AUTOR: Marcelo Pacheco Soares, Doutor pela UFRJ, Professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro
Resumo
O artigo investiga, na produção poética afro-brasileira do último século, a releitura de alguns textos considerados academicamente como pertencentes ao cânone nacional. Em seu comportamento leitor, constata-se nesses escritores um posicionamento artístico e político de construção de uma tradição literária pertinente à cultura negra, via de regra descentralizada pelos discursos de uma elite branca dominante. Para análise, são eleitos trabalhos de Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa e Lourdes Teodoro.
Resumen
El trabajo investiga, en la producción poética afro-brasileña de lo último siglo, la relectura de textos académicamente considerados como pertenecientes al canon nacional. En su comportamiento lector, estos autores revelan un posicionamiento artístico y político de la construcción de una tradición literaria relevante de la cultura negra, normalmente descentralizada por los discursos de una élite blanca dominante. Para el análisis, se eligen empleos de Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa y Lourdes Teodoro.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Poesia afro-brasileira; 2. Intertextualidade; 3. Resistência. PALABRAS CLAVE: 1. Poesía afro-brasileña; 2. Intertextualidad; 3. Resistencia.
Ainda influenciado mais fortemente pelos conceitos norteadores do movimento estruturalista, Roland Barthes, no meritório ensaio “A morte do Autor”, de 1966, afirma que “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita a escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 1988, 70). Ao migrar para a categoria literária do Leitor a construção de sentido de um texto, o semiólogo francês parece lhe conferir os plenos poderes interpretativos que mais tarde, numa espécie de contrarreforma da crítica que podará presumíveis excessos, seriam novamente (mas jamais no mesmo nível) limitados por outros estudiosos, de vertente pós-estruturalista, como Umberto Eco ou Stanley Fish.
Menos do que nos aprofundarmos em tais conceitos a respeito desse Leitor e de sua apropriação das prerrogativas da figura de um Autor clássico (e aqui o referimos também na condição de categoria narrativa), as quais se transformaram na história da crítica literária sob a esteira do desenvolvimento de suas escolas, trazemo-los antes a título de ilustração, com a finalidade de mais bem fazer compreender certo comportamento efetivamente leitor que observamos em autores afro-brasileiros aquando de suas produções poéticas, isto é, usamos o conceito barthesiano prioritariamente como modo de delinear a leitura que esses poetas afro-brasileiros promovem em sua criação artístico-literária acerca de poemas classificados pelo discurso acadêmico como pertencentes a um cânone nacional, subvertendo-os para, Leitores-Autores concomitantes que se revelam ser, reescrevê-los, atualizando-os ou recontextualizando-os e gerando a partir deles sentidos novos comprometidos ideologicamente com a sua identidade racial.
As motivações para esse procedimento parecem-nos evidentes: a necessidade, ou antes a premência, de instalar uma poética empenhada em questões étnico-culturais que, em geral, não encontram lugar no cânone literário brasileiro, a qual conquiste e ocupe espaços (habitualmente legados pela academia a esse cânone) para dar voz à identidade negra, representando-a de modo efetivo. E para de outra forma uma vez mais ilustrar esse fenômeno, vem a propósito citar o recurso de que lança mão Ivana Silva Freitas ao fazer uso de signos que se acomodariam no campo semântico do desenho cartográfico — o ponto, a encruzilhada (ou a rasura) e os caminhos — para investigar precisamente essa prática da literatura afro-brasileira de problematizar uma produção literária que é dada como hegemônica, representação pretensamente exclusiva da cultura nacional, embora assim pareçam ser tão somente em razão do lugar, nesse sentido, central de que usufrutuam e da voz de que por isso desfrutam nos discursos acadêmicos e midiáticos: “‘O ponto’ aqui é a intertextualidade, o que há em comum, ainda que como cicatriz, enquanto a encruzilhada representa o desconforto, a descontinuidade, a rasura que possibilita a abertura de outros caminhos.” (FREITAS, 2015, 115)
Assim é que, por exemplo, o poeta gaúcho Oliveira Silveira escreve “Outra Nega Fulô”, poema que traz a público nos Cadernos Negros em 1979 como resposta possível ao composto por Jorge de Lima em 192825.
Outra Nega Fulô
O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
— ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia
a blusa e se pelou
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
— Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
— Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntava
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
— Ah, foi você que matou!
— É sim, fui eu que matou —
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô! Essa nega Fulô! (DUARTE, 2014, v.2, 121-2)
Poema sobre o qual a crítica contemporânea já com alguma frequência se debruçou na comparação com a sua confessada matriz intertextual (mais que evidenciada nos irônicos versos que mencionam o escândalo do bom Jorge de Lima, seminegro e cristão, dando a ver a sua origem que não coaduna com a da negra de que intenciona falar, portanto, não a representando de fato), “Outra nega Fulô”, a partir de uma situação semelhante — qual seja: a intenção de um sinhô de açoitar uma mulher negra que para ele trabalha — descreve outra reação de sua personagem-título, desse modo, como bem observa Elisalva Madruga Dantas, “desfazendo a mítica bondade do Pai João e da Mãe Negra, subvertendo a natureza passiva, submissa da negra Fulô, enquanto mulher objeto em mulher sujeito, dona de si mesma e dos seus desejos” (DANTAS, 2006, 75). Assim como (para trazer um exemplo outro mas de similaridade processual) o vaqueiro Manuel da película de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, sob a mesma circunstância do Fabiano do romance de Graciliano Ramos Vidas secas, apresenta reação distinta à deste e, ao invés de se curvar aos números que lhe confundem, mata o patrão que lhe tenta enganar e roubar os seus bois, o que representa uma força revolucionária no herói do filme que ainda não era possível identificar no protagonista do romance, também a nega Fulô de Oliveira Silveira, a fim de escapar das punições aos pequenos delitos que lhe são imputados, não se deita com o sinhô como a do poema de Jorge de Lima (o que apenas substituía um açoite físico por outro também físico, especificamente de caráter sexual) mas o mata e, consubstanciando a sua alforria há muito oficialmente promulgada e a consequente autonomia sobre o seu próprio corpo a que tem direito, deita-se com quem decide. Assim é que, em sua Dissertação de Mestrado, Silvia Regina Lourenso de Castro observa:
Ao parodiar o poema de Jorge de Lima, o sujeito enunciativo de “Outra Nega Fulô” sugere, no plano superficial, que irá falar da mesma mucama. No entanto, ele deixa marcas no enunciado problematizando ambas as personagens. Uma primeira marca é a opção por usar a palavra “nega” em oposição à palavra “negra” usada pelo poeta anterior. Esse procedimento não se deve apenas à supressão do fonema /r/, ou seja, ele não é marcado como desvio da norma culta. Ao usar “nega” o sujeito projeta o efeito de sentido de ser aquele que fala de um lugar diferente daquele que diz “negra”, isto é, ele projeta o efeito de proximidade em relação à fala que emerge da senzala, modalizada pela oralidade, enquanto a forma escrita “negra” representa a fala que emerge da Casa Grande. Essa é uma estratégia para demarcar o território da formação discursiva, como também ocorre com a oposição “essa” vs. “outra”. (CASTRO, 2007, 79)
Ora, essa (o pronome sintomaticamente em terceira pessoa que observamos no poema de Jorge de Lima) era a negra marcada pelos estereótipos que lhe atribuíram os discursos da elite branca herdeira de escravocratas, pensamento cujos ecos ainda insistem em se fazer ouvir em nossa sociedade hodierna, ainda que semiocultamente reverberando pelos cantos da sala (física ou virtual) e não pelo centro das ruas, nos quais a mulher de origem africana surgia/surge assinalada como corpo sensualizado destinado tão-somente a dar prazer ao homem branco, poder erótico com que ademais ela deixaria a ver a sua malícia para enganá-lo. A outra que intitula a peça de Oliveira Silveira, mulher negra capaz de subverter a ordem que lhe é imposta por imposições racistas e machistas, será, além disso, esta nossa no discurso do Pai João e o uso desse pronome demonstrativo, agora de segunda pessoa, aliado ao possessivo de primeira pessoa do plural, mostrará a relação de pertencimento da voz poético-narrativa à etnia negra da personagem (porque esta indica assim proximidade de quem fala) e do seu público leitor (porque quem fala encontra-se acompanhado de outros que justificam a forma nossa). Essa nova voz irá, por sua vez, aniquilar a cultura da elite branca tal qual Fulô agora aniquila o patrão, já que também a sinhá será caracterizada como burra e besta, animalizada então em semelhança ao tratamento a que os negros foram submetidos no tempo da escravidão. Assim, conclui a esse respeito Sueli Meira Liebig:
O referencial ideológico veiculado por Jorge de Lima em seu poema é virado do avesso por Silveira: ao invés de “objeto” açoitado, a outra Fulô torna-se “sujeito” açoitador. A ressignificação das antigas práticas culturais torna-se, nas mãos do autor contemporâneo, o próprio chicote com que é vergastado o pensamento etnocêntrico. (LIEBIG, 2011, s/p)
Será sob égide equivalente que se dará o trabalho do poeta Solano Trindade, conhecido pelo epíteto de Poeta do Povo e, como nele reconhece Leda Maria Martins, “defensor intransitivo de sua ascendência africana, de seu requinte de negrura” (DUARTE, 2014, v.1, 389). Artista que viveu cerca dos primeiros três quartos do século XX, importantes anos de transição do lento processo (em desenvolvimento até os dais atuais porque não alcançou ainda o seu absoluto sucesso) de efetiva alforria que a comunidade negra precisa cotidianamente impor contra velhos e criminosos preconceitos, o escritor pernambucano trabalha em sua poética a cultura negra com a assiduidade e a pertinência que o credenciam a tornar-se uma referência incontornável para os poetas que lhe sobreveem, enquanto voz que quebra a lógica do cânone da elite branca acadêmica, apresentando-se assim como alternativa a essa. Daí que o importante escritor contemporâneo Luiz Silva, o Cuti, em poema muito a propósito intitulado “Tradição”, de 2007, faça-lhe reverência: “solano eu abraço / no boi-bumbado socialistado / num salto a-rap-iado” (DUARTE, 2014, v.3, 25). E, da mesma geração de Cuti, José Carlos Limeira homenageará o poeta em “A Solano Trindade”, ode em que afirma: “O solo das tuas frases / Marcará os espaços dos meus sons” (DUARTE, 2014, v.3, 39) — reiterando tal condição da poética de Solano Trindade como referência tradicional afro-brasileira (e por isso mesmo elevada ao cânone da manifestação dessa poesia). Alcançar esse estatuto de pavimentação legítima da poesia negra no Brasil, reconhecido pelos seus sucessores, é vitória que Solano Trindade conquista na proposta de re-discursar sobre a História e a realidade do negro no Brasil sob a sua voz representante étnica da sua raça e das causas a ela pertinentes: “Eu canto aos Palmares / sem inveja de Virgílio de Homero / e de Camões / porque o meu canto / é o grito de uma raça / em plena luta pela liberdade.” (DUARTE, 2014, v.1, 400), assevera ele em um de seus poemas. É dessa forma que Solano Trindade reconta o percurso poético do “Navio Negreiro” de Castro Alves, sob uma ótica, todavia, que dispensa a piedade do leitor — sentimento que pode ser motivado pelos versos oitocentistas, em que pese o seu importante caráter de denúncia das condições de uma viagem que, na época da sua composição, ocorria clandestinamente porque já havia sido legalmente proibida em 1850 — e, pelo contrário, exalta outros signos mais positivos, como o da resistência e o da inteligência: “Lá vem o navio negreiro / cheio de melancolia, / lá vem o navio negreiro / cheinho de poesia… // Lá vem o navio negreiro / com carga de resistência / lá vem o navio negreiro / cheinho de inteligência…” (DUARTE, 2014, v.1, 402)
Mas será em “Tem gente com fome”, publicado originalmente em 1944 no volume intitulado Poemas de uma vida simples, que Solano Trindade manuseará, quiçá com a sua mais apurada desenvoltura, um famoso poema do cânone nacional (relativamente contemporâneo ao seu, porque faz parte da coletânea de 1936 Estrela da manhã, e composto além do mais por um conterrâneo seu, o pernambucano Manuel Bandeira): trata-se de “Trem de ferro”.
Tem gente com fome
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu (DUARTE, 2014, v.1, 406-8)
“O poema descreve a vida da população afro-brasileira que não conseguiu se ajustar ao sonho europeu do branqueamento” (SANTOS, 2015, 29), segundo o define Josinete Pereira dos Santos. Os versos espalham a preocupação social do poeta em relação a uma significativa parcela da população empobrecida, não exclusivamente mas de maioria negra. Todo aglomerado de gente, como máquina, entra e sai dos vagões da locomotiva. O trem promove um itinerário dos bairros mais afastados aos mais próximos do centro da cidade, ou, para além disso, uma simbólica tentativa de viagem para o centro do país — o centro geográfico, político, social, econômico a que as caras tristes estão querendo chegar mas apenas o intuem reconhecendo-o vagamente como algum lugar ou algum destino — na estrategicamente apenas subentendida, porque facilmente dedutível a partir do conhecimento da malha ferroviária carioca, estação terminal Central do Brasil, não textualizada no poema com certeza porque metaforicamente não alcançada. Em seu percurso, anuncia, a todo momento, mas disfarçadamente (tanto que apenas parece dizer), que tem gente com fome, e ao fim reivindica lentamente, entre precavido e mesmo descrente, um dá de comer, que, todavia, será violentamente silenciado por uma voz que está no próprio trem (como o panóptico internalizado de que nos fala Michel Foucault?26) e impõe um onomatopeico Psiuuuuuuuuu, que Benjamin Abdala Jr. associa a “uma visão mais espontânea e quase infantil do referente opressivo” (ABDALA JR., 2006, 75): “E o ‘espontâneo’ realça a agressividade dos agentes alienadores.” (ABDALA JR., 2006, 75), completa ele.
Ao contrário, o poeta Manuel Bandeira nos conduzira, no seu “Trem de Ferro”, a uma viagem de trem pelo interior (oposto ao percurso urbano, ou antes sub-urbano, solaniano) e com poucas pessoas, como nos aponta ainda Josinete dos Santos:
O trem de Bandeira transporta gente (só levo/Pouca gente/Pouca gente/Pouca gente) e o trem de Solano transporta carga humana (Tantas caras tristes/querendo chegar/em algum destino/em algum lugar), haja vista o amontoado desumano a que são submetidos os passageiros do trem de Solano ao contrário do de Bandeira (em que se destaca justamente a oposição tantas vs. pouca). (SANTOS, 2015, 29-30)
Bandeira, além disso, oferece uma paisagem bucólica com bichos, pastos, boiadas, galhos, riachos e ingazeiras. Aqui, o termo onomatopeico que simula o barulho e a velocidade do trem, café com pão, difere-se da opção de Solano (tem gente com fome), a qual denuncia outra condição social, encontrada afinal por muitos que, em processos migratórios, abandonaram esse mesmo espaço do campo bandeiriano em busca de oportunidades na urbe central.
A propósito de circularmos nesse momento pela obra de Manuel Bandeira, encaminhemo-nos à oportunidade de observarmos também como o poeta paulistano Márcio Barbosa fará igualmente na escrita de versos seus releitura de uma composição bandeiriana (o breve poema “Irene no Céu”, do livro Libertinagem, de 1936), com uma obra publicada originalmente em 1992:
O que não dizia o poeminha do Manuel:
Irene preta!
Boa Irene um amor
Mas nem sempre Irene
Está de bom humor
Se existisse mesmo o Céu
Imagino Irene à porta:
— Pela entrada de serviço — diz S. Pedro
dedo em riste
— Pro inferno, seu racista — ela corta.
Irene não dá bandeira.
Ela não é de brincadeira. (DUARTE, 2014, v.3, 313)
Atentemos inicialmente para um detalhe que evidentemente é casual mas contribui para o enriquecimento semântico da paródia-resposta edificada por Márcio Barbosa: o fato de ele e Bandeira possuírem as mesmas iniciais. O nome de um, a partir de tais iniciais, completa-se com o que não dizia o nome do outro, o que se estende, é claro, a outras características, como a identidade racial de Barbosa que também não se pode fazer ouvir em Bandeira. Dessa forma, a opção estético-política de Barbosa na construção do seu poema busca subverter a condição a que a figura do negro, segundo ele mesmo denuncia, está frequentemente submetida na história literário-editorial nacional, na qual normalmente não tem voz: “o lugar reservado ao negro na literatura sempre foi o de tema” (BARBOSA, 1997, 212). Do mesmo modo observaremos se desenvolver o poema de Barbosa: de um ponto inicial semelhante, qual seja, a representação das relações interraciais no Brasil, “O que não dizia o poeminha do Manuel” traz soluções distintas da escrita bandeiriana para a questão e, baseados na denúncia explícita dos silêncios do discurso do poema de Bandeira, os seus versos apontam o racismo que, em “Irene no Céu”, seria registrado, quando muito, relativizado ou apenas em entrelinhas absolutamente sutis da leitura.
Atenhamo-nos agora mais detidamente ao título: ora, de toda a semântica possível em nossa língua para o uso de sufixos diminutivos, é possível inferir que a menção que Márcio Barbosa faz a “Irene no céu” chamando-o poeminha, transita do sentido dimensional (trata-se, afinal, de fato de um poema pequeno) para, de modo sem dúvida mais significativo, o irônico, em alguma medida desprestigiando o texto, o qual afinal irá contestar em seus versos, como pelo fato de, no poema de Bandeira, Irene estar sempre de bom humor (traço considerado positivo do ponto de vista dos senhores/patrões que veem aí ausência de subversão e que identificamos nos versos que dão conta de sua disposição de pedir licença ao branco que guarda as portas do paraíso), bom humor, ademais, que se mantém a despeito do modo invariavelmente servil segundo é tratada. Tal tratamento observamos então no próprio São Pedro, que, não obstante o estilo bonachão a ele atribuído por Bandeira, identifica-se como alguém que está hierarquicamente acima da personagem poética de modo a ter poder para autorizar ou não a sua passagem (e arriscamo-nos a dizer que essa condição é menos por sua condição de santo do que a de branco), não sendo casual, pois, que surja como representante dessa outra etnia, enquanto figura mítico-religiosa das crenças teológicas de origem europeia que esse segmento da sociedade via de regra professa (as quais Barbosa, aliás, não deixa de desvalidar ao reduzi-las a hipótese: Se existisse mesmo o Céu). A Irene mais contemporânea, pelo contrário, explicita o racismo que contra ela tenta se estabelecer e reage (como a outra/mesma Fulô de Oliveira Silveira), e o que não dizia o poeminha do Manuel por fim era que os Sãos Pedros que se espalham pela sociedade na verdade não maquiam o seu preconceito racial (exigindo, dedo em riste, que Irene use a entrada de serviço) mas que Irene se impõe contra essa circunstância. Não se trata mesmo, portanto, da Irene subserviente pintada por Bandeira; daí o jocoso penúltimo verso a asseverar: Irene não dá bandeira.
E encaminhemo-nos, finalmente, para “Quilombhoje”, composição da coletânea Poemas antigos, de 1996, através da qual a goiana Lourdes Teodoro prestará homenagem ao Quilombhoje Literatura — grupo paulistano de escritores, fundado em 1980 por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros, com objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura — ao mesmo tempo em que promoverá uma revisão da proposta poética de Carlos Drummond de Andrade no também consagrado poema “Procura da Poesia”, composição do volume Rosa do povo, de 1945.
Quilombhoje
Penetra calmamente nas ruas mais distantes.
Lá estão as emoções que precisam ser escritas
Convive com o teu povo antes de fazê-lo teu.
Espera que cada um se desnude, se rebele
Com seu poder de vida
Seu poder de palavra
Engravide tua palavra com a fome do teu povo
Oxigene tua palavra com a coragem do teu povo. (DUARTE, 2014, v.2, 247)
Evidente está o caráter metalinguístico do poema, em consonância ao drummondiano, ambos produzidos com o claro viés de formular os princípios, em cada caso, de um determinado fazer poético, o que será marcado pela presença de verbos imperativos a construírem um discurso injuntivo acerca da elaboração literária. Além disso, o poema de Lourdes Teodoro, Professora Doutora em Literatura Comparada, debate francamente com o de Drummond, evidenciando a poética que a poeta reconhece e pesquisa no grupo literário Quilombhoje, a qual, segundo a sua leitura, propõe-se distinta da apresentada pelo escritor mineiro em “Procura da Poesia”, de modo que, é claro, o diálogo se registra em oposição (nas rasuras a que fez menção Ivana Freitas), debatendo a essencialidade de a poesia afro-brasileira firmar compromisso com as questões sociais do povo de que uma literatura engajada não pode se desviar, como expõe o primeiro verso de “Quilombhoje”, o qual se apropria parodicamente de uma passagem de “Procura da Poesia” ao instar o poeta a penetrar calmamente não no reino das palavras, como quereria Drummond, mas nas ruas mais distantes, logo, ao encontro do povo que carece dessa poesia, que denuncie as suas fomes e cante a sua coragem.
Tal atitude o famoso poema de Drummond a princípio condena, segundo inferimos de passagens como: Não faça versos sobre acontecimentos. Não cantes tua cidade, deixe-a em paz. O canto não é a natureza / nem os homens em sociedade. É claro que, aprofundando a leitura, podemos identificar “Procura da Poesia” menos como um manual de escrita poética ou uma descrição precisa do fazer literário drummondiano propriamente dito do que uma discussão sobre a tensão entre o real a ser representado, o eu-poético e a estrutura formal do poema, entre subjetividade e alteridade na gênese do poema. Por isso, a própria obra do autor demonstrará vastamente, na prática, atitude poética que ignora tais recomendações, o que alça “Procura da Poesia” a uma possível condição de poema-autocrítica do próprio poeta Drummond e sua obra como um todo. No entanto, é atendo-se claramente a esse poema específico, de que Lourdes Teodoro faz uso como substrato poético para compor “Quilombhoje”, que a poeta irá construir o seu debate (e, desde o início, nossa opção metodológica nesse trabalho foi o de identificar, e a ela nos deter, a leitura que o poeta afro-brasileiro promove do texto canônico com que dialoga) o qual representa um manifesto e uma convocação do compromisso social de uma poesia de engajamento, defendendo que o poder de palavra e o poder de silêncio a que Drummond fazia menção, reconhecendo-os residentes nos poemas, habita na verdade precisamente nos acontecimentos que ele rejeitaria: no povo e na sua coragem que, na sua atitude rebelar-se, ignora os poderes de um hipotético silêncio (que na poesia afro-brasileira pertence invariavelemnte ao campo semântico da repressão) já que o termo que agora se justapõem à palavra na dupla de poderes evocados é vida.
Em sua economia formal (mas uma oposição à relativamente longa composição drummondiana), o poema de Lourdes Teodoro é como uma pequena semente de que brotam grandes árvores que representa uma Literatura de raízes cada vez mais profundas na poética nacional. Dizendo o mesmo de outro modo, “Quilombhoje” concentra, na positiva iminência de por isso explodir como em um Big Bang poético ou uma bomba, os princípios literários do fazer artístico que aqui buscamos investigar e, desse modo, se nos encerra o artigo, teria podido também iniciá-lo. Debruçamo-nos nesse ensaio sobre uma produção que empreende a superação do cânone estabelecido pelo discurso acadêmico da elite branca e a distribuição dos espaços que ele latifundiariamente ocupa, um produção por conseguinte que busca dar espaço às questões cujo desenvolvimento tem lugar fora do centro, nas ruas mais distantes da Central do Brasil omitida em “Tem gente com fome”: a fome do povo e as suas emoções que (mais do que esperam) precisam ser escritas — fome que, nesse caso, é metonímia desde a fome física que sofrem os passageiros da locomotiva de Solano Trindade até a fome de liberdade, autonomia e respeito que movem as ações das Irenes e das Negas Fulôs que, em um novo tempo, rebelam-se com uma coragem que oxigena a arte, que por esse motivo a canta. Os versos que analisamos estão, assim, grávidos dessa fome.
A poesia afro-brasileira, por fim, está imbuída de uma missão que as palavras que compõem “Quilombhoje” descrevem ao mesmo tempo em que a delegam, a qual Oliveira Silveira, Solano Trindade, Márcio Barbosa e Lourdes Teodoro cumprem com êxito.
Notas
25) O corpus que por agora analisamos tem lugar no rico trabalho organizado por Eduardo de Assis Duarte Literatura e afrodescendência no Brasil – antologia crítica, ampla pesquisa publicada em quatro volumes em 2011 (com reedição em 2014) pela Editora UFMG, já hoje bibliografia fundamental nesses estudos.
26) Ao descrever as sociedades disciplinares, Foucault usara o exemplo do Panóptico de Jeremy Bentham, jurista inglês de fins do século XVIII que desenhou um projeto de penitenciária no qual, de uma torre central, seria possível vigiar todas as celas sem que a sentinela fosse vista, sem que mesmo fosse possível saber quando a torre estaria ou não de fato ocupada, gerando um efeito de introjeção do poder no vigiado, que, por isso, autocensura-se, instaurando um poder disciplinador internalizado, de que nos fala Foucault.
Referências bibliográficas
1. ABDALA JR., Benjamin. “Antônio Jacinto, José Craveirinha, Solano Trindade— o sonho (diurno) de uma poética popular”. In: CHAVES, Rita; SECCO, Carmen; MACÊDO, Tania (org.). Brasil/África: como se o mar fosse mentira. São Paulo: UNESP; Luanda: Chá de Caxinde, 2006, p. 69-78.
2. BARBOSA, Márcio. “Cadernos Negros e Quilombhoje: algumas páginas de história.” In: Thot – Escribas dos Deuses: Pensamentos dos Povos Africanos e Afrodescendentes. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, n.2, maio/agosto de 1997, p. 207-219.
3. BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 65-70.
4. CASTRO, Silvia Regina Lourenso de. Corpo e erotismo em Cadernos Negros: a reconstrução semiótica da liberdade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007.
5. DANTAS, Elisalva Madruga. “A negritude poética do gaúcho Oliveira Silveira”. In: Revista de Letras. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, n.28,
v. 1/2, janeiro/dezembro de 2006, p. 74-7.
6. DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, 4v..
7. FOUCAULT, Michel. “O panoptismo”. In: ——. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 186-214.
8. FREITAS, Ivana Silva. “O ponto e a encruzilhada: a poesia negra rasurando a literatura oficial através da intertextualidade”. In: Pontos de Interrogação –Revista de Crítica Cultural. Salvador: Universidade do Estado da Bahia, n.2,
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9. LIEBIG, Sueli Meira. “Por um descentramento ético do negro: Esmeralda Ribeiro, Oliveira Silveira, Socorro Coelho e Solano Trindade”. In: Anais Online do XII Congresso Internacional da ABRALIC. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, s/p, disponível online em http://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0650-1.pdf, último acesso: 09/05/2016.
10. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1998.
11. ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964.
12. SANTOS, Josinete Pereira dos. Pelos caminhos da poesia, a descoberta do orgulho de ser negro. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização. São Gonçalo: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, 2015.