de transformar em fé e entusiasmo os ressentimentos”, certamente porque esse líder sabia conduzir suas palavras: “minha fala vinha do coração e a cada encontro obtive firmes manifestações de aprovação, juntamente com promessas de participação e apoio”.

Não há faltas quanto ao senso de justiça que questiona o amor e o coloca como suspeição (ALBORNOZ, 2002: 86) se a recusa à violência, ainda que sob os moldes de restauradora da justiça, for substituída pela ação não violenta onde a paz realmente é luta. Não se fugiu às peregrinações, às marchas, aos protestos, à necessidade da desobediência civil, aos riscos e ao martírio, apenas se trocou as armas que destroem pelas armas que constroem, a agressão pelo canto, o massacre pela esperança, a ruína e o desespero pela oportunidade de tentar outra alternativa de enfrentamento. King destruiu definitivamente, no movimento não violento pelos direitos civis dos negros americanos, a velha preocupação (ALBORNOZ, 2002: 89) de que a não violência favorece os que dominam. Sua luta não perpetuou a violência estruturada do sistema, combateu-a permanentemente.

 

Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o negro enfrenta em seu caminho para a liberdade não é o membro do Conselho dos Cidadãos Brancos ou da Ku Klux Klan, mas o branco moderado, mais devotado à ‘ordem’ do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que consiste na presença da justiça (…) A compreensão superficial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta daquelas de má vontade. (KING, 2014: 235-236).

 

Ele frustra uma eventual manipulação da ideologia da não violência no cristianismo, com atitudes totalmente contrárias aos pastores brancos interessados em parar o movimento. King (2014: 231) tinha plena convicção de que “a liberdade nunca é voluntariamente concedida pelo opressor, deve ser exigida pelo oprimido”.

 

Devo lhes dizer que não conseguimos uma única vitória em matéria de direitos civis sem certo grau de pressão legítima e não violenta. Por mais lamentável que seja, é um fato histórico que os grupos privilegiados dificilmente abrem mão de seus privilégios de maneira voluntária. (KING, 2014: 231).

 

A violência contra eles continuou. Em Selma, a sucessão de assassinatos e espancamentos brutais refletia o ódio e o terror dos racistas pelos que lutavam pelo direito de voto. “Protestantes, católicos e judeus juntaram-se lindamente para expressar as injustiças e indignidades que os negros enfrentavam no estado do Alabama e em todo o Sul no que se referia à questão do direito de voto”. (KING, 2014: 340). Além dos religiosos, a marcha de Selma para Montgomery mobilizou a comunidade acadêmica, intelectuais, sindicatos e entidades pelos direitos civis. “Um fato pouco conhecido é que quarenta dos principais historiadores dos Estados Unidos participaram da marcha para Montgomery”. (KING, 2014: 340). Apesar da conquista da lei federal em 1965, a violência contra eles não cessou, mas a escolha da ação não violenta também não.

Em 1964 King havia sido premiado pelo Nobel da Paz e mesmo assim, com relação ao enfrentamento da violência, o desafio continuou. O grito contra a Guerra do Vietnã em 1967 e a campanha pelos pobres o mantiveram atuantes como foi até o seu último dia de vida.

O resultado da escolha da luta não violenta de King, construída em nome do amor, foi inestimável e mudou radicalmente a história dos movimentos civis americanos. A crescente mobilização desencadeada pelas intensas campanhas tivera momento glorioso na Marcha sobre Washington em 1963, com cerca de 250 mil pessoas que de todos os cantos do país marcaram presença, entre celebridades e cidadãos comuns, muitos deles a partir de sacrifícios pessoais, mas todos compartilhando alegremente um sonho de liberdade e democracia.

 

Aquela enorme multidão era o coração vivo, pulsante, de um movimento infinitamente nobre. Era um exército sem armas, mas não sem força. Era um exército para o qual ninguém tinha de ser recrutado. Era branco, negro e de todas as idades. Tinha simpatizantes de todos os credos, de todas as classes, de todas as profissões, de todos os partidos políticos, unidos por um único ideal. Era um exército em luta, mas ninguém podia ignorar que sua arma mais poderosa era o amor. (KING, 2014: 266).

 

Referências

ALBORNOZ, S. Violência ou não-violência: um estudo em torno de Ernst Bloch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000 (2002 reimpressão). 192 p.

GANDHI, M. K., Hind Swaraj: autogoverno da índia/ M. K. Gandhi; tradução de Gláucia Gonçalves; Divanize Carbonieri; Carlos Gohn; Laura P. Z. Izarra. Brasília: FUNAG, 2010. 152 p.

GENOVESE, E. As Revoltas dos Escravos em uma Perspectiva Hemisférica. In: Da Rebelião à Revolução. São Paulo: Global, 1983, p. 25-61.

______. A Religião dos Escravos em Perspectiva Hemisférica. In: A Terra Prometida: O mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988, p. 267-284.

KING, M. L., 1929-1968. A autobiografia de Martin Luther King/Martin Luther King; organização Clayborne Carson; tradução Carlos Alberto Medeiros. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 463 p.

_______, As palavras de Martin Luther King / Coretta Scott King (org.); tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 127 p.

MORA, J. F. Dicionário de Filosofia, tomo IV (Q-Z). São Paulo: Edições Loyola, 2001.

 

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

THOMPSON, E. P. O termo ausente: experiência. In: A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Louis Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 180-121.

 

“Chão de Kanâmbua”: escovando a contrapelo a “História” de Angola

Marcelo Pacheco Soares

Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo verifica no romance Chão de Kanâmbua, publicado em 2010 pelo autor luso-angolano Tomás Lima Coelho, um resgate de parte da história de Angola, mais precisamente do desenvolvimento de Malanje, província do centro-norte angolano, na segunda metade dos oitocentos. Nesse empreendimento, o autor busca enfatizar a visão da população local sobre os acontecimentos e não a narrativa do colonizador que lhes sempre foi imposta, opção que encontra ratificação no “conceito de história” defendido por Walter Benjamin e aproxima essa narrativa daquelas que Linda Hutcheon classificou como “metaficções historiográficas”.

Palavras-chave: 1. Romance angolano; 2. Metaficção historiográfica; 3. Materialismo histórico.

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’.  Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” (Walter Benjamin)

Em um daqueles contos borgianos em que o escritor argentino traveste sua ficção de um discurso ensaístico acerca de obras imaginadas, discute-se uma versão de Dom Quixote que teria sido escrita por Pierre Menard no século XX, na qual, contudo, estaria reproduzido (mesmo que não necessariamente copiado), ipsis verbis (isto é, palavra por palavra), o romance composto por Miguel de Cervantes, publicado originalmente no princípio dos seiscentos. Não nos cabendo aqui aprofundar a análise do conto de Jorge Luis Borges, apontemos o seu trecho que agora mais especificamente nos vem a propósito, no qual se demonstra que, embora fosse o caso de se tratar de textos aparentemente idênticos, haveria de ter entre as duas escrituras diferenças inerentes às suas origens, cujas produções estariam então separadas por cerca de três séculos e meio:

Es una revelación cotejar el don Quijote de Menard con el de Cervantes.  Éste, por ejemplo, escribió (Don Quijote, primera parte, noveno capítulo):

“…la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.”

Redactada en el sigo diecisiete, redactada por el «ingenio lego» Cervantes, es­a enumeración es un mero elogio retórico de la historia.  Menard, en cambio, escribe:

la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.

La historia, madre de la verdad: la idea es asombrosa.  Menard, contemporáneo de William James, no define la historia como una indagación de la realidade sino como su origen.  La verdad histórica, para él, no es lo que sucedió; es lo que juzgamos que sucedió.  Las cláusulas fi­nales — ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir — son descaramente pragmáticas. (BORGES, 1976, 57)

Estamos assim diante de dois conceitos temporalmente distintos de História.  O primeiro vigora mais fortemente até o século XIX (mas não somente) e, ao ainda ignorar que o discurso histórico oficial advém de um ponto de vista específico, comprometido com os interesses e as ideologias de determinado grupo dominante, lega um estatuto de verdade absoluta a uma História única.  Não por acaso, proliferam nos 1800 os romances históricos realistas de caráter totalizante, isto é, fundados sob um projeto de descrição absoluta de uma sociedade em determinada época.  A substituição dessa primeira prática literário-historiográfica por uma segunda — marcada pela abertura de espaço para os discursos marginalizados na construção das suas narrativas e pela consciência de que, em última instância, elas edificam-se também a partir das subjetividades do seu próprio historiador — torna-se um fértil terreno para a proliferação, na Literatura produzida a partir das últimas décadas do século XX, do que Linda Hutcheon, em seu meritório Poética da Pós-Modernidade, de 1988, chamou de “metaficções historiográficas”.  Seriam essas narrativas baseadas na problematização da História oficial e na consciência da potencial existência de histórias múltiplas e da necessidade de construir narrativas antitotalizantes, modo pelo qual a prosa ficcional pós-moderna reinventa o romance histórico que, no século anterior, tinha a História oficial como base, propondo-se agora uma função não mais reprodutora e sim revisionista sua.  Ampliando ainda o conceito, completa Hutcheon:

A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção.  Ela recusa a visão de que apenas a história tem pretensão à verdade, por meio da afirmação que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade. (HUTCHEON, 1991, 127, grifo nosso)

Ora, no contexto pós-colonial dos países africanos, esse exercício da Literatura (de revisar as suas narrativas históricas ditas canônicas mas forçosamente oficializadas por poderes sócio-políticos) é, mais do que mera opção, uma necessidade, urgência em espaços cujas histórias e culturas e identidades foram sufocadas pela voz de um outro, o colonizador que buscou impor o seu ponto de vista na construção da história local.  Nesse sentido, é peça digna de atento olhar o romance contemporâneo Chão de Kanâmbua, publicado em 2010 por Tomás Lima Coelho (pesquisador conhecido também pelo árduo trabalho de investigação que originou em 2016 o volume Autores e Escritores de Angola – 1642-2015, em que se registram 1780 nomes que perpassam quase quatro séculos de Literatura Angolana).  Não será desse modo despiciendo que, no pequeno texto introdutório ao romance, o autor (diga-se de passagem, um prosador de grande talento, se for aqui permitido esse juízo de valor) faça constar a descrição: “É uma história simples que poderia ter acontecido (se é que não aconteceu mesmo…).” (COELHO, 2015, 9 [desse ponto em diante, as referências ao romance serão feitas apenas com a indicação da página]) — admitindo já assim desde o princípio que essa ficção, tal qual valeria para o discurso histórico, manifestará também a sua pretensão à verdade.

Para que fique marcada tal opção, figuras que com maior ou menor frequência encontrariam espaço nos documentos históricos oficiais serão, quando muito, citações de menor importância no romance (frutos, no entanto, cabe ressaltar, de outro árduo trabalho de investigação do pesquisador Lima Coelho), surgindo apenas como instrumentos a apontar justamente o caminho que as suas linhas privilegiarão, a escovar a História a contrapelo, nos termos conhecidos de Walter Benjamin.  Ao defender que o historiador, no estudo sobre uma época, abdique do seu conhecimento acerca de suas fases posteriores, a fim de eliminar a sua potencial empatia com os vencedores e poder se comprometer com aqueles que foram dominados (nomenclatura pertinente ao discurso marxista que rege o seu pensamento), Benjamin, na parte 7 do seu artigo “Sobre o conceito de história”, assevera:

Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes.  A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.  Isso diz tudo para o materialista histórico.  Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.  Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe.  Esses despojos são o que chamamos bens culturais.  O materialista histórico os contempla com distanciamento.  Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror.  Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos.  Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.  E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.  Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela.  Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1985, 225, grifo nosso)

Daí que, por exemplo, ao fazer rápida referência a Manuel Maria Coelho, o ex-tenente Coelho — oficial do exército português envolvido com a malsucedida revolta republicana de 1891 no Porto cuja pena é o degredo a Angola, país de que, todavia, será Governador após a Implantação da República — a narração do romance de Lima Coelho aponte ser essa precisamente uma outra história, qual seja, aquela que ali não se espera privilegiar: “Apenas cresceu o número de degredados e exilados políticos entre os quais se contavam muitos envolvidos na revolta de 31 de janeiro.  Entre eles estava um dos poucos oficiais que se juntaram aos sargentos revoltosos: o tenente Coelho.  Mas essa é outra história.” (147, grifo nosso).

Pode-se citar ainda a brevíssima passagem no romance do linguista e missionário protestante suíço Héli Chatelain (responsável, nos século XIX, por uma tradução dos Evangelhos para o kimbundu, pela elaboração de uma Gramática dessa língua e pela publicação bilíngue kimbundu-inglês de contos populares angolanos), que, em suas viagens pela África, conhece Jeremias Alves da Costa (no romance, amigo de infância, em Malanje, de Venâncio, um dos filhos do protagonista), o qual leva para a América e consta registrado pelo próprio Chatelain como o primeiro angolano convertido ao cristinanismo.

Ou é possível lembrarmos ainda a menção a um antigo fundidor de metal local, José Álvares Maciel, um dos punidos no século XVIII pela conjura conhecida no Brasil como Inconfidência Mineira.  Vale a pena observar, em 1910, os destroços que o narrador descreve da Fundição Nova Oeiras em que trabalhara Maciel: “o que teria sido um grande edifício cujas ruínas estavam quase totalmente cobertas por mato denso.  Já mal se distinguiam as portas e janelas por onde saíam troncos e lianas.  A selva, pujante e dominadora, reocupava o espaço que o homem em tempos lhe roubara.” (66) Ora, as ruínas configuram-se em fundamental alegoria do pensamento historiográfico materialista benjaminiano.  O anjo da história que o pensador alemão opta por do ponto de vista dos dominados é significar as ruínas.distinguir em uma tela de Paul Klee (o Angelus Novus) está de costas para o futuro ao qual é arrastado e seu olhar para o passado divisa “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína” (BENJAMIN, 1985, 226).  As ruínas benjaminianas são (dentre outras coisas) a manifestação iconoclasta do que ainda há da morte vivo na esfera presente, descrições das potencialidades daquilo que poderia ter sido/ser hoje, mas não foi/é: em suma, as ruínas são fragmentos que contam a história dos ditos vencidos, precisamente essa que o romance de Lima Coelho sói narrar.  Contar a história do ponto de vista dos dominados é significar as ruínas.

Por fim, para encerrarmos aqui essa pequena amostragem, outro exemplo mais da forma como se alude a história tradicional no romance encontramos quando se descreve a morte da esposa do protagonista, em que o fato habitualmente designado histórico (o assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe herdeiro Luís Filipe, que culminaria na queda do regime monárquico português dois anos depois) surge apenas como um ponto de referência temporal que não merece maiores considerações, sobre o qual não se discorre coisa alguma, descentralizando-o no discurso e legando-lhe o espaço marginal — ou seja, aqui a história do dominador é que aparece em paralelo, reduzida a ruínas que não mais farão jus ao olhar do historiador:

Foi numa noite chuvosa de Novembro, no fatídico ano de 1908, o ano do regicídio.  Na casa de Manuel Justino dois lampiões pendurados no alpendre iluminavam a porta por onde entravam e saíam pessoas num silêncio compungido.  D. Ana, a sua mulher, acamada havia dois meses, prostrada por uma doença desconhecida que a fazia definhar aos poucos, estava com a vida por um fio. (18)

Será, aliás, Manuel Justino aquele na companhia de quem o foco narrativo percorrerá, ainda que em narrativa extradiegética, todo o romance, o qual se desenvolve nas lembranças do protagonista, bem-sucedido comerciante, elaboradas durante viagem de trem de Malanje a Luanda nos trilhos da recém-inaugurada estrada de ferro, percurso de cerca de 450 km que, já idoso, ele empreende — meio século após ter vencido, a pé, o caminho contrário rumo a um espaço que, à época, reduzia-se a um presídio e a uma feira.  Embora português de nascença, Justino estabelece no decorrer do romance uma identidade angolana.  Por isso, por exemplo, recusa-se a chamar a esposa, uma mulata de olhos azuis filha de uma baluba (uma das etnias angolanas) e um kinguerez (branco não português) e que era escrava de Saturnino Machado (primeiro homem para quem Justino trabalhara) pela alcunha com a qual a batizara D. Josefa (esposa do chefe), referindo-se a ela sempre pelo seu nome africano: “´Nsiji…’.  Tratara-a sempre assim.  Nunca lhe chamou Ana.” (20) — embora, pelo contrário, por motivos óbvios ligados à busca de maior estatuto social, Nsiji tenha sempre se esforçado para cada vez mais se identificar com os costumes europeus dos brancos locais.  E, por ocasião de contato com exploradores europeus, o protagonista demonstra a consciência do valor da cultura local e indignação com os preconceitos, ciência que uma vez mais credencia que possa com ele se identificar uma narrativa que almeja contar a história dos dominados:

Apercebera-se que, apesar dos seus conhecimentos e cultura, estes homens vinham imbuídos de falsas verdades e de conceitos totalmente errados sobre os africanos e sobre a vida em África.  Ficava muito incomodado quando estes pretensos sábios se referiam aos negros considerando-os pouco mais do que animais de carga, não lhes reconhecendo tradição nem história e não respeitando a sua cultura.  Mas calava-se sempre, não deixando sair o que lhe ia na alma, reprimido pela sua condição de ex-degredado. (131)

A origem portuguesa do personagem, todavia, potencializa, por outro lado, que essa versão da história chegue também aos antigos vencedores que colonizavam e se apoderavam de Angola.  É, ademais, significativo que compareça no romance, que se passa nas últimas décadas do século XIX e no princípio do XX, esse protagonista o qual adota Angola como sua terra a despeito de sua origem portuguesa (seu degredo ao país africano ocorre após Justino assassinar um poderoso feitor que abusara de uma irmã sua, chegando à África, aliás, sob condições físicas algo semelhantes às dos africanos levados em navios negreiros, quiçá a primeira e mais sutil das aproximações que levarão o personagem a uma gradativa africanização).  Ora, o autor Tomás Lima Coelho é natural de Angola, mas sua nacionalidade civil é portuguesa, já que descende de avô colono, sendo fruto das relações estabelecidas entre angolanos e portugueses; reconhece-se, por outro lado, como angolano, nascido no Namibe, ainda que abrace Malanje (cenário do romance) como seu chão; na casa dos 20 anos, porém, passou a viver em Portugal, fugindo à guerra em 1975.  Parece-nos que é possível, portanto, verificar alguma identificação entre os sentimentos pátrios de criador e criatura em relação a Angola e a Portugal.

Mais do que isso, o intermitente (pelas circunstâncias mais variadas) convívio afetivo que por toda a trama Manuel Justino estabelece com Kangombe, angolano filho de um nganguela com uma jovem escrava da tribo dos songo, parece simbolizar a forma de se relacionar entre portugueses e angolanos, não as nações em si, em seus laços diplomáticos (ou na falta desses, como chegou a ocorrer logo após a independência), mas os seres humanos que povoam esses países ou que possuem uma ou outra dessas terras como origem.  Kangombe e Justino conhecem-se na viagem a Malanje e, na ocasião, o jovem é punido com a perda de um dedo ao dar vazão à curiosidade e mexer em um aparelho do chefe da comitiva, ação confundida com intenções de furto.  A amizade entre eles, no entanto, surge alguns anos depois, quando o angolano cuida do convalescente Justino após ter sido gravemente ferido em uma emboscada de guerreiros mbangala.  É então que Justino sente nele “uma confiança que nunca antes sentira apesar das diferenças de cultura, de crenças e de hábitos.  Desde que pisara solo africano era a primeira vez que sentia o espírito tão solto e livre.” (77)

Está certo que o título alternativo do romance, “O Feitiço de Kangombe”, na economia do enredo, refira-se ao efeito do “poderoso feitiço que lhe fizeram […] os maus espíritos” (27), por intermédio de um velho bruxo, sortilégio que condena Kangombe a afastar-se daqueles por quem sente apreço e terá resultado decisivo no destino de Manuel Justino.  Os sintomas físicos da condição de Kangombe, aliás, são percebidos pelo protagonista a certa altura:

Naqueles breves momentos a fisionomia de Kangombe ficava diferente.  O olhar fixava-se, tornava-se distante como se estivesse em transe.  E uma sensação pesada, de ameaça ou qualquer cosia parecida, pairava no ar causando um arrepio gelado a quem estivesse a seu lado.  Mas era um momento tão fugaz e transcendente que mal se conseguia perceber e muito menos explicar.  Mais esquisito ainda era o facto de Kangombe, aparentemente, não se aperceber da mudança que se operava nele. (78)

     Todavia, em leitura mais aprofundada, não há dúvidas de que tal feitiço faz alusão à entrada definitiva do protagonista na África e na gradativa mudança da sua identidade pátria; não é por acaso, mas por puro senso de contraste, que seja rapidamente descrito na trama outro comerciante, José Vaz, “um dos primeiros habitantes do Kisol, que retornara ao Reino por motivos de saúde e que, ao contrário de todos os outros, nunca se tinha deixado apanhar pelo feitiço africano: o seu coração nunca esqueceu Portugal” (163, grifo nosso).  É com Kangombe, por exemplo, que Justino toma as primeiras lições de kimbundu — embora o protagonista nunca deixe de falar português, já que “a língua era a única amarra que Justino fazia questão de manter relativamente a Portugal.  Em tudo o resto procurava viver e sentir como um africano” (157) — e contata de modo mais aprofundado a cultura local.  É o amigo a primeira porta para compreender o fascínio que o sertão angolano lhe proporcionara, aceitando-o como um filho seu, quando Justino deslumbrara-se pela primeira vez com a grandeza do espaço malanjino, do alto de uma grande rocha:

O que viu deixou-o paralisado: a imensidão que se abria diante de si, com mil tons de verde, azul e cinzento, oferecia-lhe um espetáculo de enorme beleza e grandiosidade.  Manuel Justino sentiu o coração disparar, tal era a sensação de pequenez perante tamanha imensidão.  Com o sol já no ocaso, aquela enorme bola vermelha que se despenhava no horizonte, as cores com que o céu se cobria eram de uma beleza tal que seus olhos marejavam de lágrimas.

[…]

Uma estranha paz se apoderou do seu espírito quando sentiu que aquele mundo que assim lhe abria as portas não lhe era hostil.  Foi como uma revelação, um sentimento que nunca saberia explicar por palavras, quando Manuel Justino sentiu, no mais profundo de si, que pertencia àquela terra.  Naquele momento, soube que era um homem novo, renascido. (50)

Daí que seja possível, apesar de sua condição original de português, que a narrativa contada sob o seu ponto de vista promova a história de Malanje como quem o faz a contrapelo, do ponto de vista de Angola, segundo procede então o romancista e pesquisador angolano Tomás Lima Coelho.  O autor já manifestou intenções de fazer uma continuação do romance: partes da história de Angola a receberem essa mesma escovada benjaminiana não faltam.

 

Referências bibliográficas:

  1. BENJAMIN, Walter. “As Teses sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas I – magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 222-232.
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  3. COELHO, Tomás Lima. Autores e Escritores de Angola – 1642-2015. Lisboa: Perfil Criativo – Edições, 2016.
  4. ——. Chão de Kanâmbua. Lisboa: Chiado Editora, 2ed., 2015.
  5. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: História – Teoria – Ficção. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 

 

Quem essa negra pensa que é?

Uma mulher negra no poder incomoda muita gente.

Trabalho de Conclusão de curso (2016) apresentado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – Campus São Gonçalo, como pré-requisito para obtenção do título de Especialista em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afrobrasileira.

Orientadora:

Profª.Drª.Ângela Maria da Costa e Silva Coutinho

RESUMO

Este é um trabalho de conclusão de curso que tem por objetivo problematizar as questões relacionadas à mulher negra e seu lugar social. O incômodo que essa mulher negra gera, quando se destaca e sai do lugar convencional estabelecido pela tradição da sociedade patriarcal, ou seja, quando rompe convenções e expectativas oriundas dessa tradição, atingindo patamares “pertencentes” às mulheres ou homens brancos. O estudo é desenvolvido a partir das orientações referentes à leitura dos discursos, leitura essa aplicada aos casos em que a mulher negra é discriminada e constrangida por causa de sua cor e raça. Explora-se, ainda, as representações femininas na sociedade atual em sua diversificada competência.

Palavras-Chave: mulher negra, discurso racista, lugar social, poder, representatividade

ABSTRACT

The present study analyses black women and their social place. The discomfort caused by them when a social or professional high position is reached. This bother is caused because breaks with white people expectative and conventions. This study is developed referencing hater’s speech used to decriminalize black women. Also, is explored in this study, black women representations in Brazilian society and their competence.

Keywords: Black women. Discrimination. Hate’speech . Social place. Representativity.

1. INTRODUÇÃO

1.1 Apresentação

É muito comum ouvir a pergunta “Quem ele pensa que é?” para demonstrar repúdio por alguém que essa pessoa julga como “inferior”, mas que supostamente se encontraria “fora do seu lugar”, numa posição diferente do senso comum, como se fosse “superior” às demais. Essa pergunta poderia até ser entendida como “normal”, se partíssemos do pressuposto de que todos são iguais, ou deveriam ser iguais, independentemente de credo, raça ou cor. Todavia a questão assume ainda outro caráter quando se refere a uma mulher negra que ocupa um lugar entendido como de poder. Isso a resgata, a princípio, do lugar que é então “permitido” e a sobrepõe às estatísticas vigentes na sociedade brasileira.

Mas, qual seria o lugar da mulher negra nos espaços sociais? Os espaços independem de limites físicos, a espacialidade social está intrinsecamente ligada à espacialidade individual, e esta, depende de uma série de situações que definirá o seu limite.

A espacialidade assim definida não é aquela que deriva da pronta parametrização da distância entre limites, mas é situacional, incluindo nossas tarefas, expectativas e fobias, polarizando-se para atingir certas finalidades. Os lugares do espaço, diz o filósofo, inscrevem ao redor de nós o alcance variável de nossas visadas e de nossos gestos. Dependente de nosso tempo interno, esse espaço corporal é eminentemente expressivo, sendo uma natureza marcada por nossos valores culturais, crenças e sonhos. (PALLAMIN, 2007, p. 181-193)

A situação em que a mulher negra é inserida ao chegar a uma posição de poder desperta fobia e desfaz as crenças, valores e sonhos da fronteira do visível, da normalidade, ou seja, dos brancos. E como ocupar esse lugar é algo iminentemente expressivo, é visto de várias formas racistas e traduzido em discursos preconceituosos pela sociedade.

Mas qual é o “lugar permitido”? O negro no Brasil sempre foi visto à margem da sociedade, até mesmo porque sua condição atual foi um produto de um sistema historicamente condicionado para que esse pensamento sobrevivesse até hoje.

O ex-escravo e seus descendentes saíram espoliados da escravidão e despreparados para o trabalho livre, incapazes, enfim, de se adequar aos novos padrões contratuais e esquemas racionalizadores e modernizantes da grande produção agrícola e industrial, tornando-se doravante marginais por força da lógica inevitável do progresso capitalista. Quanto ao elemento nacional livre, formado em sua maioria de negros e mestiços pobres e que durante toda a escravidão vivera à margem da grande produção exportadora, ele continuaria “vegetando”, marginal e dispensável, a não ser em regiões de fraco desenvolvimento econômico aonde não chegaram imigrantes. É que também ele sofreria do mal da “herança da escravidão”, acostumado às relações patriarcais de dependência servil e entregue em sua maioria a atividades de mera subsistência. (AZEVEDO, 1987, p 18).

O lugar permitido para a mulher negra, historicamente, é à margem, quaisquer que seja a esfera social abordada. A condição de sempre estar em um lugar previsível, em um lugar comum, torna a ascensão da mulher negra praticamente intolerável aos olhos da sociedade. O desenvolvimento da mulher negra é inversamente proporcional ao poder exercido pelos organismos sociais tradicionais. Quanto à posição na hierarquia da sociedade brasileira, são as mulheres negras a base piramidal, seja no mercado de trabalho ou na vida social em geral. A questão da mulher negra não se adere somente a uma questão de gênero, é uma questão de raça e sexualidade. Segundo Sueli Carneiro “é preciso enegrecer o feminino”, uma vez que o feminismo trata somente da questão de gênero. Os problemas das mulheres brancas, em tese, serão os problemas das mulheres negras, contudo os problemas das mulheres negras não serão os problemas das mulheres brancas.

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas…Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! (CARNEIRO, 2014, p. 1-2)

Segundo Lélia Gonzalez[1], o feminismo no Brasil padecia de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés eurocêntrico do feminismo brasileiro que omitia a centralidade da questão de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, universalizava os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não brancos constituía-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revelava um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra, ao negar toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo.

Ao colocar a questão de gênero como uma questão social, a mulher se transformou em um sujeito político e, essencialmente, trouxe outros sujeitos e grupos particulares como o grupo de mulheres negras. O movimento das mulheres negras vem para dar relevância aos anseios e assumir e estruturar articulações para que o sujeito social mulher negra faça parte do meio social brasileiro.

É importante salientar que nesse meio social já existe, para a mulher negra, um mercado de trabalho a ser ocupado:

O fato de 48% das mulheres pretas […] estarem no serviço doméstico é sinal de que a expansão do mercado de trabalho para essas mulheres não significou ganhos significativos. E quando esta barreira social é rompida, ou seja, quando as mulheres negras conseguem investir em educação numa tentativa de mobilidade social, elas se dirigem para empregos com menores rendimentos e menos reconhecidos no mercado de trabalho. ( LIMA, 1995, p. 28)

Com relação às leituras das fórmulas discursivas, os estudos de Maingueneau (2011) referentes à aforização[2] proverbial e o feminino, apontam para o fenômeno de um conjunto de citações sem autor definido, como se pode atribuir ao caso da primeira parte do título deste trabalho, “Quem esta negra pensa que é? Segundo Maigueneau, é necessário dar atenção à proliferação dos provérbios sobre as mulheres, em contraste à escassez do mesmo fenômeno relacionado aos homens. Portanto, os homens formulam os ditames relacionados à moral, ao comportamento, à expectativa de um perfil feminino tradicional, traçado pela visão masculina.

 

CAPÍTULO 1

INEDITISMO DA MULHER NEGRA BRASILEIRA: UMA QUESTÃO HISTÓRICA

1.1. Principais profissões comuns à mulher negra no período pós-abolição

A questão do lugar da mulher negra no Brasil contemporâneo é fruto de uma história que insiste em não se desatualizar. Nos dias atuais é bastante comum encontrar mulheres negras trabalhando em casas de família como babás, domésticas, cozinheiras, lavadeiras, passadeiras etc. Segundo dossiê elaborado pelo IPEA (2013, p.74).

Segundo os dados da PNAD, havia no Brasil, em 2009, cerca de 7 milhões de pessoas vinculadas ao emprego doméstico, das quais cerca de 500 mil eram homens. A categoria de empregados domésticos é majoritariamente feminina, com cerca de 7% de homens. Entre as mulheres, a proporção de negras (21,6%) é bem maior que a de brancas (13,5%). A grande concentração de mulheres negras no emprego doméstico chama atenção dos pesquisadores desde meados do século XX.

Mas a que se devem esses dados? No período da escravidão, a mulher negra era responsável pelos afazeres domésticos e, apesar de a mulher branca ser oprimida por uma questão de gênero, nesse âmbito ela fazia parte da classe opressora, onde, de fato dava as ordens para que estas fossem seguidas pela sua mucama. Já no período pós-abolição, essas mesmas mulheres negras se viram obrigadas a continuarem fazendo esses serviços domésticos em troca de pagamento, visto que, muitas vezes, tinham que complementar a renda familiar, ou até mesmo ser a principal fonte de renda da família, uma vez que no período pós abolição era mais difícil para o homem se inserir no mercado de trabalho.

Devido a suas características (trabalho manual, não requer especializações) o trabalho doméstico passou a ser para muitas mulheres negras a única opção de sustento da família e isso se perpetua até os dias atuais. Segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos), entre 2004 e 2011, a proporção de mulheres negras ocupadas nos serviços domésticos no país cresceu de 56,9% para 61,0%, ao passo que entre as mulheres não negras observou-se uma redução de 4,1% pontos percentuais, com a participação correspondendo a 39,0%, em 2011. Em todas as regiões do país, a tendência de elevação do percentual de trabalhadoras domésticas negras esteve presente, exceto para a região Norte, onde passou de 79,6%, em 2004, para 79,3%, em 2011. A região Sudeste registrou o maior aumento de mulheres negras ocupadas no trabalho doméstico no período, com o percentual correspondendo a 52,3%, em 2004, e atingindo 57,2%, em 2011. (Gráfico 1). Continuar a ler

Utopia y revolución

¿Qué es una utopía? Según el DRAE, tiene dos acepciones cercanas: 1. Plan, proyecto, doctrina o sistema deseables que parecen de muy difícil realización; 2. Representación imaginativa de una sociedad futura de características favorecedoras del bien humano. La segunda ha sido la más difundida y conocida. La idea de una sociedad futura, perfecta es un sueño muy antiguo; casi todas las utopías se remiten a un pasado remoto, es decir: hubo una vez una edad de oro. Así hablaban Homero, Hesíodo, Platón en El banquete (cuando Fedro se refiere a Afrodita Urania en contraste con Afrodita popular), Virgilio cuando habla sobre el reino de Saturno, la Biblia Hebrea (el paraíso terrenal). Cabe citar las utopías del renacimiento: las de Tomas Moro llamada Utopía, Tommaso de Campanella, La ciudad del sol y La nueva Atlántida de Francis Bacon. Decía Alfonso Reyes: “la ancha respiración del renacimiento corre por estas obras: libertad y cultura, alegría de pensar, y pensar bien”.

Se trata de imaginar cómo sería un mundo donde no hubiera malestar, en el que no habría miseria ni codicia, ni pobreza ni enfermedades ni miedo ni peligro de un trabajo embrutecedor. Las diferentes utopías de Occidente pueden contener estos mismos elementos. Su característica principal es que son estáticas como la sociedad ha alcanzado un óptimo de felicidad nada puede alterarse en ellas, no hay ninguna necesidad de cambio pues todos los deseos humanos naturales están colmados. El filósofo polaco Leszek Kolakowski sostenía que mientras la utopía sea tan solo la visión de un mundo sin sufrimiento, tensión y conflicto, no es más que un ejercicio literario e inofensivo. Pero es siniestra cuando creemos poseer una especie de técnica de apocalipsis, un instrumento para dar vida real a nuestras fantasías. En este caso la utopía implica un fin último y todos los medios que conducen a él pueden parecer válidos. A los jerarcas comunistas, revolucionarios socialistas, esta fantasía les da un marco conceptual muy conveniente: sobrevendrá un mundo perfecto de unidad y felicidad; podrá suceder en cien años o quizá en mil años, pero su certeza justifica el sacrificio de las generaciones presentes. Esta certeza, de acuerdo con Marx y Engels es real puesto que se trata de una conquista del “socialismo científico”, superación del socialismo utópico.

Sin embargo, nadie puede prohibirnos, ni sería deseable, pensar en términos de valores difíciles de realizar, según la segunda acepción del DRAE. Hay algo natural en nuestra búsqueda de un mundo mejor después de todo, muy poco se habría progresado si el hombre no hubiese pensado en cosas mejores. En este sentido la utopía es quizá parte permanente de la vida humana. Pero se vuelve muy peligrosa cuando empezamos a querer institucionalizar la fraternidad humana o cuando –como todos los marxistas- confiamos en arribar a la unidad perfecta y la felicidad a través de la violencia y los decretos burocráticos.

No necesitamos releer a Marx, Engels, Lenin y toda la sucesión de marxistas para saber y sentir que la sociedad capitalista o burguesa padece de grandes males y que ha traído indeseables calamidades a la humanidad. De ahí se comprende que los hombres traten, unos de reformar el sistema y otros de transformarlo radicalmente, es decir, no mediante la evolución sino mediante la revolución social: destruir el capitalismo y reemplazarlo por el comunismo, que sería la sociedad de la fraternidad y la felicidad. De esta manera, decía Mariano Picón Salas, que la palabra revolución tuvo vibrante vigencia explosiva en los años que precedieron a la Guerra Mundial II, y que tanto las gentes de izquierda como las de derecha invocaron míticamente ese vocablo que les permitiría forjar de nuevo el mundo a imagen y semejanza de un paraíso terrenal. Ese paraíso no tenía fecha de llegada, pero era inevitable: así lo establecía el socialismo científico. Es una ley inevitable. Para los pensadores utópicos de esta tradición el final feliz es una serenidad sin fin, la luz de una sociedad estática libre de conflictos una vez que el Estado se ha extinguido y toda autoridad constituida se ha desvanecido; surgiría un hombre nuevo, racional, cooperativo, virtuoso, dichoso y libre. Se trata de un intento por tener lo mejor de dos mundos: permitir el conflicto inevitable, consustancial con la sociedad, pero creer que, al mismo tiempo que inevitable, es un estadio temporal en el camino de la autorrealización de toda la realidad.

Surge la pregunta ¿por qué la historia habría de tener una estación final? Picón Salas en su libro Regreso de tres mundos (1959) dice con lucidez: “Dialécticamente dentro de la libertad ‘burguesa’ se engendró el marxismo, como será de esperar que éste, dentro de doscientos o trescientos años, genere otra teoría diferente. De otro modo negaríamos la dialéctica. Porque la idea de Revolución era para mí llegar mucho más lejos a aquel hermético paraíso de bronce en que se troco la llamada dictadura del proletariado. Negando la dialéctica, los intelectuales comunistas durante treinta años no quisieron perturbar los sueños y los planes del camarada Stalin. Y Stalin debía pensar –con autoridad de dogma- no solo sobre política sino también sobre genética, filología y pintura. ¿No era, en territorio opuesto, lo mismo que decía el ministro de Justicia de Adolfo Hitler?: ‘antes teníamos el hábito de decir qué es esto: ¿justo o injusto? Hoy la pregunta tiene que formularse de otra manera: ¿qué es lo que diría nuestro Führer?’”. Ese ministro era el siniestro Paul Joseph Goebbels.

Pero ha habido el suficiente progreso y tiempo para permitir al mundo, con excepciones, ver la verdad: en 2017 se cumplen 100 años de la Revolución Bolchevique, que implantó el socialismo en Rusia bajo la tutela del PC. En efecto en 1989 fue derribado el muro de Berlín y en 1991 fue disuelta la Unión Soviética, y tras ella cayeron, como soldaditos de plomo los países socialistas satélites. La consigna de Lenin, “todo el poder a los soviets”, no sólo no se cumplió sino que se deformó de tal manera que el Estado se convirtió en un instrumento de tortura y suplicio, creador de los ominosos Gulags y de purgas que encarcelaron y mataron a millones de personas.

China primero, y luego Vietnam, ante tal catástrofe cambiaron de rumbo: no obstante la férrea dominación de los respectivos PC, abrieron un amplio sector capitalista en sus economías. Fue Deng Xiaoping, quien en 1978 sentenció: la solución no está en las comunas, está en el mercado. Quedó así sepultado Mao con todas sus comunas. El fracaso del socialismo que realmente existió –un socialismo de Estado- es una evidencia histórica, un hecho irrefutable. Por eso se ha dicho que tratar de revivirlo es un acto de locura, interpretada como tratar de volver a hacer lo mismo una y otra vez sin que el resultado cambie.

¿Por qué en Venezuela, desde la época de Chávez hasta el presente Padrino/Madurista se sigue insistiendo, no sólo en la idea de un socialismo de Estado que va configurando una tiranía mayor que las preexistentes? El Socialismo significa, de hecho, el Estado propietario de las vidas humanas. El punto clave es este: no se necesitó distorsionar fundamentalmente al marxismo para que sirviese a las clases privilegiadas, la burocracia, los militares y los militantes del partido, como instrumento de autoglorificación. Se quiso eliminar, o al menos reducir el muestrario multicolor de la irrevocable variedad de los temperamentos humanos y sus ideales, reducidos brutalmente a la uniformidad. Al igual que el fascismo de Mussolini, y el nazismo de Hitler, el comunismo se convirtió en un sistema totalitario. Hannah Arendt lo mostró claramente.

Kolakowski lo dijo claramente en un discurso memorable pronunciado en 1977 en el Pen Club Polaco:

El arma secreta del totalitarismo [es] emponzoñar con odio toda la trama espiritual del hombre, despojándolo así de su dignidad”.

En su obra mencionada Picón Salas nos dice “Casi negando la Historia, entre la sociedad que debía nacer y las épocas anteriores aquellos fanáticos [los gélidos hombres de partido] erigían una solución de continuidad, y con los epítetos de ‘burgués’ y ‘reaccionario’ hubiera negado el arte y la literatura de las edades precedentes”. La uniformidad mata, la sujeción a una sola ideología, no importa cuán razonable e imaginativa sea, roba a los hombres su libertad y su vitalidad.

Ensamblaje para entendernos

AUTOR: Héctor Silva Michelena, Economista, professor, Universidad Central de Venezuela

El 31 de marzo de 2016, en El Nacional, el padre Luis Ugalde escribía: “En Venezuela, tras el triunfo electoral del 6-D, luego de los primeros desahogos alegres, hay el peligro del bloqueo de los cambios: el gobierno, como no puede ni con todos sus motores verbales, se encierra en el castillo del poder y llama en su defensa al servil Poder Judicial y a la inestable lealtad de las armas. Mientras que los opositores demócratas concentran su esperanza en el Legislativo. Aunque el TSJ hable de leyes no ejerce de juez sino de parte, ni el debate es jurídico sino de poder político para someter al otro. El juego está trancado, entre el Legislativo haciendo nuevas leyes, y el Judicial bloqueándolas de antemano. Pero la miseria y desesperación de la gente avanzan y exigen cambios de fondo” (Elogio de la política, UCAB, 2016).

Más adelante, en el mismo artículo, el pare Ugalde formula esta proposición: “Para desbloquear el camino y reconstruir al país es imprescindible llegar a un acuerdo sobre un gobierno de salvación nacional con compromisos básicos respaldados por parte del chavismo y de la oposición democrática, con medidas de cirugía mayor para recuperar la democracia, con una economía que atraiga inversión, crecimiento y abastecimiento para una sociedad que recupere la esperanza”.

La excelencia del texto excusará la extensión de la cita. ¿Qué ha ocurrido desde entonces? En los más de ocho meses transcurridos, el juego no sólo sigue trancado, sino que en el coto cerrado donde juegan payasos hipócritas que, fingiendo y fingiendo, han dado la espalda a millones de venezolanos, hiriendo de muerte a la esperanza y ahondándolos en la miseria. Sólo la camarilla gobernante, milico-civil, se ha beneficiado con esta calamidad pública, ya demasiado larga. No se requiere ser un sabio en ciencias sociales para sospechar que, bajo su aparente pasividad, emerge un volcán que vomita azufre y cenizas tóxicas.

En una entrevista reciente conducida por el lúcido periodista Alonso Moleiro (AM, en Tal Cual, 17 al 23 de noviembre), el ex rector de la UCAB afirma sin tapujos: “Esto es una dictadura con miseria para la mayoría”. Ante la pregunta de AM, Ugalde responde: “Yo te quiero decir por qué digo ‘arbitrariamente’ que estamos en una dictadura. En un país donde en una elección la oposición triunfa con dos tercios de la Asamblea y se dice ‘esa Asamblea cualquier decisión que tome es inválida, sin importar sin importar cuál es la argumentación’. Segundo, el Poder Judicial hace lo que yo, el Ejecutivo, le pido que haga; los militares sirven, no para proteger la Constitución, sino para defender al régimen (…) el control es total y el ideal para el dictador es que l dictadura sea aceptada por los súbditos”. Más claro, ni los claros clarines del gran Darío.

AM pregunta: ¿cómo se enfrenta una dictadura? Ugalde: “Lo peor que se puede hacer es empezar a regatear con la dictadura. Estamos secuestrados: nos secuestraron las elecciones, el abastecimiento, las medicinas, nos metieron un montón de presos a los que les han inventado delitos. La tentación puede ser empezar a rebajar, como ‘no me das todo’ porque eso es lo que se hace con el secuestrador. Pero eso es lo que no se puede hacer”. Yo, HSM, lo comparto. Empero, ¿no se está haciendo ya?

Consecuente con todo lo que ha predicado y escrito, el padre Ugalde nos propone lo siguiente para lograr un gobierno de salvación nacional: “Yo creo que un reto para los demócratas es comunicación, comunicación, comunicación con la población en doble dirección. En estos días ha habido mucha confusión. Uno entiende por la presión que tienen los dirigentes, incluso se enredan entre ellos, pero tiene que quedar claro que una cosa son las diferencias y otra cósala gran batalla. Y eso, la fuerza que tiene la oposición es que el 90% del país está desesperado y quiere la salida y la Constitución le da la razón. Entonces se tiene que pedir este matrimonio y no podemos inventar otra cosa”.

AM: ¿y qué opinión le merecen los militares? Ugalde: “Aquel sector de la Fuerza Armada que es clave para mantener esta dictadura es una vergüenza. Es decir, la FA tiene la obligación de defender la Constitución y realmente, y estando en esta situación, evidentemente, si el Gobierno no tiene la mayoría, ¿por qué se mantiene?, porque tiene la fuerza y la ejerce. Dice que cree que puede haber elecciones, pero hay que presionar duro al gobierno con la AN, y la acción internacional. Afirma que no se pueden dar largas porque eso aumenta la tortura de pueblo venezolano, que hace colas para comer y curarse pero no encuentra los productos.

Elías Pino Iturrieta, en su artículo en EL Nacional (04/12/16), después de arrancarle el embustero y tramposo mascarón de proa, y desnudar su dislexia coprológica, nos dice que Maduro “viene afirmando en los últimos días que mantendrá la mesa de diálogo hasta 2020 o 2021, y que evitará que los interlocutores la abandonen. ¿Puede caber una mofa de mayor estatura? ¿Se puede uno imaginar una befa más grande?”. Y concluye muy bien su notable artículo: “En suma, Maduro afirma que terminará su mandato, que lo prologará hasta las calendas griegas valiéndose de un simulacro de diálogo, es decir, emborrachando las estúpidas perdices”. Pausa y sigue.

“La analogía con las perdices va con los líderes de la oposición que guardan silencio que guardan silencio con la descarada operación y que acudirán raudos a la próxima reunión, pero también con el señor a quien le toca repartir la baraja: el delegado pontificio. Rodríguez Zapatero y sus colegas deben estar felices de la vida, como partes esenciales de la jugada y como observadores de lo que ya parece idiotez establecida en nuestra sociedad. Nada nuevo bajo el sol venezolano, si nos atenemos a cómo nos miente sin consecuencias todos los días el embustero mayor de la comarca”. ¿Cómo medirle la nariz a este Pinocho no inocente?

Yo sigo insistiendo que quienes han secuestrado el poder son perros de presa: no la sueltan sino con su muerte. Esa presa se llama “Poder”, y el Poder da acceso al dinero público. “Poderoso caballero es el dinero”, nos enseñó hace mucho tiempo el gran Quevedo.

¿Qué hacer, pues? Leamos el artículo 350 de la Constitución: “El pueblo de Venezuela, fiel a su tradición republicana, a su lucha por la independencia, la paz y la libertad, desconocerá cualquier régimen, legislación o autoridad que contraríe los valores, principios y garantías democráticas o menoscabe los derechos humanos”. ¿Quién y cómo se interpreta este artículo? Sencillamente, el pueblo soberano y se interpreta como un derecho a la rebelión. El gobierno y sus órganos del Poder Público (menos la AN, desde luego) y el alto mando militar están incursos en lo pautado en el artículo constitucional citado y, por lo tanto, el pueblo debe desconocerlos. Y punto.

Paz en Colombia. ¿Acuerdo definitivo o futuro incierto?

AUTOR: Héctor Dupuy, Geógrafo, profesor na Universidad de la Plata

 

El 2016 es un año muy particular en lo que hace a la situación mundial y, muy especialmente, para América Latina. Pero, entre el conjunto de noticias y experiencias verdaderamente impactantes que nos ha tocado vivir, se encuentra el hasta ahora tramo final de las negociaciones de paz de la República de Colombia entre dos fuerzas político militares hasta hace poco totalmente antagónicas: el Gobierno Nacional y las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo, que llevaron a cabo un enfrentamiento armado que se viene prolongando por más de cincuenta años y que deja consecuencias sociales, humanas y económicas catastróficas.

Este proceso habría culminado, el pasado 12 de noviembre, con la firma del Nuevo Acuerdo, modificatorio del Acuerdo Final para la Terminación del Conflicto y la Construcción de una Paz Estable y Duradera, suscrito a su vez por los representantes de ambas fuerzas el 24 de agosto de este mismo año y que fuera rechazado por la mayoría de los votantes que participaron del plebiscito realizado el 2 de octubre. Cabe recordar que el porcentaje contrario al Acuerdo alcanzó el 50,21 %, habiendo sufragado sólo el 37,44 % de los votantes registrados.

Si bien el proceso parece estar llegando a su fin, al menos en términos militares tradicionales, su complejidad no asegura un final definitivo o, al menos, no parece resolver las causas que lo motivaron. Ambas partes han declarado en innumerables ocasiones su decisión de sostenerlo y respetarlo y han procurado crear los instrumentos necesarios para que esto se produzca. Asimismo, el documento firmado y reformado, recientemente, ha introducido salvaguardas legales y posturas ideológicas fuertemente equilibradas como para que el resultado pueda ser lo más auspicioso posible.

Un conjunto de apartados documentales dan solidez jurídica dando como resultado un documento muy completo con referencia a salvaguardas políticas de ambas partes y de aplicación fuertemente progresista en cuanto a sus planteos sociales y económicos.

Los apartados atañen a los siguientes aspectos: Reforma Rural Integral (Hacia un nuevo Campo Colombiano), Participación Política (Apertura Democrática para Construir la Paz), Cese al Fuego y de Hostilidades Bilateral y Definitivo y Dejación de las Armas, Solución al Problema de las Drogas Ilícitas, Acuerdo sobre Víctimas del Conflicto (Sistema Integral de Verdad, Justicia, Reparación y No Repetición), Apartado para la Implementación, Verificación y Refrendación, con documentación protocolar y de aplicación formal.

En este conjunto podemos distinguir, como se expresa más arriba, cuestiones de fondo que hacen a exigencias de ambas partes. La introducción de una nueva perspectiva en cuanto a la estructura agraria y a las condiciones del campesinado, sosteniendo principios como la igualdad y el enfoque del género, el bienestar y el buen vivir, la restitución de tierras y el restablecimiento de los derechos a las víctimas del conflicto, el derecho a la alimentación, la participación del campesinado en el planeamiento de las políticas agrarias, la garantía de un desarrollo sostenible, el impulso a infraestructuras indispensables y otros beneficios a los sectores más vulnerables permiten a las FARC avanzar hacia una solución de las causas históricas del conflicto.

Asimismo, el sector insurgente se asegura una apertura que le permite un piso de participación política, junto con su subsistencia, la legalización de su miembros (bajo condiciones de un escaso riesgo de represalias jurídicas) y el consiguiente reconocimiento de su actividad en el marco del sistema democrático liberal, a la vez que impulsa una reforma política que brinde seguridades a la oposición y a los dirigentes de partidos y movimientos políticos y sociales, generando una serie de mecanismos que materialicen tales seguros, a la vez que permitan perseguir legalmente a las denominadas Organizaciones Criminales, entre ellas a las bandas sucesoras de las Autodefensas Unidas de Colombia, supuestamente desmovilizadas bajo el gobierno anterior.

Por su parte, el Gobierno Nacional logra en principio, el único objetivo material concreto e inmediato, el cese al fuego y de las hostilidades y la dejación de las armas por parte de las FARC. Ha sido la base esencial de las negociaciones y, tal vez, su mayor ganancia. Junto con este objetivo, otro de importancia es la propuesta para la solución al problema de las drogas, con lo cual se asegura contrarrestar el apoyo financiero que esta producción beneficiaba a los insurgentes. Asimismo logra evitar el pedido inicial de las FARC para la convocatoria de una asamblea constituyente y la incorporación del Acuerdo al texto Constitucional, la cual fue uno de los puntos rechazados por los votantes del No.

La pregunta es, entonces, ¿que significación tiene la paz en Colombia en este momento?

 

Preexistencia del conflicto

Los medios han ejercido una influencia extraordinaria, ayudados incluso por muchos especialistas, comentaristas, formadores de opinión y personas de buena voluntad, en el sentido de mostrarnos un proceso de paz que, antes que nada, es nada más ni nada menos que eso, “un proceso de Paz”. La concepción pacifista extrema, muy acorde y sensible a esta época tan plagada de conflictos de dimensiones horrorosas, nos ubica en la preexistencia de un concepto de “Paz” por encima de todo análisis. No importa cuáles han sido las causas, las vicisitudes, las marchas y contramarchas; no importa cuál ha sido o cuál es el conflicto. La “Paz” se encuentra por encima de todo eso. Se trata de terminar con el conflicto de cualquier manera, a los efectos de alcanzar esa “Paz”.

Por supuesto, esta idea, de profundo arraigo, choca con los que desean alcanzar una paz justa de conformidad a las motivaciones originarias, en este caso la lucha contra la opresión y explotación de sectores muy vulnerables de la población campesina colombiana, no muy alejada de las situaciones que viven las poblaciones rurales del resto de Latinoamérica, las demás clases populares de este subcontinente o la explotación de grandes masas de trabajadores o desocupados en el resto del Tercer Mundo.

Para los luchadores por la mejora social, por el desarrollo igualitario de los derechos humanos, por la justicia para innumerables personas que se encuentran al margen de los adelantos del progreso y de las mejoras alcanzadas después de muchos siglos por la sociedad, la paz no es sólo un objetivo en sí mismo si no se alcanza con un verdadero sentido de justicia. Justicia para los oprimidos vivos y justicia para los que dejaron su vida por tan altos principios.

De más está decir que esta paz no puede satisfacer a aquellos que se vienen esforzando para impedir este progreso. Se trata de viejas y nuevas clases opresoras que saben que la igualdad social no es otra cosa que la derrota en sus intentos por alcanzar los máximos niveles de eficiencia y competitividad en sus negocios. Estos son los sectores que, exigen una justicia ciega, sorda y muda sobre todos los insurgentes, considerándolos como asesinos comunes, arrastrando tras de sí a una gran cantidad de personas que adhieren a estos principios sin comprender que, tarde o temprano, serán los mismos que esgrimirán estos sectores poderosos para ejercer su opresión sobre sectores medios, profesionales, comerciantes o pequeños industriales. Esto sin considerar que aquellas acciones lamentables y aún horrorosas practicadas por los combatientes, se iniciaron para contrarrestar episodios de extremada injusticia e inequidad, de flagrante violencia practicada contra los oprimidos de todo tipo y con la unidad de todos los sectores oligárquicos y el beneplácito de los poderes instalados muchos kilómetros al norte.

Realizar una diferenciación tan marcada no pretende ocultar los horrores de la guerra. Saldos cuantitativos computados sólo desde 1985, con más de 6 millones y medio de desplazados, 162 mil desaparecidos, más de 100 mil familias que perdieron sus propiedades, 90 mil atentados y combates, más de 90 mil secuestros, 14.216 denuncias de delitos contra la libertad y la integridad sexual, más de 10 mil muertos por minas o explosivos sin detonar, casi la misma cantidad de personas torturadas, casi 8 mil niños y adolescentes involucrados en las acciones bélicas (en su mayoría por las FARC), ejemplifican, a medias, la magnitud de las depravaciones cometidas por todas las partes. Es sabido que, iniciada una guerra, el mantenimiento de las acciones destructivas de todo tipo se van justificando, cada vez más, en la espiral de violencia que se acrecienta y en las propias acciones cometidas tanto como en el compromiso asumido con los muertos y desaparecidos.

Sin embargo, insisto en este punto. En un proceso violento de este tipo, al inicio de las acciones las fuerzas son exageradamente desiguales. Por lo tanto, la elección de la violencia por parte del sector más débil, para la cual los más pobres tienen escasas posibilidades de optar, implica un proceso de empoderamiento en el cual cada paso implica un nuevo compromiso con la opción elegida y cada vez menos posibilidades de diferenciar los métodos utilizados.

El sector más poderoso, aliado y comprometido con los sectores hegemónicos a escala mundial, en especial con los mecanismos del mercado internacional, suele tener, asimismo, escasos márgenes de opción aunque cuenta a su favor con un andamiaje legal, político e institucional que le permitiría mayores posibilidades de negociación racional a las cuales no ha estado decidido a recurrir, salvo en contadas oportunidades. La actual sería una de ellas. Por lo tanto, el nivel de responsabilidad en los horrores antes enumerados es, a todas luces, mucho mayor.

 

El factor territorial

El análisis del conflicto, tanto en sus aspectos reivindicativos como en el proceso de una lucha táctica y estratégica, nos introduce en el interrogante acerca de las posibilidades reales para que un grupo insurgente pueda oponerse, durante un largo período histórico, a fuerzas aliadas al poder hegemónico mundial. En la escala mundial, la existencia de una potencia que controla, en mayor o menor medida, el orden geopolítico internacional, como lo es Estados Unidos desde la caída del Muro de Berlín y de la Unión Soviética, generando alianzas entre las potencias de segundo orden, disciplinando a las potencias regionales y controlando política, económica e ideológicamente a todo el continente americano, dificulta notoriamente las posibilidades de cualquier fuerza local, nacional o regional para desarrollar una lucha contrahegemónica. Si bien el inicio de las hostilidades entre las FARC y el Gobierno colombiano se produjo en el marco de un orden geopolítico bipolar, con la presencia de la URSS, una potencia antagónica, menor pero poderosa, las posibilidades de acción en una región del Planeta alejada de sus estrategias territoriales y con un Estado aliado, con una voluntad inquebrantable, como lo es Cuba, aunque de escasa entidad espacial y estratégica no presagiaban un futuro promisorio para una experiencia apoyada en una escalada bélica como la que planteaban los insurgentes. El fracaso de casi todos los otros intentos de insurgencia bélica en América Latina testimonia esta apereciación.

Sin embargo, tanto la experiencia colombiana como otras excepciones, la propia Cuba, Nicaragua y, en parte, El Salvador, abren este interrogante. No se trata aquí de reivindicar esta estrategia que ha dejado saldos demasiado nefastos para nuestra región, sino de tratar de comprender la importancia de las acciones políticas contrahegemónicas desarrolladas en diversas escalas pero de acción plenamente territorial.

Al respecto, retomando los estudios e interpretaciones realizadas sobre el espacio geográfico por Henri Lefebvre (1974, 1976), sobre el territorio por Claude Raffestin (1980), sobre la geopolítica por Peter Taylor (Taylor y Flint. 2002) o sobre la conceptualización de la actual etapa en el proceso de acumulación capitalista (Arrighi. 1999), se puede afirmar que, mientras los procesos de concentración de poder por parte de potencias hegemónicas de escala mundial se desarrollan en relación con el gran mercado financiero transnacional, ámbito en el cual se producen tales proceso de acumulación más allá del espacio geográfico concreto, el territorio se convierte en un objeto en el que se reproducen las contradicciones entre capital y trabajo y que, en muchas oportunidades reacciona contra el orden establecido por aquellas.

Así lo han intuido la mayor parte de los grandes movimientos políticos y sociales y también sus expresiones económicas, más allá de haber logrado parcialmente o no sus objetivos. De manera que la lucha de los campesinos colombianos y de todas las fuerzas populares de ese país pueden vislumbrar que los logros de este Acuerdo de Paz se encolumnan en el sentido de esas luchas, más allá que sus protagonistas no hayan concitado un apoyo popular generalizado y efectivo y que sus métodos hayan contribuido a la desgracia de numerosas familias populares. No se trata, pues, de reivindicar el método ni elogiar como grandes héroes a los miembros de las FARC, sino de comprender el momento y la oportunidad histórica así evidenciada.

 

El futuro incierto

Sin embargo, al igual que muchos episodios en las luchas populares, la llegada de esta oportunidad no se produce en el mejor momento ni podrá aprovecharse en un marco de virtual equilibrio de fuerzas. Después de más de una década de esfuerzos latinoamericanos para sostener experiencias progresistas en un buen número de sus Estados y malogrando muchos de los intentos para impulsar un proceso de integración económica, social y política en el cual se pudieron visualizar instancias sumamente promisorias, como la aparición de la UNASUR, el ALBA o la CELAC, que llegaron a mediar, en más de una oportunidad en el conflicto colombiano o los avances del MERCOSUR, buena parte de nuestro subcontinente ha caído nuevamente en manos de la derecha oligárquica y los sectores aliados al capital transnacional.

En particular el mismo gobierno colombiano es parte de este contexto, diferenciando apenas un ala negociadora, artífice del Acuerdo, y otra refractaria a toda apertura que impidió la posibilidad de festejar debidamente la aprobación del texto originario. Estos sectores generan grandes dudas sobre una auténtica aplicación de los diversos Apartados del documento recientemente aprobado. La pertenencia de Colombia al sector más neoliberal de América Latina, asociado a la Alianza del Pacífico, versión actual del fallido ALCA, es sólo un aspecto de la propuesta norteamericana de gran desarrollos comercial y financiero asomado a ese océano a partir del Acuerdo Transpacífico de Asociación Económica (TPP). Si bien Colombia no ha suscrito esta propuesta, la política impulsada desde Bogotá se encuentra en sintonía con dicha política estratégica, lo cual no resulta una buena noticia para la población colombiana y, en particular, para sus campesinos.

Por otra parte, la aplicación de las diversas cláusulas del Acuerdo de Paz se encuentra claramente supeditada a las relaciones de poder que existan en los ámbitos institucionales (legislativos y judiciales) y en su aplicación efectiva por el Poder Ejecutivo, el cual será durante bastante tiempo de difícil acceso por parte de las fuerzas progresistas.

En cambio, la única cláusula efectiva del Acuerdo, la “dejación de las armas”, asegura a las fuerzas del poder la imposibilidad de defensa de los militantes populares, los cuales vienen siendo perseguidos y eliminados por las bandas criminales herederas de las fuerzas paramilitares. El futuro, así, se presenta incierto. Sólo un cambio de situación regional podría colaborar con los esfuerzos que realizan los movimientos progresistas colombianos para alcanzar una aplicación real y efectiva de todas las propuestas que tanto sufrimiento y sangre han significado par ala querida patria hermana.

 

Bibliografía

Arrighi, G. (1999) El largo siglo XX. Dinero y poder en los orígenes de nuestra época. Madrid: Akal.

Dupuy, H. (2000) “Viejas y nuevas perspectivas para el estudio de la Geografía política”. En: Geograficando. Aportes para la enseñanza de la Geografía. La Plata: Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación. Universidad Nacional de La Plata.

Lefebvre, H. (1974) La production de l´espace. París: Anthropos.

Lefebvre, H. (1976) Espacio y política. El derecho a la ciudad II. Barcelona: Ediciones Península

Raffestin, C. (1980) Pour une géographie du pouvoir. París: Librairies Techniques.

Taylor, P. y Flint, C. (2002) Geografía política. Economía-mundo, Estado-nacion y localidad. Madrid: Trama Editorial

A escritura da poesia afro-brasileira em(se) debate com uma literatura nacional dita canônica

AUTOR: Marcelo Pacheco Soares, Doutor pela UFRJ, Professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo
O artigo investiga, na produção poética afro-brasileira do último século, a releitura de alguns textos considerados academicamente como pertencentes ao cânone nacional.  Em seu comportamento leitor, constata-se nesses escritores um posicionamento artístico e político de construção de uma tradição literária pertinente à cultura negra, via de regra descentralizada pelos discursos de uma elite branca dominante.  Para análise, são eleitos trabalhos de Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa e Lourdes Teodoro.

Resumen
El trabajo investiga, en la producción poética afro-brasileña de lo último siglo, la relectura de textos académicamente considerados como pertenecientes al canon nacional.  En su comportamiento lector, estos autores revelan un posicionamiento artístico y político de la construcción de una tradición literaria relevante de la cultura negra, normalmente descentralizada por los discursos de una élite blanca dominante.  Para el análisis, se eligen empleos de Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa y Lourdes Teodoro.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Poesia afro-brasileira; 2. Intertextualidade; 3. Resistência. PALABRAS CLAVE: 1. Poesía afro-brasileña; 2. Intertextualidad; 3. Resistencia.

Ainda influenciado mais fortemente pelos conceitos norteadores do movimento estruturalista, Roland Barthes, no meritório ensaio “A morte do Autor”, de 1966, afirma que “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita a escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 1988, 70).  Ao migrar para a categoria literária do Leitor a construção de sentido de um texto, o semiólogo francês parece lhe conferir os plenos poderes interpretativos que mais tarde, numa espécie de contrarreforma da crítica que podará presumíveis excessos, seriam novamente (mas jamais no mesmo nível) limitados por outros estudiosos, de vertente pós-estruturalista, como Umberto Eco ou Stanley Fish.
Menos do que nos aprofundarmos em tais conceitos a respeito desse Leitor e de sua apropriação das prerrogativas da figura de um Autor clássico (e aqui o referimos também na condição de categoria narrativa), as quais se transformaram na história da crítica literária sob a esteira do desenvolvimento de suas escolas, trazemo-los antes a título de ilustração, com a finalidade de mais bem fazer compreender certo comportamento efetivamente leitor que observamos em autores afro-brasileiros aquando de suas produções poéticas, isto é, usamos o conceito barthesiano prioritariamente como modo de delinear a leitura que esses poetas afro-brasileiros promovem em sua criação artístico-literária acerca de poemas classificados pelo discurso acadêmico como pertencentes a um cânone nacional, subvertendo-os para, Leitores-Autores concomitantes que se revelam ser, reescrevê-los, atualizando-os ou recontextualizando-os e gerando a partir deles sentidos novos comprometidos ideologicamente com a sua identidade racial.
As motivações para esse procedimento parecem-nos evidentes: a necessidade, ou antes a premência, de instalar uma poética empenhada em questões étnico-culturais que, em geral, não encontram lugar no cânone literário brasileiro, a qual conquiste e ocupe espaços (habitualmente legados pela academia a esse cânone) para dar voz à identidade negra, representando-a de modo efetivo.  E para de outra forma uma vez mais ilustrar esse fenômeno, vem a propósito citar o recurso de que lança mão Ivana Silva Freitas ao fazer uso de signos que se acomodariam no campo semântico do desenho cartográfico — o ponto, a encruzilhada (ou a rasura) e os caminhos — para investigar precisamente essa prática da literatura afro-brasileira de problematizar uma produção literária que é dada como hegemônica, representação pretensamente exclusiva da cultura nacional, embora assim pareçam ser tão somente em razão do lugar, nesse sentido, central de que usufrutuam e da voz de que por isso desfrutam nos discursos acadêmicos e midiáticos: “‘O ponto’ aqui é a intertextualidade, o que há em comum, ainda que como cicatriz, enquanto a encruzilhada representa o desconforto, a descontinuidade, a rasura que possibilita a abertura de outros caminhos.” (FREITAS, 2015, 115)
Assim é que, por exemplo, o poeta gaúcho Oliveira Silveira escreve “Outra Nega Fulô”, poema que traz a público nos Cadernos Negros em 1979 como resposta possível ao composto por Jorge de Lima em 192825.

Outra Nega Fulô
O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
— ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia
a blusa e se pelou
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
— Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
— Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntava
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
— Ah, foi você que matou!
— É sim, fui eu que matou —
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô! Essa nega Fulô! (DUARTE, 2014, v.2, 121-2)

Poema sobre o qual a crítica contemporânea já com alguma frequência se debruçou na comparação com a sua confessada matriz intertextual (mais que evidenciada nos irônicos versos que mencionam o escândalo do bom Jorge de Lima, seminegro e cristão, dando a ver a sua origem que não coaduna com a da negra de que intenciona falar, portanto, não a representando de fato), “Outra nega Fulô”, a partir de uma situação semelhante — qual seja: a intenção de um sinhô de açoitar uma mulher negra que para ele trabalha — descreve outra reação de sua personagem-título, desse modo, como bem observa Elisalva Madruga Dantas, “desfazendo a mítica bondade do Pai João e da Mãe Negra, subvertendo a natureza passiva, submissa da negra Fulô, enquanto mulher objeto em mulher sujeito, dona de si mesma e dos seus desejos” (DANTAS, 2006, 75).  Assim como (para trazer um exemplo outro mas de similaridade processual) o vaqueiro Manuel da película de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, sob a mesma circunstância do Fabiano do romance de Graciliano Ramos Vidas secas, apresenta reação distinta à deste e, ao invés de se curvar aos números que lhe confundem, mata o patrão que lhe tenta enganar e roubar os seus bois, o que representa uma força revolucionária no herói do filme que ainda não era possível identificar no protagonista do romance, também a nega Fulô de Oliveira Silveira, a fim de escapar das punições aos pequenos delitos que lhe são imputados, não se deita com o sinhô como a do poema de Jorge de Lima (o que apenas substituía um açoite físico por outro também físico, especificamente de caráter sexual) mas o mata e, consubstanciando a sua alforria há muito oficialmente promulgada e a consequente autonomia sobre o seu próprio corpo a que tem direito, deita-se com quem decide.  Assim é que, em sua Dissertação de Mestrado, Silvia Regina Lourenso de Castro observa:
Ao parodiar o poema de Jorge de Lima, o sujeito enunciativo de “Outra Nega Fulô” sugere, no plano superficial, que irá falar da mesma mucama.  No entanto, ele deixa marcas no enunciado problematizando ambas as personagens.  Uma primeira marca é a opção por usar a palavra “nega” em oposição à palavra “negra” usada pelo poeta anterior.  Esse procedimento não se deve apenas à supressão do fonema /r/, ou seja, ele não é marcado como desvio da norma culta.  Ao usar “nega” o sujeito projeta o efeito de sentido de ser aquele que fala de um lugar diferente daquele que diz “negra”, isto é, ele projeta o efeito de proximidade em relação à fala que emerge da senzala, modalizada pela oralidade, enquanto a forma escrita “negra” representa a fala que emerge da Casa Grande.  Essa é uma estratégia para demarcar o território da formação discursiva, como também ocorre com a oposição “essa” vs. “outra”. (CASTRO, 2007, 79)
Ora, essa (o pronome sintomaticamente em terceira pessoa que observamos no poema de Jorge de Lima) era a negra marcada pelos estereótipos que lhe atribuíram os discursos da elite branca herdeira de escravocratas, pensamento cujos ecos ainda insistem em se fazer ouvir em nossa sociedade hodierna, ainda que semiocultamente reverberando pelos cantos da sala (física ou virtual) e não pelo centro das ruas, nos quais a mulher de origem africana surgia/surge assinalada como corpo sensualizado destinado tão-somente a dar prazer ao homem branco, poder erótico com que ademais ela deixaria a ver a sua malícia para enganá-lo.  A outra que intitula a peça de Oliveira Silveira, mulher negra capaz de subverter a ordem que lhe é imposta por imposições racistas e machistas, será, além disso, esta nossa no discurso do Pai João e o uso desse pronome demonstrativo, agora de segunda pessoa, aliado ao possessivo de primeira pessoa do plural, mostrará a relação de pertencimento da voz poético-narrativa à etnia negra da personagem (porque esta indica assim proximidade de quem fala) e do seu público leitor (porque quem fala encontra-se acompanhado de outros que justificam a forma nossa).  Essa nova voz irá, por sua vez, aniquilar a cultura da elite branca tal qual Fulô agora aniquila o patrão, já que também a sinhá será caracterizada como burra e besta, animalizada então em semelhança ao tratamento a que os negros foram submetidos no tempo da escravidão.  Assim, conclui a esse respeito Sueli Meira Liebig:
O referencial ideológico veiculado por Jorge de Lima em seu poema é virado do avesso por Silveira: ao invés de “objeto” açoitado, a outra Fulô torna-se “sujeito” açoitador.  A ressignificação das antigas práticas culturais torna-se, nas mãos do autor contemporâneo, o próprio chicote com que é vergastado o pensamento etnocêntrico. (LIEBIG, 2011, s/p)
Será sob égide equivalente que se dará o trabalho do poeta Solano Trindade, conhecido pelo epíteto de Poeta do Povo e, como nele reconhece Leda Maria Martins, “defensor intransitivo de sua ascendência africana, de seu requinte de negrura” (DUARTE, 2014, v.1, 389).  Artista que viveu cerca dos primeiros três quartos do século XX, importantes anos de transição do lento processo (em desenvolvimento até os dais atuais porque não alcançou ainda o seu absoluto sucesso) de efetiva alforria que a comunidade negra precisa cotidianamente impor contra velhos e criminosos preconceitos, o escritor pernambucano trabalha em sua poética a cultura negra com a assiduidade e a pertinência que o credenciam a tornar-se uma referência incontornável para os poetas que lhe sobreveem, enquanto voz que quebra a lógica do cânone da elite branca acadêmica, apresentando-se assim como alternativa a essa.  Daí que o importante escritor contemporâneo Luiz Silva, o Cuti, em poema muito a propósito intitulado “Tradição”, de 2007, faça-lhe reverência: “solano eu abraço / no boi-bumbado socialistado / num salto a-rap-iado” (DUARTE, 2014, v.3, 25).  E, da mesma geração de Cuti, José Carlos Limeira homenageará o poeta em “A Solano Trindade”, ode em que afirma: “O solo das tuas frases / Marcará os espaços dos meus sons” (DUARTE, 2014, v.3, 39) — reiterando tal condição da poética de Solano Trindade como referência tradicional afro-brasileira (e por isso mesmo elevada ao cânone da manifestação dessa poesia). Alcançar esse estatuto de pavimentação legítima da poesia negra no Brasil, reconhecido pelos seus sucessores, é vitória que Solano Trindade conquista na proposta de re-discursar sobre a História e a realidade do negro no Brasil sob a sua voz representante étnica da sua raça e das causas a ela pertinentes: “Eu canto aos Palmares / sem inveja de Virgílio de Homero / e de Camões / porque o meu canto / é o grito de uma raça / em plena luta pela liberdade.” (DUARTE, 2014, v.1, 400), assevera ele em um de seus poemas.  É dessa forma que Solano Trindade reconta o percurso poético do “Navio Negreiro” de Castro Alves, sob uma ótica, todavia, que dispensa a piedade do leitor — sentimento que pode ser motivado pelos versos oitocentistas, em que pese o seu importante caráter de denúncia das condições de uma viagem que, na época da sua composição, ocorria clandestinamente porque já havia sido legalmente proibida em 1850 — e, pelo contrário, exalta outros signos mais positivos, como o da resistência e o da inteligência: “Lá vem o navio negreiro / cheio de melancolia, / lá vem o navio negreiro / cheinho de poesia… // Lá vem o navio negreiro / com carga de resistência / lá vem o navio negreiro / cheinho de inteligência…” (DUARTE, 2014, v.1, 402)
Mas será em “Tem gente com fome”, publicado originalmente em 1944 no volume intitulado Poemas de uma vida simples, que Solano Trindade manuseará, quiçá com a sua mais apurada desenvoltura, um famoso poema do cânone nacional (relativamente contemporâneo ao seu, porque faz parte da coletânea de 1936 Estrela da manhã, e composto além do mais por um conterrâneo seu, o pernambucano Manuel Bandeira): trata-se de “Trem de ferro”.

Tem gente com fome
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu (DUARTE, 2014, v.1, 406-8)

“O poema descreve a vida da população afro-brasileira que não conseguiu se ajustar ao sonho europeu do branqueamento” (SANTOS, 2015, 29), segundo o define Josinete Pereira dos Santos.  Os versos espalham a preocupação social do poeta em relação a uma significativa parcela da população empobrecida, não exclusivamente mas de maioria negra.  Todo aglomerado de gente, como máquina, entra e sai dos vagões da locomotiva.  O trem promove um itinerário dos bairros mais afastados aos mais próximos do centro da cidade, ou, para além disso, uma simbólica tentativa de viagem para o centro do país — o centro geográfico, político, social, econômico a que as caras tristes estão querendo chegar mas apenas o intuem reconhecendo-o vagamente como algum lugar ou algum destino — na estrategicamente apenas subentendida, porque facilmente dedutível a partir do conhecimento da malha ferroviária carioca, estação terminal Central do Brasil, não textualizada no poema com certeza porque metaforicamente não alcançada.  Em seu percurso, anuncia, a todo momento, mas disfarçadamente (tanto que apenas parece dizer), que tem gente com fome, e ao fim reivindica lentamente, entre precavido e mesmo descrente, um dá de comer, que, todavia, será violentamente silenciado por uma voz que está no próprio trem (como o panóptico internalizado de que nos fala Michel Foucault?26) e impõe um onomatopeico Psiuuuuuuuuu, que Benjamin Abdala Jr. associa a “uma visão mais espontânea e quase infantil do referente opressivo” (ABDALA JR., 2006, 75): “E o ‘espontâneo’ realça a agressividade dos agentes alienadores.” (ABDALA JR., 2006, 75), completa ele.
Ao contrário, o poeta Manuel Bandeira nos conduzira, no seu “Trem de Ferro”, a uma viagem de trem pelo interior (oposto ao percurso urbano, ou antes sub-urbano, solaniano) e com poucas pessoas, como nos aponta ainda Josinete dos Santos:
O trem de Bandeira transporta gente (só levo/Pouca gente/Pouca gente/Pouca gente) e o trem de Solano transporta carga humana (Tantas caras tristes/querendo chegar/em algum destino/em algum lugar), haja vista o amontoado desumano a que são submetidos os passageiros do trem de Solano ao contrário do de Bandeira (em que se destaca justamente a oposição tantas vs. pouca). (SANTOS, 2015, 29-30)
Bandeira, além disso, oferece uma paisagem bucólica com bichos, pastos, boiadas, galhos, riachos e ingazeiras.  Aqui, o termo onomatopeico que simula o barulho e a velocidade do trem, café com pão, difere-se da opção de Solano (tem gente com fome), a qual denuncia outra condição social, encontrada afinal por muitos que, em processos migratórios, abandonaram esse mesmo espaço do campo bandeiriano em busca de oportunidades na urbe central.
A propósito de circularmos nesse momento pela obra de Manuel Bandeira, encaminhemo-nos à oportunidade de observarmos também como o poeta paulistano Márcio Barbosa fará igualmente na escrita de versos seus releitura de uma composição bandeiriana (o breve poema “Irene no Céu”, do livro Libertinagem, de 1936), com uma obra publicada originalmente em 1992:

O que não dizia o poeminha do Manuel:
Irene preta!
Boa Irene um amor
Mas nem sempre Irene
Está de bom humor

Se existisse mesmo o Céu
Imagino Irene à porta:
— Pela entrada de serviço — diz S. Pedro
dedo em riste
— Pro inferno, seu racista — ela corta.

Irene não dá bandeira.
Ela não é de brincadeira. (DUARTE, 2014, v.3, 313)

Atentemos inicialmente para um detalhe que evidentemente é casual mas contribui para o enriquecimento semântico da paródia-resposta edificada por Márcio Barbosa: o fato de ele e Bandeira possuírem as mesmas iniciais.  O nome de um, a partir de tais iniciais, completa-se com o que não dizia o nome do outro, o que se estende, é claro, a outras características, como a identidade racial de Barbosa que também não se pode fazer ouvir em Bandeira.  Dessa forma, a opção estético-política de Barbosa na construção do seu poema busca subverter a condição a que a figura do negro, segundo ele mesmo denuncia, está frequentemente submetida na história literário-editorial nacional, na qual normalmente não tem voz: “o lugar reservado ao negro na literatura sempre foi o de tema” (BARBOSA, 1997, 212).  Do mesmo modo observaremos se desenvolver o poema de Barbosa: de um ponto inicial semelhante, qual seja, a representação das relações interraciais no Brasil, “O que não dizia o poeminha do Manuel” traz soluções distintas da escrita bandeiriana para a questão e, baseados na denúncia explícita dos silêncios do discurso do poema de Bandeira, os seus versos apontam o racismo que, em “Irene no Céu”, seria registrado, quando muito, relativizado ou apenas em entrelinhas absolutamente sutis da leitura.
Atenhamo-nos agora mais detidamente ao título: ora, de toda a semântica possível em nossa língua para o uso de sufixos diminutivos, é possível inferir que a menção que Márcio Barbosa faz a “Irene no céu” chamando-o poeminha, transita do sentido dimensional (trata-se, afinal, de fato de um poema pequeno) para, de modo sem dúvida mais significativo, o irônico, em alguma medida desprestigiando o texto, o qual afinal irá contestar em seus versos, como pelo fato de, no poema de Bandeira, Irene estar sempre de bom humor (traço considerado positivo do ponto de vista dos senhores/patrões que veem aí ausência de subversão e que identificamos nos versos que dão conta de sua disposição de pedir licença ao branco que guarda as portas do paraíso), bom humor, ademais, que se mantém a despeito do modo invariavelmente servil segundo é tratada.  Tal tratamento observamos então no próprio São Pedro, que, não obstante o estilo bonachão a ele atribuído por Bandeira, identifica-se como alguém que está hierarquicamente acima da personagem poética de modo a ter poder para autorizar ou não a sua passagem (e arriscamo-nos a dizer que essa condição é menos por sua condição de santo do que a de branco), não sendo casual, pois, que surja como representante dessa outra etnia, enquanto figura mítico-religiosa das crenças teológicas de origem europeia que esse segmento da sociedade via de regra professa (as quais Barbosa, aliás, não deixa de desvalidar ao reduzi-las a hipótese: Se existisse mesmo o Céu).  A Irene mais contemporânea, pelo contrário, explicita o racismo que contra ela tenta se estabelecer e reage (como a outra/mesma Fulô de Oliveira Silveira), e o que não dizia o poeminha do Manuel por fim era que os Sãos Pedros que se espalham pela sociedade na verdade não maquiam o seu preconceito racial (exigindo, dedo em riste, que Irene use a entrada de serviço) mas que Irene se impõe contra essa circunstância.  Não se trata mesmo, portanto, da Irene subserviente pintada por Bandeira; daí o jocoso penúltimo verso a asseverar: Irene não dá bandeira.
E encaminhemo-nos, finalmente, para “Quilombhoje”, composição da coletânea Poemas antigos, de 1996, através da qual a goiana Lourdes Teodoro prestará homenagem ao Quilombhoje Literatura — grupo paulistano de escritores, fundado em 1980 por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros, com objetivo de discutir e aprofundar a experiência  afro-brasileira na literatura — ao mesmo tempo em que promoverá uma revisão da proposta poética de Carlos Drummond de Andrade no também consagrado poema “Procura da Poesia”, composição do volume Rosa do povo, de 1945.

Quilombhoje
Penetra calmamente nas ruas mais distantes.
Lá estão as emoções que precisam ser escritas
Convive com o teu povo antes de fazê-lo teu.
Espera que cada um se desnude, se rebele
Com seu poder de vida
Seu poder de palavra
Engravide tua palavra com a fome do teu povo
Oxigene tua palavra com a coragem do teu povo. (DUARTE, 2014, v.2, 247)

Evidente está o caráter metalinguístico do poema, em consonância ao drummondiano, ambos produzidos com o claro viés de formular os princípios, em cada caso, de um determinado fazer poético, o que será marcado pela presença de verbos imperativos a construírem um discurso injuntivo acerca da elaboração literária.  Além disso, o poema de Lourdes Teodoro, Professora Doutora em Literatura Comparada, debate francamente com o de Drummond, evidenciando a poética que a poeta reconhece e pesquisa no grupo literário Quilombhoje, a qual, segundo a sua leitura, propõe-se distinta da apresentada pelo escritor mineiro em “Procura da Poesia”, de modo que, é claro, o diálogo se registra em oposição (nas rasuras a que fez menção Ivana Freitas), debatendo a essencialidade de a poesia afro-brasileira firmar compromisso com as questões sociais do povo de que uma literatura engajada não pode se desviar, como expõe o primeiro verso de “Quilombhoje”, o qual se apropria parodicamente de uma passagem de “Procura da Poesia” ao instar o poeta a penetrar calmamente não no reino das palavras, como quereria Drummond, mas nas ruas mais distantes, logo, ao encontro do povo que carece dessa poesia, que denuncie as suas fomes e cante a sua coragem.
Tal atitude o famoso poema de Drummond a princípio condena, segundo inferimos de passagens como: Não faça versos sobre acontecimentos.  Não cantes tua cidade, deixe-a em paz.  O canto não é a natureza / nem os homens em sociedade.  É claro que, aprofundando a leitura, podemos identificar “Procura da Poesia” menos como um manual de escrita poética ou uma descrição precisa do fazer literário drummondiano propriamente dito do que uma discussão sobre a tensão entre o real a ser representado, o eu-poético e a estrutura formal do poema, entre subjetividade e alteridade na gênese do poema.  Por isso, a própria obra do autor demonstrará vastamente, na prática, atitude poética que ignora tais recomendações, o que alça “Procura da Poesia” a uma possível condição de poema-autocrítica do próprio poeta Drummond e sua obra como um todo. No entanto, é atendo-se claramente a esse poema específico, de que Lourdes Teodoro faz uso como substrato poético para compor “Quilombhoje”, que a poeta irá construir o seu debate (e, desde o início, nossa opção metodológica nesse trabalho foi o de identificar, e a ela nos deter, a leitura que o poeta afro-brasileiro promove do texto canônico com que dialoga) o qual representa um manifesto e uma convocação do compromisso social de uma poesia de engajamento, defendendo que o poder de palavra e o poder de silêncio a que Drummond fazia menção, reconhecendo-os residentes nos poemas, habita na verdade precisamente nos acontecimentos que ele rejeitaria: no povo e na sua coragem que, na sua atitude rebelar-se, ignora os poderes de um hipotético silêncio (que na poesia afro-brasileira pertence invariavelemnte ao campo semântico da repressão) já que o termo que agora se justapõem à palavra na dupla de poderes evocados é vida.
Em sua economia formal (mas uma oposição à relativamente longa composição drummondiana), o poema de Lourdes Teodoro é como uma pequena semente de que brotam grandes árvores que representa uma Literatura de raízes cada vez mais profundas na poética nacional.  Dizendo o mesmo de outro modo, “Quilombhoje” concentra, na positiva iminência de por isso explodir como em um Big Bang poético ou uma bomba, os princípios literários do fazer artístico que aqui buscamos investigar e, desse modo, se nos encerra o artigo, teria podido também iniciá-lo.  Debruçamo-nos nesse ensaio sobre uma produção que empreende a superação do cânone estabelecido pelo discurso acadêmico da elite branca e a distribuição dos espaços que ele latifundiariamente ocupa, um produção por conseguinte que busca dar espaço às questões cujo desenvolvimento tem lugar fora do centro, nas ruas mais distantes da Central do Brasil omitida em “Tem gente com fome”: a fome do povo e as suas emoções que (mais do que esperam) precisam ser escritas — fome que, nesse caso, é metonímia desde a fome física que sofrem os passageiros da locomotiva de Solano Trindade até a fome de liberdade, autonomia e respeito que movem as ações das Irenes e das Negas Fulôs que, em um novo tempo, rebelam-se com uma coragem que oxigena a arte, que por esse motivo a canta.  Os versos que analisamos estão, assim, grávidos dessa fome.
A poesia afro-brasileira, por fim, está imbuída de uma missão que as palavras que compõem “Quilombhoje” descrevem ao mesmo tempo em que a delegam, a qual Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa e Lourdes Teodoro cumprem com êxito.

Notas
25) O corpus que por agora analisamos tem lugar no rico trabalho organizado por Eduardo de Assis Duarte Literatura e afrodescendência no Brasil – antologia crítica, ampla pesquisa publicada em quatro volumes em 2011 (com reedição em 2014) pela Editora UFMG, já hoje bibliografia fundamental nesses estudos.
26) Ao descrever as sociedades disciplinares, Foucault usara o exemplo do Panóptico de Jeremy Bentham, jurista inglês de fins do século XVIII que desenhou um projeto de penitenciária no qual, de uma torre central, seria possível vigiar todas as celas sem que a sentinela fosse vista, sem que mesmo fosse possível saber quando a torre estaria ou não de fato ocupada, gerando um efeito de introjeção do poder no vigiado, que, por isso, autocensura-se, instaurando um poder disciplinador internalizado, de que nos fala Foucault.

Referências bibliográficas
1.    ABDALA JR., Benjamin. “Antônio Jacinto, José Craveirinha, Solano Trindade— o sonho (diurno) de uma poética popular”. In: CHAVES, Rita; SECCO, Carmen; MACÊDO, Tania (org.). Brasil/África: como se o mar fosse mentira. São Paulo: UNESP; Luanda: Chá de Caxinde, 2006, p. 69-78.
2.    BARBOSA, Márcio. “Cadernos Negros e Quilombhoje: algumas páginas de história.” In: Thot – Escribas dos Deuses: Pensamentos dos Povos Africanos e Afrodescendentes. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, n.2, maio/agosto de 1997, p. 207-219.
3.    BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 65-70.
4.    CASTRO, Silvia Regina Lourenso de. Corpo e erotismo em Cadernos Negros: a reconstrução semiótica da liberdade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007.
5.    DANTAS, Elisalva Madruga. “A negritude poética do gaúcho Oliveira Silveira”. In: Revista de Letras. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, n.28,
v.    1/2, janeiro/dezembro de 2006, p. 74-7.
6.    DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, 4v..
7.    FOUCAULT, Michel. “O panoptismo”. In: ——. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 186-214.
8.    FREITAS, Ivana Silva. “O ponto e a encruzilhada: a poesia negra rasurando a literatura oficial através da intertextualidade”. In: Pontos de Interrogação –Revista de Crítica Cultural. Salvador: Universidade do Estado da Bahia, n.2,
v.    5, julho/dezembro de 2015, p. 113-29.
9.    LIEBIG, Sueli Meira. “Por um descentramento ético do negro: Esmeralda Ribeiro, Oliveira Silveira, Socorro Coelho e Solano Trindade”. In: Anais Online do XII Congresso Internacional da ABRALIC. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, s/p, disponível online em http://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0650-1.pdf, último acesso: 09/05/2016.
10. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1998.
11.    ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964.
12.    SANTOS, Josinete Pereira dos. Pelos caminhos da poesia, a descoberta do orgulho de ser negro. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização. São Gonçalo: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, 2015.

I. UN Decade of People of African Descent (2015-2024) – Recognition, Justice and Development: The case of the Creoles in Mauritius

AUTOR: Jimmy Harmon, PhD pela Universidae de Westren Cape (África do Sul), pesquisador e director do ensino secundário católico mauriciano

Abstract
This paper examines the situation of the Creoles in the Republic of Mauritius in the light of the theme of the United Nations Decade of People of African Descent (2015-2024) namely ‘Recognition, justice and development’. Mauritius, is situated in the Indian Ocean about 2000 kilometres off the south east coast of the African continent and has an area of 2,040 km2. It is home to 1.2 million inhabitants (Statistics Mauritius, 2011) comprising Indo-Mauritians (51%), Creoles (27%), Muslims (17%), Sino-Mauritians (3%) and Whites (2%). Despite its 1st (out of 54) rank placement since 2000 on the Ibrahim Index of Good Governance in Africa, Mauritius has a significant percentage of its population either living in poverty or experiencing racial or other marginalisation on a daily basis. Established in 2008 by an Act of Parliament to investigate the consequences of slavery and indentured labour from colonial period to date, the Truth & Justice Commission revealed in its report in 2011 that Creoles of African phenotype are the most marginalised and discriminated. However, the Creoles display agency and put up resilience to their adverse situation.
KEYWORDS: Creoles, marginalisation, discrimination

INTRODUCTION
The General Assembly, by its resolution 68/237 of 23 December 2013, proclaimed the International Decade for People of African Descent commencing 1 January 2015 and ending on 31 December 2024, with the theme “People of African descent: recognition, justice and development”.  Two major objectives of this Decade are to strengthen national, regional and international action and cooperation in relation to the full enjoyment of economic, social, cultural, civil and political rights by people of African descent, and their full and equal participation in all aspects of society; and to promote a greater knowledge of and respect for the diverse heritage, culture and contribution of people of African descent to the development of societies.
It is expected that this decade will provide an opportunity to recognize the significant contribution made by people of African descent to our societies and to propose concrete measures to promote their full inclusion and to combat all forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance. For the UN General Secretary Ban Ki Moon, ‘in proclaiming this Decade, the international community is recognizing that people of African descent represent a distinct group whose human rights must be promoted and protected. Around 200 million people identifying themselves as being of African descent live in the Americas. Many millions more live in other parts of the world, outside of the African continent’
(http://www.un.org/en/events/africandescentdecade/messages.html). He also added at the launching ceremony on 10 December 2014 that ‘we must remember that people of African descent are among those most affected by racism. Too often, they face denial of basic rights such as access to quality health services and education.’ (http://www.un.org/en/events/africandescentdecade/messages.shtml). In this paper, we will examine the situation of Creoles in the Republic of Mauritius in the light of the theme of the UN theme namely ‘Recognition, justice and development’. This paper is organized around four sections. The first section presents information on Mauritius. The two next sections give an overview on the Creoles about their place in identity politics and how some reports and studies make mention of discrimination against them. The final section discusses how Creoles develop agency and resilience.

The Republic of Mauritius
Mauritius. Officially known as the Republic of Mauritius, is a Small Island Developing State situated in the Indian Ocean about 2000 kilometres off the south east coast of the African continent and has an area of 2,040 km2. The Republic of Mauritius comprises mainland Mauritius, Rodrigues and Agalega islands. The resident population of the Republic of Mauritius enumerated at the 2011 Population Census was 1,233,000 of whom 1,192,300 lived in the island of Mauritius, 40,400 in Rodrigues and 300 in Agalega (Statistics Mauritius, 2011). The First Schedule to the Constitution (1968) establishes a four-fold categorization of the Mauritian population. Paragraph 3 (4) of the First Schedule to the Constitution reads as follows:
For the purposes of this Schedule, the population of Mauritius shall be regarded as including a Hindu community, a Muslim community and Sino-Mauritian community; and every person who does not appear, from his way of life, to belong to one or other of those 3 communities shall be regarded as belonging to the General Population, which shall itself be regarded as a fourth community.  (Constitution of the Republic of Mauritius, 1968)
Therefore, the General Population is a residual category under which is lumped the Creoles who may be of African origin or mixed blood and the Whites or Franco-Mauritians. The appellation General Population is vehemently opposed by Creole organisations and Creole opinion leaders as it is considered as a denial of the identity of the Creoles. Although the mainstream parties tend to show that they lend a compassionate ear to these claims, yet, no government has ventured until now to amend this Schedule it as it might have far reaching consequences on ethnic politics. Historically, Mauritian islands had no indigenous population and were uninhabited before the 16th century. Mainland Mauritius was the first to be populated as a result of three major periods of settlement: Dutch settlement (1638-1658; 1664-1710), French Colonisation (1710-1810) and British Colonisation (1810-1968). The country gained independence from the United Kingdom in 1968 and became a Republic in 1992. It is a member of both the Commonwealth and the Francophonie. General elections are held every five years based on universal suffrage. The Parliament (known as National Assembly) consists of 70 members: 60 elected members, 8 Best Losers (representing the minorities) and 2 elected members for Rodrigues Island. The Prime Minister is head of government who is currently Sir Aneerod Jugnauth.
Despite its 1st (out of 54) rank placement since 2000 on the Ibrahim Index of Good Governance in Africa, Mauritius has a significant percentage of its population either living in poverty or experiencing racial or other marginalisation on a daily basis. Established in 2008 by an Act of Parliament to investigate the consequences of slavery and indentured labour from colonial period to date, the Truth & Justice Commission (TJC) revealed in its report in 2011 that Creoles of African phenotype are the most marginalised and discriminated ( TJC Report, 2011: 227).

The Creoles  
A history of uprootedness
Who are the Creoles in Mauritius? How do we identify them?  Like other groups known as “Creoles” throughout the world, Mauritian Creoles have a history of uprootedness linked to their slave ancestors brought by the colonizers on the island from the African continent and Malagasy. The connections of the slaves with their places of origin were severed almost immediately upon arrival in the colony. For Eriksen (1999: 5), this entailed the urgent necessity of crafting new cultural and social forms under conditions of extreme hardship. This situation gave birth to a new language (Creole language), culture and ways of life in contact with the colonizers or with other groups. This contact was underpinned by physical and psychic violence. In the 18th century, the Creole group was marked internally by colour prejudice with the rise of the gens de couleur (coloured creoles) within the Creole group while the Afro-Creoles occupied the lowest social ladder (Selvon, 2005; Palmyre, 2008; Harmon, 2016). In this society, whiteness, French language and culture were privileged and treated as the identity to aspire to (Arno & Orian, 1986). By the turn of the 20th century, following the visit of Gandhi in 1901 and the rise of an intellectual Indian elite, political consciousness reached more rapidly the Indo-Mauritian labouring class who was living on sugar plantations while the Creoles were scattered throughout the island, deprived of any form of organisation and leadership. The General elections in August 1967 led to a victory of the Independent Party, supported by a majority of Indians while the Creoles voted for the PMSD (Parti Mauricien Social Democrate) which campaigned against independence. The fear of a ‘Hindu threat’ led to the massive migration of the middle class Creoles to Australia during after independence in 1968. The Creole proletariat (mainly Afro-Creoles) who could not afford to migrate to Australia had no choice than to stay and to strive to make a living. In spite of its higher numerical importance as compared to other minorities such as the Muslims or Chinese, the Creole minority group lives since independence in a context of political marginalisation as a result of lack of lobbying, lack of insightful political tactics and is confronted with internecine divisions.

Creole consciousness amidst Identity Politics and Exclusion
Boswell (2006) developed a taxonomy of the Creole ethnic group to illustrate its diversity in terms of class, phenotypes and common derogatory and divisive terms used to classify the different Creole subgroups. Examples of such terms are ‘Creole ti-burzwa’ (Creole of small bourgeoisie), ‘Creole milat’ (mulatto Creole), ‘Creole madras’ (Tamil Creole), ‘Creole sinwa’ (Chinese creole) and ‘Creole mazanbik’ (Black-Afro creoles whose ancestors came as slaves from Mozambique). I would say that the distinctions made by Boswell (2006) rapidly phased out with the emergence of the Creole identity affirmation movement as from the 1990s onward. Nowadays, we are witnessing the rise of a national Creole identity movement transcending these internecine cleavages. It is for this reason I find the observation that  Sheila Bunwaree, Mauritian sociologist and researcher, made more than a decade ago still encapsulates the situation of the vast majority of the Creoles:
A lot of what goes under the rubric of ‘identity politics’ (my emphasis) is actually about popular struggles for a more equitable distribution of goods and services for a  more just society. The emergence of a Creole consciousness (my emphasis) in recent years and their efforts to rekindle links with Africa (my emphasis) as their homeland highlights both the awakening and forging of an identity. Many of the deprived and excluded (my emphasis) form part of the Creole community wish to see a better distribution of the national cake. (Bunwaree, 2004: 12)
There are four key terms in Bunwaree’s observation which call for close examination. The first term is ‘identity politics’. Identity politics is generally defined as the cultural politics of different social movements or lobbying groups which advocate recognition and respect for cultural differences of identity groups (Bernstein, 2005; Bernstein & Taylor, 2013). By ‘identity politics’, Bunwaree (2004) is referring to the role of ethnic politics as ethnicity structures public life in Mauritius (Mukoneshwuro , 1999; Carroll & Carroll, 1991; Srebnik, 2002). The plurality characteristic of the Mauritian society has contributed towards creating an interface between state, society, economy and politics. This interface is marked ethnic politics which calls for the constant necessity to negotiate and broker arrangements with the different ethnic lobbyists. One example of this Mauritian ‘identity politics’ is the case of the reactions of the Tamils in Mauritius against the alteration of the bank note in 1998.
The Tamil speaking community is a subgroup of the Indo-mauritian group and it only represents about 10 percent of the Mauritius population. Three languages appear on Mauritian banknotes. Traditionally, the languages are English, Tamil, and Hindi – in that order. On October 18, 1998, the Central Bank of Mauritius released a new series of banknotes upon which the order of the latter two languages were reversed, with Hindi appearing before Tamil. Reportedly, the reason for the change in the order was because the Tamil text would have encroached on the portrait of a former Chinese political leader Sir Jean Ah-Chuen on the 25-rupee note if it remained in its original position on the note.  However, the Tamil community did not accept this explanation and within a few days of the new banknotes’ release this community took up nonviolent actions in protest of the change. Although, the Tamil community claimed precedence on the banknotes based on traditional practices and claims to having arrived on the island prior to the members of the Hindu community. Tamil community burned effigies of the Governor of the Bank of Mauritius and representations were made to the President of Mauritius. Tamil members of Parliament threatened to resign from their position if the new banknote design was not pulled out of circulation. On November 18, one month after the initial release of the new banknotes, the government asked the central bank to withdraw the notes from circulation. The Bank of Mauritius complied, representing a victory for the Tamils. The reprinting of the banknotes cost more than 50 million rupees, or more than 2 billion USD. However, for Bunwareee (2004) ‘identity politics’ such as the Tamil protest should rather be taken as a form of ‘popular struggle for a more equitable distribution of goods and services’.  In the case of the Tamils, it can be said that it was the struggle for ‘a more equitable distribution’ of ‘goods and services’ at the symbolic level.
Second, the ‘emergence of the Creole consciousness’ can be dated back to a public statement made by the catholic Creole priest Father Roger Cerveaux in 1993. He said that there was a ‘malaise creole’ in the catholic church and the country. By ‘malaise creole’, the priest was referring to the situation of social exclusion and subjugation of the vast majority of Creoles. For Boswell (2004), this malaise is symptomatic of the experience of social and cultural oppression while Miles (1999) defines it as a social disease which results partly from the inability of the Creoles to assert themselves as a group.  The first common denominator of the Creoles is consequential of their Christianisation over different periods until independence. In the 2011 Population Census, seventy-eight percent claim to be Roman Catholics out of 414, 553 Christians. For Romaine (2003), Creoles of milieu populaire (Creoles of the economically disadvantaged class) represent the bulk of Catholics in the Church. The ‘malaise creole’ statement sparked a big debate within and outside the Church.  It led to a profound reflections of the Church on the Creoles while at the same time the clergy was gradually having Creole priests in its rank. This statement came just two years after Mgr.Piat was appointed as the new Bishop. Given that Bishop Mgr Piat is a White franco-mauritian, it was already question at that time about when the Catholic Church would have a Creole bishop.
The malaise creole statement created a big havoc in the Church. In view of his forthcoming Lent Letter, the new Bishop asked his close collaborators to conduct a survey questionnaire to get the views of the Catholics on the malaise creole. The Lent Letter is usually much awaited by the Catholics and it addressed the malaise creole in 1993. It was the first time that the Catholic Church referred explicitly to the Creoles as a distinct group. The fact that the Lent Letter addressed the creole issue became a visible sign of an undergoing change in the church even if the new Bishop was a White. In his Lent letter, Bishop Piat identified the main factors of this ‘malaise creole’ in the Mauritian society as follows: the precarious socio-economic living conditions of the Creoles, poor educational outcome and limited ambition, a fragile family fabric and negative self-image of the Creole culture. Bishop Piat also described the appeal of the Creoles to the Church. First, he acknowledged that the Creoles were a majority in the Church so that they wanted to participate in the decision-making process at the level of church structures and agencies. Second, Creole families wanted their children to have access to a good school but they complained that their children did not get access to catholic schools. Third, they wanted the Church to give them training in entrepreneurship or leadership as they acknowledged that the Creole community is highly divisive. Finally, the Creoles wanted their culture to occupy a greater place in the liturgy which was mainly French dominant. The ‘malaise creole’ was further compounded by the February 1999 riots which broke out when a famous Rastafarian singer called Kaya died in police cell after his arrest for having smoke marihuana in a public concert in defiance of the law. There was a strong perception that police brutality was linked to racial profiling. By 2000, the Creole consciousness feeling became strong and Creole organisations mushroomed.
Third, the ‘links with Africa’ came with the claim of some Creole academics and some ring leaders of the short lived afro-centric social movement Muvman Morisyen Kreol Afriken ( Mauritian Movment of African Kreols) to define themselves as ‘Afro-mauritians’ (Benoit, 1985) in opposition to the appellation of General Population  as discussed earlier. Although they are the most geographically close to the continent of their origin, the African diasporas in the Indian Ocean are the most remote from it (Miles, 1999). The ‘awakening and forging of an identity’ implies different strategies of self-definition by the Creoles in the light of the definition ascribed to the Creoles by others (Palmyre, 2000). Since 2006, with the pressure of different Creole lobbyists, the State of Mauritius holds an International Kreol Festival in November and December of each year. This annual event highlights the values of the Creole language culture and brings to the fore the whole debate about who is a Creole.
Finally, Bunwaree (2004) describes the Creoles as the ‘deprived and excluded’. For her that the ‘emergence of the Creole consciousness’ reflected the ‘wish of a better distribution of the national cake’. This is later confirmed by a research study (Gill, 2012) on the link between ethnicity and poverty and whose findings were disseminated in the local press.  This research represents a first attempt to study the relations within as well as between all the ethnic groups in the country. It sheds important light on the complex linkages between ethnicity and poverty in Mauritius. The research found that Creoles faced negative discrimination in employment and education, are inadequately represented in state bureaucracy and politics, and face additional obstacles in their access to state resources and institutions. Also, many Hindus (especially widowed Hindu female heads) and ethnically-mixed persons are unable to draw upon social networks due to stigmatisation. In fact, several reports (APRM, 2010; TJC, 2011; EOC Report, 2014; UNHRC, 2015) show that the situation of the Creoles has not changed since the days of the ‘emergence of a Creole consciousness’. In the next section, we will discuss the salient features of these reports in the light of the UN Theme for the Decade of People of African Descents.

About discrimination
Not being recognized officially as ‘Creole’
The UN theme of ‘recognition’ lays emphasis on promoting  ‘greater knowledge and recognition of and respect for the culture, history and heritage of people of African descent, including through research and education, and promote full and accurate inclusion of the history and contribution of people of African descent in educational curricula’.  Basically such a recognition requires that the African diaspora being recognised as a distinct group. As stated earlier in the introduction, Creoles which has in its midst the African diaspora are not recognised explicitly in the Constitution. The UN Human Rights Commission Report (2015) recognizes Mauritius as a multilingual, multicultural and multi-ethnic society. The Report notes that the classification of the Creoles under ‘General Population’ in the Constitution as those persons who do not appear to belong to any of the other communities and includes the Franco-Mauritians, other European immigrants and the ethnically diverse Creoles. In April 2003 the Committee on the Elimination of Racial Discrimination expressed concern that the General Population category combined groups that did not share the same identity and that the constitutional classification established in 1968 might no longer reflect the identities of the various groups in Mauritius. As stated in the earlier section, the rise of the Creole consciousness has led to a strong identification of the Creoles to their mixed or African origins. This makes the appellation ‘General Population’ obsolete.

Government jobs
The UN Decade recommends States to ensure ‘that people of African descent have full access  to effective protection and remedies through the competent tribunals and other State institutions against any acts of racial discrimination and the right to seek from such tribunals just and adequate reparation or satisfaction for any damage suffered as a result of such discrimination’. In the case of the UN member state Mauritius, an Equal Opportunity Commission (EOC) was set up in 2012 under the Equal Opportunities Act 2008. It is geared towards promoting an inclusive society by bringing forward the richness of its diversity. Its vision is to create a fairer Mauritius with no barriers to equal opportunities and to foster an unprejudiced and inclusive society free from discrimination. The EOC Report (2014) state around 18% of cases deal with political opinion and 10% on discrimination on the ground of sex. Statistics also reveal that during 2012 and 2013, 61% of cases were from the public sector and 24% of cases come from the private sector. The Report also reveals that around 100 complaints are from whistle blowers and that a very large number of complaints have been made by men, that is 666 as compared to 238 by women. As regards Rodrigues, more than 90% of cases are due to differences in political opinion. The US country report (2015) on human rights state the following:
Despite laws in place, discrimination occurred, particularly against women; persons with disabilities; and lesbian, gay, bisexual, transgender, and intersex (LGBTI) individuals, but victims filed few cases for cultural or societal reasons.  Non-Hindus claimed they faced discrimination in hiring and promotion for government jobs. (US Country Report, 2015: 10)

Ethnic and racial enclaves
The African Peer Review Mechanism (APRM) is a mutually agreed instrument voluntarily acceded to by the member states of the African Union (AU) as a self-monitoring mechanism. It was founded in 2003. The mandate of the APRM is to encourage conformity in regard to political, economic and corporate governance values, codes and standards, among African countries and the objectives in socio-economic development within the New Partnership for Africa’s Development. The APRM process is based on a “self-assessment” questionnaire developed by the APR Secretariat. It is divided into four sections: democracy and political governance, economic governance and management, corporate governance, and socio-economic development. Its questions are designed to assess states’ compliance with a wide range of African and international human rights treaties and standards. In 2003, Mauritius acceded to APRM through a Memorandum of Understanding. In 2010, the APRM report for Mauritius lauded the country for making tremendous progress in corporate and social governance as well as in health and the education systems. But it made the following observation for Creoles.
The different groups in Mauritian society live in religious, ethnic and racial enclaves. Intermingling is limited. Intermarrying is even more unlikely. Some ethnic groups are hardly to be seen in the political sphere, except in a restricted capacity, and they are unequally represented at all levels of the civil service. Most importantly, one ethnic group (the Afro-Mauritian Creoles) lags behind all others in terms of human development indicators, which explains this group’s enduring sense of grievance as well as its feelings of injustice and exclusion (APRM Report, 2010: 32).
The report depicts the relationship between the different ethnic groups. It qualifies this relationship as ‘religious, ethnic and racial enclaves’. Paradoxically, Mauritians rally as a single nation in international affairs, at trade policy conferences or in other sport world events. But they become members of discrete ethnic groups upon their return to Mauritius. In 2014, Mauritius has been ranked second in Africa after Libya on human development, with the two countries notching global ranks of 63rd and 55th respectively in the high human development category, out of 187 countries in all which were ranked on the Human Development Index (HDI). But the APRM report (2010) points out Creoles as ‘one ethnic group’ and brackets the ‘Afro-Mauritian Creoles’ as those who lag behind in terms of ‘human development indicators’. These indicators are life expectancy, education and per capita income. It is clear that there is a disparity between the progress made by the country at national level and the situation of the Creoles who constitute almost one-third of the island’s population of 1.2 million and who can lay claim of their presence on the island before all other groups.

Poverty
The UN theme of Development  states that poverty is both a cause and a consequence of discrimination and recommend that States should, as appropriate, adopt or strengthen national programmes for eradicating poverty and reducing social exclusion that take account of the specific needs and experiences of people of African descent. The Statistics Mauritius (2015) has produced, with technical support from World Bank, two Poverty Maps (a Poverty Map is a spatial representation of poverty indicators at disaggregated geographical regions.  It gives an overview of the disparities that exist in poverty level within a country), one for 2001/02 and another one for 2006/07.  The maps depict the poverty rate in each of the 145 administrative regions (20 Municipal Wards, 124 Village Council Areas and Island of Rodrigues) of the country.  In the Island of Mauritius, the poverty rates ranged from 2% in the town of Vacoas/Phoenix – Ward 3 to 21% in Bambous Virieux VCA. All towns, except the capital city of Port Louis, had low poverty rates below 5%. Among the towns, Port Louis had the highest poverty rate ranging from 7% for Ward 1 to 15% for Ward 5.  Wards 5 & 6 were among the 10 poorest administrative regions of the country. The poorest regions were mostly located in the eastern coast, the south west coast and in Port Louis. These regions which are the highest poverty stricken areas are inhabited mainly by Afro-Mauritian Creoles. The US Country Report on Human Rights Practices (2015:15) state ‘that pervasive poverty continued to be more common among citizens of African descent (Creoles) than in any other community’ (p.15).  Similarly the UN Human Rights Commission Report (2015) observes that Mauritius is a welfare State and spends about 50 per cent of its budget on social services, including free health and education, which also benefit older persons. Pockets of poverty exist, however, in certain regions, notably the island of Rodrigues, which has a population of roughly 40,000 people, mostly Creole, some 40 per cent of whom live below the poverty level and many of whom do not have access to a water supply and hygienic living conditions. The UN Report on Human Rights (2015) found that ‘Creoles for instance, remained significantly disadvantaged in the enjoyment of economic, social and cultural rights, in spite of the implementation of a range of measures benefiting the most disadvantaged segments of the population’ ( para.33).
The State has implemented several programmes of eradicating poverty since the creation of a Ministry of Social Integration and Economic Empowerment in 2011. The vision of this ministry is to eradicate poverty and strive towards the creation of an inclusive and more equitable society. In line with the UN Decade, the State has developed and implemented policies and projects for safe and secure housing. But it seems that the problem lies at the level of the different state agencies where the Creoles are underrepresented. This creates a situation of patronizing attitude which overlaps with ethnicity and leads to an unequal power relationship. The Truth and Justice Commission Report (2011) sheds new light on this relationship.

Racism
The Truth and Justice Commission (TJC) was established by an Act of Parliament in 2008. It came as a result of the struggle of ‘Les Verts Fraternels/ Organisation Fraternelle’ (Green Brotherhood Organisation), a social movement whose main objective was to champion the cause of financial compensation for slave descents as part of an international movement which eventually led to the setting up of the Reparations Commission formed by the Caribbean community in 2013. The main objective of the Mauritian TJC was to make an assessment of the consequences of slavery and indenture labour from colonial period to date. The TJC was chaired by Alex Boraine, former Deputy Commissioner of the South African Truth and Reconciliation Committee, and was assisted by four Mauritian commissioners. From 2009 to 2011, there were 212 hearings and field works were conducted by researchers. In 2011, a six volume report was submitted to the Office of the President of the Republic. The report made 290 recommendations. Chapter 6 of Volume 1 focuses on race discourse and it gives amongst its main findings the following:
It was found that Creoles, who are currently defined as slave descendants, routinely experienced racist attacks. […] Examples of ‘racist’ events include biased bureaucratic reports, hidden inquests, empty review procedures, the touting of equality policies never enforced, denial of earned recognition, exclusionary socialising, and covert maintenance of housing segregation. (TJC Report, 2011: 286)
In the light of the above statement, it is clear that Creoles of African phenotype who experience racism. Also anti-Creole racist occurrences range from bureaucratic procedures to denial of the Creole identity and ‘covert maintenance of housing segregation’. My understanding of racism is based on the following definition:
Racism […] pattern of thinking and pattern of perception of the members of dominant groups which characterize members of non-dominant groups as different or inferior on basis of real or imagined physical or other characteristics, intending to legitimate inferior treatment, exclusion or violence against, or exploitation of members of non-dominant groups. (Appelt, 2000: 210)
The above definition helps to understand what type of mindset underpins the ‘racist’ events as mentioned in the TJC report (2011). Racist actions against a non-dominant group are located into ‘pattern of thinking’ and ‘pattern of perception’ of the dominant group. In terms of remedial measures the TJC Report (2011) makes the following recommendations:
To encourage public servants in all public institutions and parastatals to rethink how they approach the public of African descent as some current behaviour is unacceptable in 21st-century Mauritius. Most probably, training and monitoring will be required for both affected person and personnel on the fact that:

  • racism emotionally cripples the community and that alleviation of inferiority complexes is required;
  • minds must be freed from cognitive blindness and mental paralysis, through regular focused group meetings with help of social specialists/therapists.

As regard the recommendation for ‘alleviation of inferiority complex’, some studies in racial discrimination (Sellers et al., 2006) propose racial identity as an indirect effect on psychological well-being through its role as a buffer against the impact of racial discrimination. However, Creoles are the least racially conscious. This can be explained for two reasons. First, being of a mixed group, Creoles are, in fact, the most permeating group and transgress social taboos. Second, the dominant ideology of universality of the French Enlightenment which pervades the Mauritian press opinion leaders has always stifled any attempt by the Creoles to affirm their identity.  Unlike other ethnic groups, Creoles have been particularly shaped by the universality discourse of the catholicchurch and as such they have internalised a guilty feeling so that if they assert themselves publicly as Creoles such a behaviour can be considered as divisive for the country. In the 1990s in the heat of the debate on the malaise creole, Father Filip Fanchette, the 76 year old catholic priest and father figure of the Creole struggle, stated in a newspaper interview in the daily ‘Le mauricien’ (23 February 1993) that the Creoles must have no qualms to feel, behave and assert themselves as a unified group as it is the best immune system for the Creoles against adverse situations. For The interaction among the various ethnic groups exhibits varying degrees of conflict and cohesion. Conflict may arise out of competition for scarce resources and in Mauritius, this is most obvious on the labour market. The unequal distribution of power is another source of conflict. While political power, given the ‘first past the post principle’ and the clientelistic nature of Mauritian politics, resides mainly in the hands of Indo-Mauritians, economic power is mainly held by the private sector, made up mostly of the “Franco-Mauritians” (Hall & Du Gay, 1996: 5). In this case, the Creoles have to develop agency and resilience. The final section gives three achievements by the Creoles.

Kreol Agency and Resilience
The Mountain of resistance
Over the past decade there have been several initiatives taken by the Creoles which show some forms of agency and resilience. The first symbolic achievement is ‘Le Morne Mountain’. In 2008, the mountain of Le Morne Brabant and its landscape was inscribed on the list of UNESCO World Tangible Heritage list. The UNESCO website describes the site as follows:
Le Morne Cultural Landscape, a rugged mountain that juts into the Indian Ocean in the southwest of Mauritius was used as a shelter by runaway slaves, maroons, through the 18th and early years of the 19th centuries. […] It is a symbol of slaves’ fight for freedom, their suffering, and their sacrifice, all of which have relevance beyond its geographical location, to the countries from which the slaves came – in particular the African mainland, Madagascar, India, and South-east Asia- and represented by the Creole people ( my emphasis) of Mauritius and their shared memories and oral traditions.
The inscription of Le Morne was preceded by a long and intense struggle by the Creole organisations together with academics and researchers. Nowadays, the abolition of slavery day is celebrated on 1st February of each year on the site of Le Morne. It has now become the place of gathering to recollect and pay tribute to the maroons. Since then, there has been a reappropriation of history by the Creoles. Several publications (Romaine, 2006, 2007, 2008; Harmon, 2008, Palmyre, 2008) and reflective papers (Harmon, 2007, 2013) have been attempts at revisiting history from the perspectives of the oppressed. This has greatly helped the Creoles to occupy the public space and to voice their requests. Language has been a site of resistance and achievement of the Creole identity.

Heritage language as founding myth
The second achievement is the struggle for recognition of Mauritian Kreol ( Kreol Morisien) as the heritage language of the Creoles and the Mauritians at large has also been a  landmark.Kreol Morisien. In 2012, Kreol Morisien was introduced as an optional language in all primary schools. In terms of optional languages, there are two categories, namely Asian or Oriental languages Arabic and Kreol Morisien and Bhojpuri which are the two new languages introduced as from 2012. The presence of Asian or Oriental Languages in the education system is closely associated with the political emergence of the Indo-Mauritian community in the 1950s. As a result of the change in the political climate, ancestral languages were introduced in primary schools in 1955, and they were extended officially to secondary level in 1974, although they had already been taught in several places privately (Dinan, 1986).
The list of Asian or Oriental languages includes seven languages namely Hindi, Urdu, Tamil, Marathi, Telegu, Modern Chinese and Arabic. Hindi has great prestige among the so-called Hindi-speaking Hindus. But it is the mother tongue of a very few speakers. It is used at formal socio-religious functions and is perceived as the cultural parapet against loss of Indianity (Eisenlhor, 2004; Miles, 1999; Eriksen, 1988). However, it is to be noted that the term “Hindi speaking” is in itself a misnomer for Hindi is not in fact the mother tongue or ancestral language of any substantial number of speakers as most of the Indian immigrants came from Bihar where Bihari and Bhojpuri (a dialect of Bihari) are spoken.
Kreol Morisien is in fact the authentic heritage language born in Mauritius (Harmon, 2015). Although the struggle for recognition of Kreol Morisien dates back to the independence period, yet it was as from 2005 when it was introduced for literacy and numeracy purposes in catholic secondary schools that it became a central issue in ethnic politics. Today the presence of Kreol Morisien in primary is a form of cultural reparation to the Creoles and especially the slave descendants.

Sega as World Intangible Heritage
Finally, the third achievement has been the ‘sega tipik’. In 2014, the traditional Mauritan sega dance was inscribed on the UNESCO world intangible list. The UNESCO website describes the sega as follows:
Traditional Mauritian Sega Tipik is a vibrant performing art, emblematic of the Creole community and performed at informal private family events or in public spaces. Songs sung in a minor key gradually increase in tempo, as dancers move their hips and hands to a percussive beat, using short steps to manoeuvre around each other in a variety of different formations.[…] Representing the multiculturalism of Mauritian society, Sega breaks down cultural and class barriers, creates opportunities for intercultural encounters, and unifies various groups around a shared Mauritian heritage.
While the sega was considered as debased and associated with the slave descendants, this world recognition has given great significance and value to the Creole culture. In fact, the sega transcends all barriers and is a symbol of ‘intercultural encounters’ as it has always been sung and danced by all Mauritians. Nowadays, it has become the cultural trademark for  Mauritius at international level and it is the main aspect of the Mauritian culture which is portrayed for heritage tourism. However, there is a high risk that commodification of tourism dispossesses the Creoles of their rich cultural asset.

Conclusion
Hence, this paper examined the case of the Creoles of Mauritius in the context of the UN Decade of People of African Descents. I have demonstrated how Mauritius is doing very well at the level of international human development indicators, however, the situation for the Creoles and especially those of African descents is not improving. This situation raises issues of access to resources and the position of the Creoles as a group identity.

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Não violência (ahimsa), uma alternativa revolucionária num mundo em conflitos

AUTOR: Angela Rebelo da Silva Arruda, Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. E-mail: angelarebeloarruda@gmail.com
RUBRICA: História e Sociologia Política dos métodos de ação

Resumo
Refletir sobre a não violência requer uma análise do uso da violência feito pelo poder e como a humanidade pode sair deste cerco que se fecha cada vez mais, em mais guerras. A história tem testemunhado a opção vulgar pela violência, forjando justificativas para o injustificável. Violência é assim configurada como a única maneira de lutar por direitos ou manter o poder. Mas seria um erro desconsiderar experiências não violentas dos conflitos que salvaram vidas e ofereceram alternativas revolucionárias que desafiam a humanidade a repensar suas escolhas.

PALAVRAS-CHAVE: Não violência; conflitos; história

Abstract
Reflect on nonviolence requires an analysis of the use of violence made by the power and how humanity can get out of this siege that closes increasingly, in more wars. History has witnessed the vulgar option of violence, forging justifications for the unjustifiable. Violence is like this set up as the only way to fight for rights or maintaining the power. But it would be a mistake desconsider non violent experiences of conflicts that saved lives and offered revolutionary alternatives that challenge humanity to rethink their choices.
KEYWORDS: nonviolence; conflicts; history

Os homens, há anos, falam sobre a guerra e a paz. Mas agora já não podem apenas falar sobre isso. Não é mais uma escolha entre violência e não violência… é a não violência ou a não existência.
(Martin Luther King Jr.)

 
A eficácia pacifista exige a ação não violenta diante das situações de conflitos, mas ao contrário do que possa suscitar, não compreende uma ideia de simples negação à uma postura de violência, esta vulgarmente adotada, que tem, literalmente, sangrado a humanidade. A não violência, que embora tenha uma palavra em sânscrito, ahimsa (himsa: violência e (a)himsa: negação da violência), que significa não causar dano, não se constitui como um conceito autêntico, mas como negação de outra coisa, como observa o escritor Mark Kurlansky (2013: 15), a não violência “foi marginalizada porque é uma das raras ideias verdadeiramente revolucionárias”, buscando assim mudar completamente a ordem estabelecida de uma sociedade, constituindo-se em uma ideia assustadoramente perigosa. (KURLANSKY, 2013: 15-16). Uma vez que, “o ponto de vista amplamente apoiado e raramente expressado, mas implícito, na maioria das culturas é que a violência é real e a não violência é irreal” (KURLANSKY, 2013: 17), poder-se-ia voltar atenção ao termo violência, contudo, mesmo este, tem sido, de certa maneira, negligenciado por todos os que se dedicam a pensar as questões que mais afligem a humanidade.
O historiador Eric Hobsbawm (2013: 209) afirma que: “De todas as palavras em voga nos últimos anos da década de 60, a palavra ‘violência’ é provavelmente a mais corrente e a mais carente de significado. Todos falam a seu respeito, mas ninguém reflete sobre ela”. A palavra assim permanece, configurando-se, cada vez mais, em provocação numa atualidade obscurecida por conflitos globais generalizados (Só nas últimas 12 horas, teve-se a notícia de 1,5 milhão de crianças passando fome no Iêmen, vítimas de guerra (G1, Mundo, set. 2016); e este está longe de ser um caso exclusivo, hoje, vive-se conflitos seríssimos na Síria, Congo, Líbia, Nigéria, Egito, Irã, Ucrânia, Rússia, Arábia Saudita, etc.) e, ainda que de maneira remota, estamos todos cientes do gigantesco poder aniquilador de massas, como nos horrores das duas grandes guerras do século XX; como também cientes da brutalidade cotidiana banalizada que paradoxalmente faz coexistir tranquilidade e violência. (HOBSBAWM, 2013: 210).
O ensaísta Aldous Huxley (2016: 97) refletiu sobre a importância de se tentar combater “essa estranha insensibilidade moral e essa indiferença diante da violência em larga escala” que desabou e tem desabado sobre uma parcela enorme do mundo. “Aceitamos como natural e inevitável a destruição de populações inteiras. Aceitamos como inevitável a existência de armas absolutas e do genocídio, como se não houvesse alternativa”. (HUXLEY, 2016: 97). Realidade comum onde os direitos humanos não chegam enquanto a parte do mundo que não se sente afetada, dorme tranquilamente, sem perceber que estamos todos já muito afetados.
“Com frequência ouvimos dizer que a guerra é inevitável porque o homem é um animal belicoso, mas falando biologicamente a guerra – conflito entre grupos organizados da mesma espécie – é um fenômeno muito raro”. (HUXLEY, 2016: 87). Este pensamento parece contradizer a realidade referida, mas como explica o próprio Huxley, ainda que haja conflitos, não guerra, entre membros de uma mesma espécie, deve-se à seleção natural, que eles raramente terminem em uma situação fatal.
Sempre pensamos no lobo, por exemplo, como um animal particularmente sinistro e feroz. Na verdade, conforme observaram naturalistas (…) os lobos nunca combatem até morrer. Sentindo que está derrotado, o lobo expõe sua garganta ao adversário, de modo que, se quiser, o adversário pode imediatamente achar a jugular, seccioná-la e matar o inimigo; mas devido à ação benevolente da seleção natural, o lobo vencedor acha psicologicamente impossível morder. Em vez disso começa a rosnar e afasta-se. Pode-se ver que há para isso boas razões evolucionistas; se os lobos machos habitualmente lutassem até a morte por causa das fêmeas, em breve a espécie terminaria. (HUXLEY, 2016: 88- 89)
O exemplo do lobo intriga a mesma questão instintiva para a espécie humana, assim, Huxley (2016: 89) conclui que a guerra que leva o conflito organizado ao limite da destruição não é instintiva, mas tanto ela, quanto a sua motivação são socialmente condicionadas, não sendo, portanto, qualquer coisa biologicamente inevitável e dessa forma, está em nossas mãos descondicionar tal fenômeno e livrar-nos dele.
Uma amostra desse condicionamento social apontado por Huxley pode ser observada na análise da estudiosa das religiões, Karen Armstrong (2016: 20) ao perceber que, ainda que o guerrilheiro se sinta conectado com o cosmos, estará diante de contradições difíceis de serem resolvidas a partir do tabu fortemente estabelecido entre nós, que implicaria em não tirar a vida de seres da nossa própria espécie, “um estratagema evolucionário que ajudou nossa espécie a sobreviver”. No entanto, luta-se, recorrendo a aspectos mitológicos, normalmente religioso a fim de nos distanciar do inimigo. As diferenças raciais, religiosas ou ideológicas são carregadas de exageros, narrativas desenvolvidas com o propósito de transformar o outro em algo não humano, monstruoso, contrário a ordem e a bondade. Assim, pode-se dizer a si mesmo que a luta é ‘justa’ ou ‘legal’, pelo bem do país e/ou em nome de Deus. (ARMSTRONG, 2016: 20).
De fato, a mesma estratégia que formula artifícios em uma espécie de alívio moral no propósito de tentar justificar a guerra, também é aplicada no ato de escravização de povos, mesmo porque, tanto a guerra, quando a dominação, estão intrinsecamente relacionadas e a história está repleta de exemplos como esse.
“A escravidão do século XVI ao XIX era necessariamente racista porque argumentava que os africanos deviam ser escravizados em razão de sua inferioridade moral inerente”. (KURLANSKY, 2013: 77). Não se pode deixar de referir que o mesmo se deu para os povos indígenas. No Brasil, por exemplo, lado a lado com os povos africanos, cada qual com sua proporção, amargavam o terror originado do pensamento etnocêntrico do colonizador.
Vale ainda mencionar que, tal como observa o historiador John Manuel Monteiro (2001: 174), nas últimas décadas do século XIX, os círculos intelectuais e científicos brasileiros estavam voltados para uma abordagem racial indígena de natureza evolucionista. A exemplo da literatura científica estrangeira da época, os atributos negativos das ‘raças’, acima de tudo, no que diz respeito a sua inferioridade física, moral e intelectual, justificavam e autorizavam o extermínio contra os povos indígenas do Brasil. A propósito, seis crânios de Botocudos chegaram a ser examinados por pesquisadores brasileiros, e ainda que se trate de uma amostragem pequena, tal prática revela “uma série de conclusões preconcebidas sobre a inferioridade dos não-europeus” (MONTEIRO, 2001: 176).
Essa história de violências contra os povos indígenas e africanos, não ficou no passado, deixaram raízes muito profundas no pensamento social que ainda hoje vigora no Brasil e continua a alimentar o racismo, a discriminação e a violência assim constituídos num cotidiano de brutalidades, frequentemente ignorados, mas que estão longe de serem pontuais e ainda que fossem, mereceriam igualmente o nosso desprezo.
É nevrálgica a discussão sobre violência e não violência quando se trata de situações indubitáveis de opressão, mesmo porque, na história da humanidade, majoritariamente, a conquista de direitos foi dada por meio da luta violenta e não há como fazer conjecturas em caso contrário. Analisa-se hoje que, a partir da ideologia liberal, a qual emprega uma dicotomia entre uma violência que é má e retrógrada e uma não violência que é boa e resultante do progresso, como alertado por Hobsbawm (2013: 210), “chega um momento em que o estímulo para o bem se torna incompatível com a compreensão da realidade – isto é, com a construção de sólidos alicerces para o estímulo à bondade”. Todavia, o suposto pacifismo, dessa forma, isto é, compreendido dentro do pensamento liberal, traduziria uma má compreensão da não violência, que é luta por direitos, ação e de maneira alguma, aceitação passiva da opressão.
Nem Gandhi ignorou que a violência foi, na maior parte dos casos, a arma da liberdade, como afirma o filósofo Jean-Marie Muller (2007: 224):
‘As páginas da história estão manchadas do sangue derramado por aqueles que lutam pela liberdade’. Gandhi não condena esses combatentes, mas parece-lhe que é chegado o tempo de sair desta espiral de violência em que se deixaram arrastar opressores e oprimidos. Ele considera que os soldados da liberdade, que recorreram às armas de destruição para combater a opressão, deixaram-se cegar pela violência.

Compreende-se que a violência dos oprimidos e excluídos expressa o sofrimento da ação desesperada que tenta tomar posse do poder sobre a própria vida, quando este lhes é retirado; ela representa a transgressão a uma ordem social que não é digna de respeito. Porém, compreender essa violência não significa justificá-la. Não existe violência justa, muito menos, em nome de uma causa justa, ela não deve ser constituída em um direito. Se assim fosse, para um homem, povo ou nação, como poderíamos ser contra quando a violência defendida para uma causa justa, defendesse uma causa não justa? (MULLER, 2007: 34).
De fato, como afirma Huxley (2016: 94), na guerra, (o que se aplica a quaisquer razões ou em nome de quaisquer causas), não pode haver vencedores, mas destruição de combatentes, destruição de enormes áreas, civilizações e da própria vida. Mesmo as revoluções tendem a devorar seus próprios filhos, como diria o girondino Pierre Vergniaud.
Promovido por uma minoria que exerce poder de decisão no mundo, assiste-se ao espetáculo absurdo “de habilidades, conhecimento, devoção, trabalho e dinheiro sem precedentes ser esbanjado em projetos que não poderão levar à vida, à liberdade, à felicidade, mas apenas à miséria, à servidão e à morte”. Observando ainda, que: “a racionalização de tudo isso é, em todos os casos, o velho adágio romano ‘si vis pacem para bellum’ (se queres a paz, prepara-te para a guerra). Infelizmente, todo mundo agiu conforme esse provérbio nos últimos 2 mil anos ou coisa assim”. (HUXLEY, 2016: 94).
A teórica política Hanna Arendt (1985: 5) observa, quanto a permanência dos conflitos armados, que não se trata de qualquer desejo secreto de fim da espécie humana ou um instinto de agressão irreprimível, ou ainda, o que considera mais plausível, graves perigos econômicos e sociais próprios do desarmamento, mas o simples fato de que não houve no cenário político das relações internacionais qualquer substituto para tal arbítrio final. “Não estava Hobbes correto ao afirmar: ‘Pactos, sem medidas coercitivas, nada mais são do que palavras?’”.
O pensador Walter Benjamin (1921: 122) acredita que “permaneceria ainda sempre aberta a questão se a violência em geral, enquanto princípio, é ética, mesmo como meio para fins justos”. Ainda que considere que para o direito a violência nas mãos dos indivíduos ameaça o seu ordenamento, não sendo, portanto, a violência em si condenada, porém somente aquela que é contrária ao direito. (BENJAMIN, 1921: 127). O próprio militarismo “é a imposição do emprego universal da violência como meio para fins do Estado”. (BENJAMIN, 1921: 131).
Toda violência como meio é ou instauradora ou mantenedora do direito. Se não se pode reivindicar nenhum desses predicados, ela renuncia por si só a qualquer validade. Daí resulta que toda violência como meio, mesmo no caso mais favorável, participa da problemática do direito em geral. E mesmo que, nesta altura da investigação, não se possa enxergar com certeza o alcance dessa problemática, o direito, depois do que foi dito, aparece sob uma luz tão ambígua, que se impõe naturalmente a pergunta se não existiram outros meios, não-violentos, para a regulamentação dos interesses humanos em conflito. (BENJAMIN, 1921: 136).
O então pensador conclui que jamais um contrato de direito poderia adotar uma resolução não violenta, pois “quando se apaga a consciência da presença latente da violência na instituição do direito, esta entra em decadência” (BENJAMIN, 1921: 137). Isto significaria que o direito positivo só sobrevive sobre os alicerces da violência? Talvez a observação de Kurlansky (2013: 34) responda essencialmente essa questão: “o Estado sustenta o direito de matar com seu privilégio exclusivo e guardado com todo zelo. Nada deixa isso mais claro do que a pena capital, que argumenta que matar é errado, e, portanto, o Estado deve matar os matadores”. Ou ainda, “a guerra é simplesmente o meio. O verdadeiro narcótico é o poder”. (KURLANSKY, 2013: 46)
O filósofo e ativista político que influenciara movimentos antimilitaristas e personalidades como Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., Henry David Thoreau (2016: 51), ao pregar a desobediência civil, um enfrentamento ao poder constituído, observa que “a massa de homens não serve ao Estado primeiramente como homens, mas como máquinas, com seu corpo. Eles são o exército permanente, a milícia, os carcereiros, os policiais, o posse comitatus, etc.”.  Para Karen Armstrong (2016: 24),
Nenhum Estado pode viver sem seus soldados. E quando os Estados cresceram e a guerra tornou-se parte da vida, uma força ainda maior – poderio militar do império – com frequência parecia a única maneira de manter a paz. A força militar é tão necessária para o surgimento dos Estados e de impérios que os historiadores veem o militarismo como uma marca da civilização. Sem exércitos disciplinados, obedientes e respeitadores da lei, a sociedade, diz-se, provavelmente teria permanecido em um nível primitivo ou teria degenerado em hordas que guerreariam sem cessar.
Mas, “deve o cidadão, mesmo que por um instante, ou em menor grau, entregar sua consciência ao legislador? Por que cada um de nós precisaria ter uma consciência então? Acredito que antes de sermos súditos, devemos primeiramente ser homens”. (THOREAU, 2016: 51). Thoreau pregava que o respeito pelo que o é correto deve estar acima do respeito pela lei maior.
A lei nunca tornou os homens um pouco mais justos; e por meio de seu respeito a ela, mesmo os bem-intencionados são diariamente agentes da injustiça. Um resultado comum e natural do respeito indevido à lei é a possibilidade de vermos uma fileira formada por soldados rasos, carregadores de explosivos e tudo o mais marchando em ordem admirável sobre montes e vales para as guerras, contra suas vontades, sim, contra o seu bom senso e consciência, o que torna a marcha extremamente íngreme e produz palpitações no coração. Eles, sem dúvida, sabem que estão metidos em um negócio terrível; todos possuem inclinações pacíficas. Agora, o que são eles? Homens? Ou pequenos fortes e depósitos móveis de armas a serviço de um homem sem escrúpulos no poder? (THOREAU, 2016: 50).
A ideologia de uma cultura liberal a qual prega que manifestações violentas são piores do que a não violência, o que obviamente é verdade, descaracteriza uma não violência que dessa maneira é colocada como algo abstrato, moralmente generalizado e não eficaz para os conflitos vividos por nossa sociedade (HOBSBAWM, 2013: 213-214), além disso, atrapalha uma revisão e análise histórica do poder revolucionário da não violência, desafio que vem crescendo em relevância e merecendo atenção.
Para Hobsbawm (2013: 212), os sistemas vigentes criados na era liberal para a manutenção da ordem pública despertam o aumento das formas mais antigas de violência, já que se encontram sob crescente tensão fazendo com que o terrorismo, a violência política de ação física direta sejam mais intensificadas do que no passado. “O nervosismo e a perturbação das autoridades públicas, o ressurgimento de guardas de segurança das empresas privadas e os movimentos de defesa civil são evidências suficientes”.
O historiador britânico alerta aos que acreditam que toda violência é má por princípio observando que “não podem fazer qualquer distinção sistemática entre diferentes tipos de violência na prática, nem perceber seus efeitos tanto sobre quem a sofre como em quem a emprega”. (HOBSBAWM, 2013: 212). Para que a dignidade dos povos seja preservada é preciso ter discernimento quanto ao que não pode ser negociado. Conforme observa o matemático e sociólogo Johan Galtung (2006: 11), “se você descarta suas próprias necessidades básicas, ou de outros, está se condenando, ou a outros, a uma vida não digna dos seres humanos. Está praticando a violência”. Tais necessidades não são escolhas, antes, escolhem as pessoas; segregação racial, discriminação e regime de opressão são sofrimentos que nenhuma pessoa em sã consciência escolhe. Não é possível ter coerência com a luta por direitos universais abrindo mão daquilo que é inegociável, isso, todavia, não requer, exclusivamente, a alternativa da violência.
A partir dessa ponderação fica fácil compreender, por exemplo, porque até o próprio Nelson Mandela – lição histórica da eficácia não violenta – tenha, em determinado momento, cogitado a possibilidade de recorrer à luta armada, como afirma a ativista política Mary Benson (1987: 116) “Na Algéria [ou Argélia] ele fez um curso de técnicas de demolição, armamento e uso de morteiro. Frequentou palestras no quartel-general do exército algeriano – queria estar habilitado e pronto para lutar pelo seu povo, caso necessário”. Ora, a política da África do Sul massacrava os direitos universais dos negros no sistema de apartheid, dessa maneira, atender ao sentido de não violência passava por não aceitar a violência da opressão que era gigantesca. Mandela e demais líderes viviam acuados e perseguidos; vidas ceifadas, prisões arbitrárias, aonde iria parar tanta injustiça com poucas chances de resistência? Mas os homens e mulheres da África do Sul, que também incluíam brancos, junto com seus líderes, inclusive Mandela da prisão, caminhavam para a melhor escolha, ainda que não lhes era dada escolha alguma. Não existia facilidades. Enfim, a decisão de Mandela por manter a luta não violenta ocorreu graças a sua enorme responsabilidade e poder de análise sobre cenários posteriores.
A perda de mais vidas numa certeira guerra civil, comprometeria o futuro de gerações de negros e brancos, como as vivas cicatrizes dos mais de cinquentas anos decorridos da guerra entre boêres e ingleses. Mandela preferiu oferecer a esperança para relações raciais, com o mínimo de ressentimento, frutificando desse modo, um governo democrático. (BENSON, 1987: 110). Dessa maneira, ele presenteia a humanidade com uma lição, jurídica inclusive. Quando Mandela, o Tata (pai) da democracia, fazia parte da massa oprimida não detinha o poder do Estado, mas quando ele se tornou Estado ou poder ao vencer as eleições presidenciais de 1994, depois de 27 anos de prisão, longe da família e sem acesso a uma vida normal, com sua saúde afetada (como a visão, pela incidência de raios solares quando por trabalho forçado quebrava rochas na prisão) e tendo todos os motivos para a vingança, o rancor e o ódio, inaugurou a conciliação entre opressores e oprimidos e abalou convicções teóricas relacionadas a poder e violência, poder e coerção, não violência e decadência do direito. Ao contrário, Madiba, revelando seu estado revolucionário de ahimsa, mostrou ao mundo que havia alternativa de resoluções de conflitos sem fazer uso da violência, mas da racionalização mais sensata que assim tirou do campo do idealismo utópico, soluções muito mais prováveis de serem desacreditadas e por fim descartadas.
Iniciamos essa discussão evidenciando o problema da conceituação de não violência (ahimsa), enquanto força ativa. É através de seu uso na prática, isto é, de como a história o revelou, que se pode compreendê-la. O economista Jacques Attali (2013: 257) refere que “Gandhi acredita que ahimsa permite o triunfo da verdade, impondo-se ao sofrimento; é recusa do ódio do inimigo. Na falta de termos melhores em inglês, ele fala de ‘não violência construtiva’”.
O feito de Nelson Mandela, como o de Gandhi, seu inspirador, que libertou a Índia da colonização inglesa sem o uso da violência, luta que teria iniciado justo na África do Sul de Mandela, contra a discriminação, o racismo e a opressão do povo indiano, assim como a luta não violenta de Martin Luther King Jr. pelos direitos civis americanos, também inspirado pela ahimsa revolucionária tão bem praticada por Gandhi, são exemplos históricos inspiradores! Paradoxalmente, eles aconteceram no mesmo sangrento século XX, e deixaram um legado de renovação e de possibilidades para toda a humanidade, contrariando o redemoinho de violências cada qual mais justificada do que a outra, com as quais a história frequentemente tem sido feita. “A história parece dar razão aos violentos, mas é apenas a história dos violentos. Já a história das violências, ainda deve ser escrita e, para tanto, caberá levar em consideração a opinião das vítimas” (MULLER, 2007: 39). Quando difícil interromper tal cadeia de brutalidades, temos o aparente exclusivo caminho de fatalidade, contudo, “a não violência tem como proposta romper com essa fatalidade”. (MULLER, 2007: 34).
A história deve dar conta de ficar atenta para, ao definir a violência, não se posicionar ao lado daquele que a pratica, o que necessariamente será um risco com relação a verdadeira natureza deste, iniciando processos que tentarão justificar os meios pelos fins. (MULLER, 2007: 30). O historiador Marc Bloch (2001: 45), já compreendia que uma ciência sempre parecerá ser incompleta “se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor”, e “em relação à história, ainda mais claramente predestinada, acredita-se trabalhar em benefício do homem” pois que tem o próprio homem e suas ações como material. “De fato, uma velha tendência, à qual atribuir-se-á pelo menos um valor de instinto, nos inclina a lhe pedir meios de guiar nossa ação”.
Assim, “Não resta dúvida de que a violência continua violência, isto é, continua injusta, logo, injustificável porque continua desumana, qualquer que seja o fim a que se propõe”. (MULLER, 2007: 35). Hobsbawm (1995: 11) observa que “quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem”, por isso a importância dos historiadores, que possuem o ofício de lembrar aquilo que os outros esquecem, “por esse mesmo motivo, porém, eles têm que ser mais do que simples cronistas, memorialistas e compiladores”, a reflexão sobre a forma não violenta de resoluções de conflitos parece corresponder a uma alternativa responsável para que o século XXI encontre o ‘idealismo realista’ pensado por Huxley (2016: 99-100), “ou realismo idealista, que ofereça alguma proposição sensata e torne possível transferir o conflito a outro nível, que não envolverá tantos horrores”, como viáveis e reais no estado revolucionário de ahimsa.

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